Capacitismo: o que é e o que fazer?
Termo se refere à discriminação contra pessoas com deficiência, que tem punição prevista em lei
Existe um tipo de discriminação sofrido especificamente por pessoas com deficiência, grupo do qual fazem parte as pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Trata-se do capacitismo, a ideia de que as pessoas com deficiências, físicas ou mentais, são incapazes.
A base do pensamento capacitista é de que há um padrão corporal – inclusive neurológico – ideal. Desta forma, quem não pode se enquadrar neste padrão não está habilitado para participar plenamente das atividades sociais. A palavra tem origem no inglês ableism – em português, able significa capaz. O termo ganhou popularidade, segundo a BBC, nos Estados Unidos da década de 1980, nos movimentos pelos direitos pelas pessoas com deficiência.
Não há registro do termo capacitismo na legislação brasileira. No entanto, a Lei Nº 13.146, de 6 de julho de 2015, que define o Estatuto da Pessoa com Deficiência, prevê em seu artigo 4º que “toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação”.
Omissão também é considerada, por lei, uma forma de discriminação capacitista
Em seguida, no parágrafo I, o texto estabelece que “considera-se discriminação em razão da deficiência toda forma de distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o propósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais de pessoa com deficiência, incluindo a recusa de adaptações razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas”.
Além disso, o parágrafo IV do artigo 3º da Constituição Federal coloca entre os objetivos principais da República brasileira “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Vale lembrar ainda o caput do artigo 5º, também da Constituição, que declara: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”.
Relatos de superação revelam que na verdade há uma expectativa de fracasso
No podcast Introvertendo, criado e produzido por pessoas com autismo, eles discutem em um episódio uma das nuances do capacitismo que é a criação de um discurso sobre a trajetória de pessoas com autismo associada à ideia de superação.
“Por que a gente considera que uma pessoa com deficiência alcançar um certo status na sociedade é extraordinário? Porque a gente vive em uma sociedade preconceituosa, capacitista, em que a gente não espera nada dessas pessoas”, afirma o apresentador do programa, Tiago Abreu, diagnosticado com autismo em 2015.
“É exatamente esse o mote de você trazer uma história de uma pessoa com deficiência, de uma pessoa autista, e falar que ela é um exemplo de superação porque ela conseguiu passar numa universidade, porque ela conseguiu terminar um curso, que são coisas que as pessoas conseguem com acesso correto”, complementa o jornalista, diagnosticado com autismo em 2015. “Histórias de superação são um problema e elas são uma parte de um sintoma maior que é chamado capacitismo”, conclui.
Família de autista foi à polícia e teve que se mudar na quarentena após reclamações de vizinhos
Há casos de capacitismo expressados de forma acintosa. É o caso de dois autodeclarados humoristas que acabaram sendo investigados pelo Ministério Público após fazerem referência jocosa ao comportamento de pessoas com autismo.
Um outro caso foi o de uma família que precisou mudar de apartamento durante a pandemia após os vizinhos, no grupo de WhatsApp do condomínio, reclamarem do barulho provocado pelo comportamento do filho com autismo. Em ambos os casos, a Justiça foi acionada.
Saiba que instituições devem ser acionadas em casos de capacitismo
Pessoas vítimas de capacitismo devem procurar uma Delegacia de Crimes contra as Pessoas com Deficiência para registrar um boletim de ocorrência. Em casos mais graves, podem fazer uma denúncia nas Delegacias de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância, orienta o advogado Marcelo Roberto Bruno Valio, que atua na área de direito das pessoas com deficiência e é membro da Comissão de Defesa dos Direitos dos Autistas da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo (OAB-SP).
Se não houver uma delegacia especializada no estado, a orientação é procurar uma delegacia comum. Também é possível acionar o Ministério Público (MP) para fazer uma denúncia e também a Defensoria Pública.
Vítimas de baixa renda, diz Valio, podem buscar apoio da Defensoria Pública, da Procuradoria de Assistência Judiciária, do Serviço de Assistência Judiciária das Universidades, das delegacias já mencionadas e também do MP.
E se a discriminação acontecer dentro da própria família?
Casos de capacitismo podem ocorrer no próprio ambiente familiar. Se isso acontecer, a orientação de Valio é entrar em contato com a polícia e pedir que uma viatura vá ao local apurar o crime e até mesmo prender o parente em flagrante. Se não houver prisão, é possível pedir por meio de ordem judicial que o infrator mantenha distância da vítima.
Se nenhuma das possibilidades der certo, a recomendação é registrar o boletim de ocorrência ou registrar a denúncia, de preferência em uma delegacia especializada. O MP e a Defensoria Pública também podem ser acionados.
Entender o autismo como um espectro contribui para evitar atitudes capacitistas
Dois grandes avanços na história do pensamento mundial sobre autismo ocorreram nas décadas de 1980 e 1990 e são marcos na luta contra a discriminação dos autistas. O primeiro deles ocorreu em 1981. Foi quando a psiquiatra britânica Lorna Wing publicou um trabalho que revolucionou a forma como o autismo era compreendido. Wing propôs o conceito do transtorno como um espectro, levando em consideração que o autismo afeta as pessoas de diferentes maneiras.
A partir daí, começou-se a entender que cada autista é único. Uma frase que parece óbvia representa justamente esse pensamento: se você conhece um autista, você conhece um autista. Assim como os neurotípicos, que são as pessoas consideradas dentro do padrão neurológico, cada autista tem uma combinação única de características e comportamentos e é afetado de forma diferente pelo transtorno – alguns em grau severo, outros de forma moderada e aqueles considerados de alto funcionamento.
Conceito de neurodiversidade ajuda a quebrar o estigma de pessoas com autismo
Um outro pensamento marcante é o conceito de neurodiversidade, termo criado pela socióloga australiana Judy Singer em um artigo publicado em 1998. O termo abrange as incontáveis composições neurológicas dos seres humanos. “Nós somos todos habitantes neurodiversos do planeta, porque não há duas mentes neste mundo que possam ser exatamente iguais”, afirma a pesquisadora. O conceito contribuiu ainda mais para a quebra do estigma de pessoas com autismo e com outras desordens mentais.
No Brasil, um marco na história das pessoas com autismo foi a lei nº 12.764, de 27 de dezembro de 2012, que define o transtorno como deficiência. Conquista liderada por Berenice Piana, mãe de um autista, a lei permitiu às pessoas com TEA o acesso a todos os direitos estabelecidos pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, que norteia as ações provocadas por casos de capacitismo.
O que pode acontecer com quem é acusado de capacitismo?
A pessoa que responde por praticar, induzir ou incitar discriminação a pessoas com deficiência está sujeita uma condenação a prisão de 1 a 3 anos, além de multa. A pena aumenta em um terço se a vítima estiver sob cuidado e responsabilidade do acusado. O infrator é enquadrado artigo 88 da Lei 13.146/2015, aponta Marcelo Valio.
Quando o crime é cometido por intermédio de meios de comunicação social ou de publicações de qualquer natureza, a punição passa para 2 a 5 anos de reclusão e multa. Nestes casos, o juiz pode ainda determinar recolhimento ou busca e apreensão dos exemplares do material discriminatório e a interdição das mensagens ou páginas de informação na internet. O material apreendido pode ser destruído após o julgamento final da causa. A vítima também pode pedir indenização por danos morais ou materiais.
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