Dificuldades para obter o tratamento adequado de TEA
Disputas judiciais com planos de saúde são frequentes para obter estímulos recomendados por especialistas
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é um distúrbio do neurodesenvolvimento que requer acompanhamento multidisciplinar, com equipes que envolvem pediatra, psiquiatra, neurologista, psicólogo, fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional, psicoterapeuta, fisioterapeuta, entre outras especialidades. O objetivo é estimular o máximo possível o desenvolvimento do autista, dentro de suas possibilidades.
O autismo se manifesta de forma única em cada pessoa, mas há duas características básicas comuns a todos, que podem se manifestar com diferentes intensidades em cada indivíduo:
– Déficit de comunicação ou interação social – dificuldades em desenvolver as linguagens verbal ou não verbal e a reciprocidade socioemocional;
– Padrões restritos e repetitivos de comportamento – a criança pode adotar movimentos contínuos, ter interesses fixos e hipo ou hipersensibilidade a estímulos sensoriais.
Autismo se manifesta especificamente em cada indivíduo, com combinação de múltiplos fatores
Além destas características básicas, o autista pode apresentar uma ou várias comorbidades, que são condições associadas ao transtorno, como distúrbios do sono, Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) ou Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC ), entre muitas outras.
Para condições psiquiátricas que se apresentam como comorbidades, o tratamento pode ser realizado com uso de remédios, como risperidona – em casos de ansiedade ou TDAH, por exemplo. No caso de déficits da fala ou outros distúrbios de linguagem, a terapia comportamental e sessões de fonoaudiologia passam a ser o mais indicado.
O quadro é composto pela multiplicidade de manifestações do transtorno e também por especificidades de cada autista – o que explica a definição do transtorno como um espectro.
Planos costumam alegar que não cobrem o método ou que o nº de sessões recomendadas excede o limite
A necessidade de estímulo a habilidades sociais, comunicativas, adaptativas e organizacionais com acionamento de múltiplos profissionais de forma intensa e regular pode acabar confrontada por limites estabelecidos pelos planos de saúde. É comum que pais e mães precisem recorrer à Justiça para conseguir o acesso a profissionais especializados e o número de sessões recomendados pelos médicos.
Os casos acontecem com frequência, e sentenças favoráveis ao tratamento dos autistas dentro do recomendado pelos médicos se repetem em todo o país. Em linhas gerais, os planos costumam alegar que não cobrem o método prescrito ou que o número de sessões recomendadas excede o limite previsto. Há casos em que as operadoras sugerem que profissionais não especializados realizem o tratamento. Também é recorrente a negativa ao custeio de acompanhante terapêutico em ambiente escolar.
“Trata-se de uma situação notória”, afirma o advogado Marcelo Valio, que atua na área de direito das pessoas com deficiência e é membro da Comissão de Defesa dos Direitos dos Autistas da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo (OAB-SP).
Intervenção baseada em ABA ainda não está no rol de procedimentos da ANS
A maior parte dos casos se refere à busca por terapia baseada ABA (http://autismoerealidade.org.br/tag/metodo-aba/). O termo vem da sigla em inglês Applied Behavior Analysis. Em português, é chamado de Análise Aplicada do Comportamento. Os programas de acompanhamento baseados em ABA são considerados de primeira linha para autistas no início da infância. Os resultados são significativos em relação ao desempenho cognitivo, aquisição de habilidades linguísticas e desenvolvimento do comportamento adaptativo.
As intervenções devem ser intensivas – o recomendado são de 25 a 40 horas semanais por um período mínimo de um ano.
Das 28 práticas atualmente recomendadas pela ciência para o trabalho com autistas, 24 delas são baseadas em ABA. As outras quatro combinam seus objetivos com protocolos comportamentais: terapia cognitivo comportamental, exercício e movimento, musicoterapia e integração sensorial.
Segundo Valio, o SUS (Sistema Único de Saúde) não oferece amparo adequado e os convênios médicos, em praticamente todos os níveis de plano, não adotam as ciências adequadas e baseadas em evidência, como o método ABA. Além disso, costumam oferecer clínicas não habilitadas, desqualificadas e com profissionais também sem qualificação e sem comprovação de especialização para o atendimento eficaz de autistas.
“Frequentes são os casos de oferecimento de clínicas sem qualquer condição de atendimento, com atendimentos prestados por estagiários e sem atender aos ditames dos laudos médicos, ou limitação das sessões e respectivos reembolsos, alegando a limitação ou já ter ultrapassado o limite máximo de sessões anuais, conforme regra da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar)”, afirma o advogado.
Na avaliação de Valio, “a burocracia da ANS e a força política dos convênios médicos” travam a inclusão de métodos como o ABA no Rol de Procedimentos da agência, que é a lista de coberturas obrigatórias que as operadoras devem garantir . “Simplesmente a ANS ignora a ciência baseada em evidência. Importante dizer, por exemplo, que a ANS tem conhecimento pleno que o ABA é obrigatório nos Estados Unidos por lei, no atendimento pelos planos de saúde às pessoas com TEA. Assim, é proposital a inércia da ANS nesta inclusão.”
Aos familiares que tentam conseguir atendimento adequado, Valio recomenda não fazer a denúncia na ANS, por ser, segundo ele, ineficaz. “Infelizmente, o caminho é judicializar, tendo como base a LBI, a Lei Berenice Piana, a Constituição Federal, o Tratado Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência, as súmulas cabíveis e o Código de Defesa do Consumidor”, afirma. Às famílias de baixa renda, a orientação do advogado é recorrer à Defensoria Pública ou ao Ministério Público.
Operadoras não são obrigadas a dispor de profissional apto a executar o método ABA
Procurada pelo Autismo e Realidade, a ANS informou que o Rol de Procedimentos garante aos beneficiários dos planos de saúde em tratamento para autismo cobertura obrigatória de consultas e sessões com terapeuta ocupacional, psicólogo, fonoaudiólogo, fisioterapeuta, e de consultas com médicos de todas as especialidades reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina, como psiquiatria, neurologia e pediatria, além de atendimento em hospital-dia psiquiátrico.
A atualização mais recente do Rol de Procedimentos da ANS foi estabelecida pela Resolução Normativa nº 465/2021, publicada no dia 2 de março.
O documento prevê número mínimo de sessões que devem ser obrigatoriamente cobertas pelos planos – por exemplo, 96 sessões por ano com fonoaudiólogo e 40 sessões por ano com psicólogo ou terapeuta ocupacional. Já as consultas médicas e o atendimento em hospital-dia são ilimitados. A ANS esclarece que esta é a cobertura obrigatória, mas os planos de saúde são livres para oferecer coberturas além do Rol de Procedimentos ou ampliá-la.
A agência informa ainda que as operadoras não são obrigadas a disponibilizar um profissional apto a executar determinada técnica ou método, como o ABA, por exemplo. Caso a operadora possua na rede um profissional habilitado, a abordagem terapêutica poderá ser empregada no atendimento coberto pelo serviço. Se o plano oferecer livre escolha de profissionais, mediante reembolso, o procedimento constante no Rol, realizado com a utilização de determinada técnica/método, deverá ser reembolsado na forma prevista em contrato.
Confira o número de sessões com profissionais especializados em método ABA previstas pela ANS
De acordo com a ANS, o método ABA poderá ser empregado nos seguintes procedimentos:
– Consulta com fisioterapeuta (com diretriz de utilização): cobertura obrigatória de 2 consultas por ano de contrato, para cada novo CID apresentado pelo paciente, e consequente necessidade de novo planejamento terapêutico;
– Reeducação e reabilitação no retardo do desenvolvimento psicomotor, sem limite de sessões;
– Reeducação e reabilitação neurológica, sem limites de sessões;
– Reeducação e reabilitação neuro-músculo-esquelética, sem limite de sessões;
– Consulta/avaliação com psicólogo (com diretriz de utilização): cobertura obrigatória de 2 consultas por ano de contrato, para cada novo CID apresentado pelo paciente, e consequente necessidade de novo planejamento terapêutico, observando os CIDs dispostos na Diretriz de Utilização n° 106, relativa ao procedimento Sessão com Psicólogo e/ou Terapeuta Ocupacional.
Consultas com fonoaudiólogos previstas pela ANS são 96 por ano ou, em média, oito por mês
– Consulta/avaliação com terapeuta ocupacional (com diretriz de utilização): cobertura obrigatória de 2 consultas por ano de contrato, para cada novo CID apresentado pelo paciente, e consequente necessidade de novo planejamento terapêutico, observando os CIDs dispostos na Diretriz de Utilização n° 106, relativa ao procedimento Sessão com Psicólogo e/ou Terapeuta Ocupacional.
– Sessão com psicólogo e/ou terapeuta ocupacional (com diretriz de utilização): cobertura obrigatória de 40 consultas/sessões, por ano de contrato;
– Consulta/avaliação com fonoaudiólogo (com diretriz de utilização): Cobertura obrigatória de 2 consultas por ano de contrato, para cada novo CID apresentado pelo paciente, e consequente necessidade de novo planejamento terapêutico, observando os CIDs dispostos na Diretriz de Utilização n° 104, relativa ao procedimento Sessão com fonoaudiólogo;
– Sessão com fonoaudiólogo (com diretriz de utilização): Cobertura obrigatória de 96 consultas/sessões, por ano de contrato;
– Atendimento/acompanhamento em hospital-dia psiquiátrico (com diretriz de utilização): Cobertura obrigatória de acordo com o médico assistente, de programas de atenção e cuidados intensivos por equipe multiprofissional, inclusive administração de medicamentos, quando preenchido pelos menos um dos seguintes critérios: (…) d. paciente portador de transtornos globais do desenvolvimento (CID F84).
Um projeto de lei que tramita na Câmara dos Deputados prevê a derrubada dos limites em números de sessões anuais necessárias para o tratamento multidisciplinar. O autor, deputado Otto Alencar Filho (PSD-BA) afirmou à Agência Câmara que, ainda que autistas sejam atendidos por planos de saúde, lidam com negativas a procedimentos, interrupções e suspensões no fluxo das sessões terapêuticas.
De acordo com o parlamentar prevalece nos tribunais entendimento favorável à recomendação dos médicos, incluindo as prescrições fora do rol da ANS, mas ainda há decisões contra a cobertura de algumas especialidades, como psicopedagogia, musicoterapia e hidroterapia, entre outras.
Estados e municípios vêm se estruturando para oferecer serviços especializados por meio de convênios
“Os seguros de saúde são empresas privadas e visam lucro”, frisa a promotora de Justiça e assessora de Direitos Humanos do MP-SP (Ministério Público de São Paulo), Sandra Massud. “O que acontece é que pro tratamento do autismo, que é de muito longo tempo e de muitas horas, os planos, os seguros de saúde, eles colocam no contrato aquele ‘x’ que tá lá no Rol da ANS”.
A promotora afirma que atualmente vem sendo credenciadas cada vez mais clínicas que oferecem técnicas ou métodos específicos, como o ABA. “Quando você vai fazer um plano de saúde, você tem opções. Se a pessoa opta por cobertura total, mas não reembolso, usa aquele que a empresa oferece. Se a pessoa opta por pagar mais mas ter um reembolso, ela tem o reembolso previsto no contrato”, diz Sandra.
A questão da judicialização começa quando o número de sessões ultrapassa o previsto pela ANS. Em geral, conta a promotora, as famílias apresentam os recibos, o plano de saúde recusa o pagamento, e se leva isso à Justiça. No momento de fechar o contrato, portanto, é importante conferir se a clínica desejada é contemplada pela cobertura. Há casos em que a própria clínica não credenciada orienta os pais a entrarem na Justiça contra os planos, e isso pode gerar um mercado paralelo de profissionais e clínicas.
Mãe de dois garotos autistas, a professora e ativista Amabile Marchi faz um contraponto em um desabafo em seu perfil Autismo Ao Pé da Letra (https://www.instagram.com/autismoaopedaletra/), em que defende justamente a possibilidade de escolha de serviços dentro do plano. “Nós pais, e os próprios autistas, devíamos poder escolher quem vai nos atender, sem precisar recorrer à justiça pra isso. Afinal de contas, pra que serve plano de saúde então?”.
Amabile não considera que escolher entre as opções oferecidas pelo plano seja realmente poder escolher. “Quero decidir quem vai atender meu filho e o plano tem que pagar esse profissional com o valor que ele pede, com o justo. Mas não, a desvalorização é tamanha que cada vez menos profissionais querem atender por plano e as famílias ficam reféns das clínicas e dos lugares que o plano oferece. Isso não é liberdade”.
Para Sandra, a perspectiva no longo prazo tende a ser positiva, porque os governos estaduais e municipais estão começando a oferecer serviços especializados para o acompanhamento de autistas. “A gente já pensa que o SUS é um sistema ruim, as pessoas vendem essa ideia”, afirma. Porém, segundo ela, por conta da maior conscientização sobre leis e direitos de proteção aos autistas, houve um aumento de ações contra estados e municípios. Como resposta, especialmente no âmbito municipal, vem sendo realizados convênios com clínicas particulares para oferecer atendimento especializado.
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