Carina Morillo: É preciso olhar para entender o autismo

30/07/2021Histórias0 Comentários

Mãe de garoto autista conta que não é preciso ser especialista para enxergar o autista e favorecer a inclusão

Não é preciso ser especialista em autismo para ser capaz de enxergar os autistas e favorecer seu processo de inclusão. É o que afirma a economista argentina Carina Morillo, mãe do jovem autista Ivan Morillo, de 21 anos, em sua palestra no TedxRiodelaPlata 2016.
Carina conta que a partir da chegada do filho, passou a ser uma treinadora de olhares. Ivan é não verbal e usa um tablet para se comunicar. É lá, diz a mãe, que está “todo seu universo de palavras em imagens”.

Ainda criança, Ivan manifestava um dos sinais clássicos do autismo: raramente compartilhava o olhar. Além disso, perdeu seu repertório de palavras, não respondia ao próprio nome, nem a pedidos. “Como se as palavras fossem ruídos”, descreve Carina.

Com sinais clássicos de autismo, filho de Carina foi diagnosticado aos 2 anos e meio

Estes sintomas estão listados entre os mais comuns dos autistas até 18 meses, conforme uma outra palestrante do TED, a pesquisadora norte-americana Amy Wetherby, nos ensina. Entre outros sinais, estão a pouca expressão facial com sorrisos raros ou, que sorria, mas sem compartilhar alegria, e ainda não olhar para um objeto que lhe é apontado, mas para a mão de quem aponta.

Como o autismo se manifesta de forma diferente em cada indivíduo, caso haja suspeita, é importante procurar acompanhamento especializado o mais cedo possível. O diagnóstico e a estimulação precoces fazem muita diferença no desenvolvimento da criança autista e tem impacto também na sua vida adulta.

No caso de Ivan, o diagnóstico veio aos 2 anos e meio. “Ainda hoje me lembro desse momento com muita dor. Eu e meu marido nos sentíamos muito perdidos”, relata Carina. “Não sabíamos por onde começar. Não havia internet, como agora, não se podia pesquisar informação, de forma que esses primeiros passos foram de pura intuição.”

Ivan nasceu em um tempo em que o tabu em torno do autismo ainda era maior do que nos dias de hoje

No começo dos anos 2000, quando Ivan nasceu, o tabu em torno do autismo era ainda maior. Havia pouca representatividade autista na mídia e ainda se apuravam as suspeitas (hoje refutadas) de que as vacinas pudessem causar autismo. A principal referência midiática era o personagem Raymond Babbit, de Rain Man. O termo neurodiversidade havia acabado de ser cunhado pela socióloga australiano Judy Singer, e não estava popularizado.

No Brasil, ainda não havia leis que garantissem os direitos dos autistas como hoje. A Lei Berenice Piana, que estabelece os autistas como pessoas com deficiência, só foi promulgada em 2012. A Lei Romeo Mion, que prevê a emissão de uma carteirinha de identificação, a Ciptea, só entrou em vigor em 2020. No início do século 21, o esclarecimento e o suporte a essas famílias e a perspectiva sobre o futuro de seus filhos ainda era nebulosa.

Aos 2 anos, Ivan impressionou a mãe com a percepção sobre o caminho para as tardes de piscina em família

“A única forma que eu tinha de saber o que se passava com ele, o que ele sentia, era olhando em seus olhos. Mas essa ponte estava quebrada. Como ensinar a vida ao Ivan?”, conta Carina. “Quando eu fazia coisas que ele gostava, aí sim, me olhava; e estávamos juntos.”

A mãe então se dedicou a perseguir momentos em que esses olhares pudessem estar presentes. “Passávamos horas brincando de pegar com sua irmã mais velha, Alexia, e nessa brincadeira de: ‘Vou te pegar!’ nos buscava com o olhar, e eu ali, naquele momento, sentia que ele estava vivo.”

Como Ivan sempre foi apaixonado por água, passar horas na piscina virou parte da rotina diária da família, independente das condições do clima. “Aos 2 anos e meio, em um dia de inverno, de muita chuva, eu o estava levando a uma piscina coberta – porque nem nesses dias deixávamos de ir. Estávamos indo pela estrada, e errei a saída. Ele começou a chorar, sem parar, desconsoladamente, até que peguei o caminho certo e só então ele se acalmou.”

Carina percebeu que a dificuldade de olhar não era só do filho, mas das outras pessoas em relação a ele

Aquele momento ficou marcado na mente de Carina. “Como era possível que com dois anos e meio não respondesse ao seu nome, mas no meio da chuva e da neblina, em que eu não conseguia ver nada, fosse capaz de reconhecer perfeitamente o caminho? Ali me dei conta que o Ivan tinha uma memória visual excepcional, e que essa seria minha porta de entrada.”

A partir de então, Carina passou a tirar fotos de tudo, e usar as imagens como suporte para o aprendizado do filho. Foto a foto, iam ensinando a vida a ele. “E até hoje é dessa forma que Ivan nos conta o que ele quer, o que precisa, e também o que sente.”

A questão do olhar, no entanto, ia muito além da dificuldade de Ivan. “Também estava no olhar dos outros. Como conseguir que não olhassem só o seu autismo, mas que olhassem pra ele, com tudo que ele pode dar? Com tudo que é capaz de fazer? Com as coisas de que ele gosta, e as que não, como qualquer um de nós? Mas para isso eu também precisava fazer minha parte. Eu precisava me animar a soltá-lo. E me custava muito.”

Carina propõe que nos permitamos enxergar: “Com nosso olhar, podemos abrir um mundo ao outro”

Quando o garoto tinha 11 anos, Carina conheceu José, dono de um mercadinho próximo a um lugar onde Ivan recebia acompanhamento. “Contei a ele sobre Ivan, que tinha autismo, e que eu queria que ele aprendesse a caminhar sozinho pela rua, sem ninguém segurá-lo pela mão.” Ela então propôs a ele que o filho, depois da consulta, ajudasse a organizar a prateleira de garrafas de água e receber em troca um pacote de bolachas de chocolate.

“Foi assim durante um ano. Ivan chegava à loja de José, ajudava a arrumar as prateleiras de água, que ficavam com as etiquetas perfeitamente alinhadas, milimetricamente, para o mesmo lado. E saía feliz com suas bolachas de chocolate.”

A abertura do comerciante mostrou a Carina a importância de permitir-se olhar para o autista e de manter a proximidade. “José não é especialista em autismo. Não é preciso ser especialista em algo nem fazer nenhuma façanha para incluir o outro. Simplesmente temos que estar próximos. E se algo nos dá medo, ou não entendemos, temos que perguntar; sejamos curiosos, mas nunca indiferentes”, diz a mãe. “Tenhamos a coragem de olhar nos olhos, porque, com nosso olhar, podemos abrir um mundo ao outro.”

Além de dedicar-se ao filho, Carina é também fundadora da Fundação Brincar Por um Autismo Feliz que atua em prol do diagnóstico precoce do transtorno e de aumentar a qualidade de vida dos autistas desde a infância até a idade adulta.

 

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