Marisa Fúria: autistas vivem no nosso mundo
Fundadora da AMA critica ideia de que autistas vivem em um mundo particular
Ao contrário do senso comum, que insiste em afirmar que os autistas vivem em um mundo particular, Marisa Fúria prefere escapar desse tipo de pensamento. Mãe de Renato, um autista de 43 anos, e uma das fundadoras da primeira instituição dedicada ao apoio à comunidade autista no Brasil e na América Latina, a AMA-SP, ela é categórica: “Essas coisas que ficam falando eles estão no mundo deles, estão coisa nenhuma. Estão no nosso mundo, participam do nosso mundo, mas a gente tem que ter certos cuidados para preservá-los, só isso.”
Entre os cuidados, estão uma observação constante de comportamentos, demandas e aprendizados, conta Marisa. Como sempre reforçamos neste blog, cada autista manifesta o transtorno de forma única e, portanto, suas necessidades também o são. No caso de Renato, passam, por exemplo, por definir claramente toda tarefa que será realizada na companhia dele e prevenir possíveis danos autoprovocados. “O ser humano, cada um, tem seu funcionamento. Você tem que entender como eles funcionam, como eles entendem, e é isso.”
Todos os filhos de Marisa cresceram indo a parques, cinemas, restaurantes e viajando com amigos. Mas ao sair de carro com Renato, por exemplo, é necessário cumprir exatamente o que foi anunciado. “Já sei que ele é imediatista, não vou falar que vou num lugar e passar noutro. A comunicação dele é complexa. Ele não pode falar “Oh mãe, a gente não ia pra tia, como nós vamos na farmácia agora? Ele não tem essa comunicação (…) A comunicação é uma coisa muito complexa pra eles. Na hora que você percebe que você tem que pensar duas vezes antes de agir e de falar, o comportamento melhora muito.”
Para não correr o risco de perder o filho em episódio de fuga e para mantê-lo seguro em caso de emergência de saúde fora de casa ou numa eventual abordagem policial, Marisa etiqueta todas as roupas dele com telefones de contato da família.
Trabalho para inclusão de autistas começou em 1983, após o diagnóstico de um de seus quatro filhos
A luta de Marisa para incluir não só Renato, mas muitos outros autistas no nosso mundo começou ainda na década de 1980, quando a discussão sobre o transtorno era escassa.
Terceiro de seus quatro filhos, Renato foi diagnosticado autista aos 2 anos e meio. Ele havia nascido prematuro e demorado para andar, mas havia acontecido o mesmo com outros irmãos. O que chamou a atenção foi que ele aprendeu a falar e cantar, mas começou a regredir e a se autoagredir.
Já na primeira consulta com uma psicóloga, veio a resposta. “Tenho esse diagnóstico por escrito até hoje. Estou falando de 1983, quando não tinha internet, Google, telefone, pra você ligar pro exterior precisava da telefonista e não tinha SUS. Não sabia nem o que era autismo quando saí da consulta”, conta Marisa. Após a psicóloga, Renato ainda passou por dois neurologistas, que confirmaram a condição.
Fundação da AMA ocorreu após encontro promovido pelo psiquiatra Raymond Rosenberg
A busca por orientações e serviços que pudessem atender adequadamente o filho levou Marisa ao psiquiatra Raymond Rosenberg. Na época, ele havia acabado de chegar dos Estados Unidos, reuniu um grupo de pais de autistas no consultório, e deu a ideia de criarem uma associação. “Ele falou: ‘Se eu com um dedo tentar levantar essa mesa, não levanto. Mas se todos juntos tentarmos, nós vamos levantar’.” A AMA foi fundada no dia 8 de agosto daquele ano, ainda em 1983. Ao lado de Marisa e do marido Norberto, estavam – e continuam até hoje – Ana Maria Serrajordia Ros de Mello e Samuel Mello, mãe de Guilherme, e Salvador Cândido Brandão e Zenaide Brandão, pais de Ciro.
“A gente foi pra AMA com foco em trazer conhecimento e saber lidar com essas crianças para que elas se inserissem no nosso cotidiano, no dia a dia, em sociedade”, conta Marisa. Os primeiros encontros da associação e atendimentos das crianças aconteceram no quintal de uma igreja batista, cedido por um pastor que tinha um filho autista.
Um dos principais objetivos da fase inicial já era não restringir as conquistas aos filhos dos participantes, mas incluir também outros autistas neste novo mundo que começava a ser criado por eles. A ideia era também fazer a entidade perdurar e, por isso, a AMA não leva o termo criança em seu nome. “A gente sabia que eles iam crescer”, relembra Marisa. O trabalho começou focado em crianças que não contavam com nenhum atendimento, recebidas por profissionais indicados por Rosenberg.
O primeiro encontro de amigos do autista foi organizado em 1984 e reuniu 500 pessoas de todo o país. A entidade começou a sair nos jornais e promover palestras de esclarecimento sobre o transtorno. Assim, começaram a chamar a atenção de pais de autistas de outros estados que pediam autorização para fundar outras associações com o mesmo nome. Há AMAs espalhadas por todo o Brasil, que atuam de forma independente e a maior parte delas faz parte da Associação Brasileira de Autismo (ABRA), criada em 1988.
Viagem por países da Europa ao lado de Ana Maria trouxe novas perspectivas para o acompanhamento de autistas
Naquela época, faltava literatura disponível em português sobre autismo e os fundadores da AMA contavam com a ajuda dos amigos que traziam livros do exterior. Especialistas estrangeiros passaram a visitar o país para dar palestras promovidas pela entidade. O primeiro a participar de um evento brasileiro foi o espanhol Angel Rivière.
Após realizarem uma série de eventos, Marisa e Ana Maria embarcaram para conhecer centros de autismo na Europa. Maria Alice Matravulk, outra mãe, seguiu para os EUA. O ano já era 1988. Visitaram centros de autismo na Alemanha, Holanda, Dinamarca, Inglaterra e França.
“A gente buscou conhecimento não só para nós, mas para todos, e ter serviço de qualidade para associação”, diz Marisa. Um centro residencial para autistas na Inglaterra e o atendimento escolar visto na Dinamarca chamaram a atenção das duas. “A gente voltou pro Brasil com a ideia de fazer a residência.”
Hoje, Renato mora em uma residência da AMA em Parelheiros, na zona sul de São Paulo, e visita a mãe, na região da Bela Vista, centro da capital, a cada 15 dias. “Tenho quatro filhos, todos tiveram direito de sair de casa, casar, formaram família ou continuaram morando comigo. Por que o Renato não tem que ter o direito de ter a casa pra ele? Com esse foco, a gente colocou ele na residência.”
A residência abriu as portas em 1994, em um sítio de 105 mil m². Quatro residências abrigam 25 adultos autistas. O atendimento é norteado por objetivos individuais estabelecidos para cada pessoa, descritos em um Planejamento Educacional Terapêutico Individualizado (PETI).
Residência terapêutica contribuiu para reduzir a agressividade de Renato em uma fase crítica, conta Marisa
Marisa conta que, na época em que Renato se mudou para a residência, vivia uma fase de muita agressividade. “Cheguei a comprar camisa de força. Ele melhorou muito, está muito bem. O que melhorou muito no Renato foi o serviço que eles fazem lá na AMA. Tem toda uma estrutura voltada para a pessoa com autismo.”
As crises Marisa atribui à dificuldade de elaborar emoções e comunicá-las. Renato, por exemplo, não consegue dizer se está com dor nem onde sente, e por isso fica nervoso. Como entende tudo o que ouve, fica tenso quando as pessoas falam rápido ou abordam assuntos complexos, que ele não consegue acompanhar. “A gente consegue elaborar as nossas emoções e resolver os problemas tensos e ele talvez não. Acho que muitas crises são por isso. A gente procura não falar muito, ter um ambiente calmo. Ele está muito bem. Entende tudo o que a gente fala, obedece ordens, mas a gente não consegue manter um diálogo com ele”, detalha a mãe.
Há autistas que conseguem ter uma vida com autonomia, outros não. É o caso de Renato, que precisa de ajuda com higiene íntima e alimentação. A residência da AMA é terapêutica porque atende pessoas mais comprometidas e conta com equipe de cuidadores. “Infelizmente, ele não pode seguir carreira como outros seguiram, não teve condição de fazer isso. Eu sou muito clara, eu vejo que a residência é um caminho para essa população.”
Marisa aponta uma carência neste tipo de serviço no país. “Na assistência social tem residências inclusivas, mas a verba é pouca, então elas não se ampliam. E na saúde, além das residências terapêuticas, têm os centros de reabilitação.” Falta também, diz Marisa, uma visão de educação que entenda que o processo de aprendizado se estende por toda a vida.
Quase 40 anos após a fundação da AMA, ainda há falta de empatia pelas pessoas com deficiência
Mesmo 38 anos após um intenso trabalho de conscientização sobre autismo e apoio a famílias e autistas, Marisa conta que ainda percebe dificuldade das pessoas típicas demonstrarem empatia com pessoas com deficiência. A discriminação, em geral, não é explícita. “Percebi na minha vida que muitas pessoas ficavam tensas com a presença dele”, conta. A tensão, no entanto, não esmoreceu Marisa. “Eu tinha 4 filhos, era um a mais. Tinha que ir junto com todo mundo. Não podia largar ele em casa. A gente sofreu sim”.
Atitudes inesperadas faziam parte do convívio em público. Mas colocar seu filho como parte do mundo sempre fez parte da rotina da família. “Saía com os meninos, a gente ia pra um restaurante, na hora que entra o Renato puxa a toalha, cai tudo no chão. Prato, tudo. São coisas que você tem que enfrentar. Mas se eu não saísse com ele, provavelmente hoje ele não estaria como está, porque hoje considero que ele está bem. Todo mundo estranhava, ninguém sabia o que era autismo e ele podia ter uma atitude dessas.”
A saída era sempre buscar ajustes que possibilitassem ao máximo que todos aproveitassem, juntos, os momentos fora de casa. “A gente foi tentando fazer da vida com ele tudo dentro da normalidade, com alguns ajustes, para fazer ele interagir, socializar.”
Ampliar o conhecimento sobre o autismo e permitir que os autistas recebam serviços adequados, como faz Marisa, é um esforço contínuo e de alto custo, mas que permite que todos façam parte de um mundo só, compartilhado por todos nós.
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