Desvendando a adolescência: sexualidade e autismo
Pesquisa com adolescentes autistas põe em foco o desenvolvimento sexual; confira os resultados
Diversas vezes, ao abordar o Transtorno do Espectro Autista (TEA), mencionamos apenas a infância e esquecemos que essas pessoas crescem -o que se justifica por conta da importância da conscientização para que o diagnóstico ocorra o mais precocemente possível.
Entretanto, mesmo que a maior parte dos diagnósticos sejam obtidos ainda na infância, o transtorno acompanha a pessoa durante toda a vida. Ou seja, há fatos da vida de jovens e adultos que devem ser debatidos.
Um dos principais assuntos da adolescência é o desenvolvimento da vida sexual. Como seria essa questão em relação aos autistas?
Estudo observou 14 autistas adolescentes oralizados de 15 a 17 anos
Em fevereiro de 2021, foi publicado um artigo científico que debate esse ponto, intitulado “Eu não sou um anjo azul: a sexualidade na perspectiva de adolescentes autistas”.
Produzido por pesquisadores da Unifor (Universidade de Fortaleza), o material é uma pesquisa de natureza qualitativa, realizada com pessoas autistas, no período entre setembro de 2017 e outubro de 2018. Os participantes foram recrutados por chamamento público em mídias sociais que congregam autistas e familiares.
Atenderam ao convite 14 autistas oralizados, entre 15 e 17 anos, sendo oito do gênero masculino, cinco do feminino e um participante que se identificou como gênero neutro. Foram realizadas entrevistas que abordaram as dificuldades enfrentadas pelos autistas na vivência da sua sexualidade e suas demandas no que se refere à educação sexual.
Estereótipo em torno do ideal de “anjo azul” dificulta aos pais perceberem aspectos da sexualidade dos filhos
Embora pessoas autistas se desenvolvam física e sexualmente de acordo com os estágios típicos de desenvolvimento, existem singularidades que não devem ser ignoradas.
As experiências e as expressões da sexualidade de pessoas autistas são tão diversas quanto o espectro, demandando uma estrutura de apoio adaptável e que considere necessidades, desejos, dificuldades e comprometimentos.
“Nós somos pessoas, a gente tem desejo, a gente sente as coisas, mas é difícil para nossos pais entenderem, talvez até por que eles foram condicionados a nos olharem como anjos azuis”. Kalel, de 17 anos.
Adolescentes contestaram a falácia de que autistas são eternas crianças
O que os adolescentes discutiram?
A dificuldade de pais e professores em reconhecer autistas como pessoas sexuadas foi recorrente nos discursos. Para os informantes, essa resistência é fomentada pela introjeção de falsas crenças sobre o autismo. A falácia de que autistas são eternas crianças foi contestada por Elric, de16 anos.
Elric tem uma namorada que também é autista e, mesmo que tenha conquistado certa autonomia, a considera limitada: relata restrições para sair de casa sem suporte, dificuldades de adaptação escolar e distúrbio do processamento sensorial, que comprometem as atividades de vida diária.
“Eu não sou criança. Eu tenho uma namorada. Mas ainda é difícil para as pessoas aceitarem isso, porque elas querem que a gente seja criança para sempre. É a tal lenda da idade mental. E eu sei que tenho as minhas limitações. Mas isso não dá a ninguém o direito de me impedir de ter uma namorada e minha família tentou isso no começo. Ainda hoje eles tratam como se fosse uma brincadeira de criança”, conta o jovem.
“Eu odeio essa história de que autista é inocente”, diz uma das pesquisadas
Outra participante da pesquisa, Sakura, de 17 anos, ratifica a crítica de Elric ao conceito de idade mental e à infantilização de pessoas autistas, principalmente daquelas com comprometimento cognitivo. Ela enfatiza que essa infantilização errônea também dificulta o bom diálogo entre os familiares.
“Eu fico pistola quando escuto alguém dizer que ‘fulano tem a idade mental de uma criança de 5 anos’. O que está implícito aí é que essa pessoa precisa ser tutelada para sempre. Eu tenho amigas com déficit cognitivo mais severo que o meu. Elas têm desejo do mesmo jeito, mas são limitadas porque a sociedade não permite que elas tenham direito ao próprio corpo”. Eu tentei perguntar, tentei conversar, mas todo mundo se apavora e só sabe dizer que eu não tenho malícia para essas coisas porque eu sou inocente. Mas minha irmã mais nova, que não é autista, namora e ninguém diz nada. Eu odeio essa história de que autista é inocente”.
A expressão “anjo azul”, amplamente disseminada para caracterizar pessoas autistas, atua como processo discursivo, normatizando sua infantilização e contribuindo para a invisibilidade do autismo feminino, como ilustra a fala de Jasmin, de 15 anos:
“Eu não sou um anjo azul. Não nasci para anjo. Não sou assexual. E sou menina. Esse azul aí surgiu por que as pessoas acham que autismo é mais prevalente em meninos e não é. A gente, menina, demora muito mais para conseguir o diagnóstico. E essa história desse anjo azul dificulta ainda mais”.
“Já ouvi: você não pode ser trans, você é autista e não tem autista trans”
Para além da multiplicidade de demandas e vivências, há também a questão da diversidade de orientação sexual e identidade de gênero.
Noa, de 17 anos, comentou sobre esse assunto durante as entrevistas. Para ele, o afastamento das regras sociais hegemônicas torna as pessoas autistas mais propensas a se perceberem com características não normativas de gênero do que neurotípicos.
“Já ouvi: você não pode ser trans, você é autista e não tem autista trans. Tem sim. E quando eu falo que sou não binária é que o pessoal surta”…“se você parar para refletir, essa divisão binária não faz sentido. É tudo construção. A gente pensa objetivo, então essas questões não pesam tanto para gente”.
Outro participante também comentou sobre essas questões. Thanus, de 17 anos, define-se como assexual heterorromântico, por não sentir atração sexual, mas ser capaz de se apaixonar por outras pessoas.
Para o jovem, existe uma resistência da sociedade em admitir diferentes formas de experiência relacional. Quando essa vivência se associa ao autismo, contudo, a desqualificação passa a ser justificada pela deficiência. “As pessoas riem quando eu falo que sou assexual heterorromântico. Desqualificam mesmo. É como coisa que criança fala e ninguém leva a sério. Pois é. É a mesma coisa quando a gente é autista.”
Bárbara Bertaglia
Médica residente na pediatria da Santa Casa de São Paulo, pesquisadora na área de Transtorno do Espectro Autista e membro da equipe Autismo e Realidade desde 2019
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