Joe Santos: Amor, vida, autismo
Padrasto de menina autista conta como sua relação com a enteada transformou sua visão sobre o transtorno
Imagine que você está dirigindo em uma estrada e vem uma ambulância com a sirene a todo volume. O que você faria? Tentaria se proteger, tapando os ouvidos. Imagine a primeira vez em que esteve em um aeroporto, com o movimento de pessoas, as luzes brilhantes, você busca informações sobre os voos, se confunde com os painéis das lojas. Imagine essas sensações potencializadas ao máximo. Você teria qualquer incentivo para socializar?
Assim o palestrante Joe Santos descreve como é a rotina de boa parte dos autistas que lidam com hipersensibilidade, uma característica comum a quem tem o transtorno. Joe é espanhol e, ao lado de sua mulher, Susana Silva, é um dos fundadores da Vencer Autismo, um empreendimento português de impacto social que atua contra o estigma negativo do autismo.
Joe passou a conviver com uma criança autista em 2009, justamente quando começou a se relacionar com Susana. Caui, a filha mais nova dela, tinha 8 anos na época. A primeira fase de convivência provocou estranhamento em Joe.
Comportamento da enteada fazia Joe se questionar sobre como seria dela no futuro
“Era uma menina que falava sozinha, que não olhava nos olhos, que pegava nos dedos e mexia a mão constantemente. Com qualquer som ficava completamente frustrada e gritava. Entornava os copos com água, quebrava pratos. Tomava sopa com os cabelos dentro. Era difícil de compreender e bastante frustrante”, descreve Joe. “Eu julgava e, às vezes, pensava: ‘O que vai ser desta garotinha?’”
Mas depois de uma viagem aos Estados Unidos para participar de um programa voltado ao desenvolvimento da menina, Joe conta que sua visão mudou. “Em duas semanas, começamos a ver melhorias. Eram pequenas, mas pensamos: “Se consegue mudar um milímetro, será que conseguimos avançar um centímetro? E se avançamos um centímetro, por que não vamos alcançar um metro, e um quilômetro, e uma maratona? Já tínhamos esperança, e a esperança é o que nos permite pôr em ação os sonhos que temos.”
O diagnóstico de autismo de uma criança vem muitas vezes acompanhado de medo e luto pela perda de um imaginário de desenvolvimento típico. “Frequentemente médicos diagnosticam crianças com autismo e dizem aos pais que a sua criança não vai ter amigos, não vai comer sozinha, não vai falar, não vai ser autônoma, vai ser dependente de si toda a vida. Os sonhos destes pais são apagados e a esperança é espezinhada e soterrada”, afirma Joe.
Ninguém pode dizer a uma criança o que ela nunca vai conseguir, diz Joe
A dificuldade de enxergar perspectivas positivas a partir da nova realidade apresentada pelo diagnóstico acaba limitando a busca de possibilidades no desenvolvimento da criança, que pode ir muito mais longe do que é possível imaginar.
“Eu penso que as possibilidades de cada criança são ilimitadas”, afirma o palestrante. “Eu não tenho uma bola de cristal para dizer que esta criança vai ser doutor, engenheiro, vai ser bem sucedida. O que eu sei é que ninguém pode dizer a uma criança o que ela nunca vai conseguir.”
Ele cita o caso da atleta norte-americana Wilma Rudolph, que teve pólio quando era pequena e os médicos chegaram a dizer que ela jamais andaria novamente. Após um trabalho intenso de fisioterapia, ela acabou se tornando a primeira mulher dos Estados Unidos a ganhar três medalhas de ouro em Jogos Olímpicos. Ela costumava dizer que, apesar dos profissionais de saúde terem dito que ela nunca voltaria a andar, sua mãe disse que sim, e ela preferiu acreditar na mãe.
Com sua enteada Caui, Joe passou a se dedicar a sessões individuais de estimulação que durava duas horas. “Quando tu trabalhas com uma criança assim, tu tens que estar 1000% presente. Não podes estar a pensar no trabalho, não podes estar a pensar na lista das compras, não podes estar a pensar no teu passado nem no teu futuro, tens que estar mesmo presente”, conta o palestrante, que tem um sotaque tipicamente português.
Estímulos muito delicados podem por a perder o trabalho de uma sessão mas também ajudam a ter ganhos de longo prazo
O que ele aprendeu nessa tarefa foi que estímulos muito delicados podem por a conexão com a criança a perder, mas também podem gerar ganhos importantes no longo prazo. “Aprendi a valorizar tudo o que temos à nossa volta. Para algumas destas crianças, o som de um ar condicionado pode dar cabo de uma sessão de trabalho com elas. Portanto, apreciar o que temos em volta, apreciar o que é um sorriso, uma intenção, um toque, qualquer situação, um olhar.”
Depois de seis meses de trabalho intenso, que envolveu 800 horas de sessões, Caui passou a interagir com o olhar. “Há cinco anos era extremamente difícil conseguir roubar um olhar da Caui. (…) Hoje fico fascinado e com lágrimas nos olhos quando vejo a Caui interagir com outras pessoas com o olhar. Eu hoje aprecio o valor de um olhar que tanto nos custou conquistar.”
Em contrapartida, conta Joe, ele vê em parques ou restaurantes, crianças com olhos grandes e brilhantes desejando uma conexão com os pais, enquanto eles mexem no celular. Elas parecem pedir: “Quero conexão humana, quero amor”, diz Joe. “Quando eu falo em amar, eu falo em amar com maiúsculas. Amar é aceitar incondicionalmente. Amar é aceitar sem condições. Aceitar a Caui quando come a sopa com os cabelos dentro, amar a Caui quando tens a mão dela na tua enquanto ela tem um ataque epilético e sabes que ela está a fazer o melhor que consegue fazer com o seu corpo.”
Perceber o que gera entusiasmo na criança potencializa o trabalho de estimulação
Entre as chaves desse trabalho intenso de estimulação, diz Joe, está a percepção daquilo que traz entusiasmo à criança. Assim, é possível entender melhor a forma como ela compreende o mundo e estabelecer conexões a partir do que ela mais gosta de fazer.
“Nós trabalhamos com a Caui 32 horas por semana ao longo de dois anos, de um para um. Pegamos nas motivações dela e assim conseguimos compreender o seu mundo. Ela aceitou-nos, porque estávamos a fazer o que ela mais gostava de fazer. Fizemos tudo com muito entusiasmo para que fosse mesmo divertido”, conta Joe.
Caui aprendeu a fazer suas lições de escola, a tomar banho e a lavar o cabelo sozinha. Quando seu irmão mais novo chora, se levanta para entender o que ele quer, ajuda a trocar fraldas, a botar e tirar a mesa, acorda de manhã e se prepara sozinha para ir estudar. “Ela tem tido uma evolução fantástica (…) e hoje é livre para definir o que quer fazer com a sua vida.”
Compreender a criança de forma integrada e não cogitar sua existência sem o autismo é essencial para que ela se sinta amada
Evitar julgamentos e se fazer presente, focar nas motivações individuais para que possam ser estimulados com entusiasmo é essencial para desenvolver o potencial de qualquer criança, diz Joe.
Essa busca e respeito por aquilo que entusiasma a criança passa por aceitá-la por inteiro. No caso de uma criança autista, Joe afirma o seguinte: “Tu não podes amar uma criança e odiar o seu autismo, porque não estarias a aceitar a realidade, não estarias a aceitar a criança.Estarias a passar uma mensagem, que é o que eles percebem, e que é: ‘Não te amo como tu és’”.
Toda essa jornada em torno da enteada trouxe profundas transformações para Joe. “Antes do autismo entrar na minha vida eu era bem sucedido, eu criava empresas, ganhava dinheiro, e achava que ganhar dinheiro e criar mais empresas eram o principal.Nunca na minha vida falei com tanta paixão sobre temas empresariais como hoje partilho convosco as grandes lições que o autismo me tem dado. Por isso, vocês não se surpreenderão quando eu digo que o melhor que aconteceu na minha vida é o autismo da Caui.”
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