Autobiografias escritas por autistas
Relatos revelam desejo de conexão e necessidade de criar canais de compreensão e comunicação para pessoas não falantes
Um autista é capaz de falar? Se sim, o que ele pode expressar? O que um autista tem a dizer? Ao contrário do que se imaginava, existem autistas designados de baixo funcionamento, com dificuldades de exercer diversas atividades básicas do dia a dia, como se alimentar sozinhos, utilizar o banheiro, pegar um objeto, mas que podem se expressar fluentemente pela escrita.
A primeira autobiografia do autista não verbal Birger Sellin é uma compilação de diversos de seus textos pelo jornalista Michael Klonovsky. Em 1992, o jornalista recebeu a ligação de um advogado que achou que ele poderia se interessar pela história do filho de um amigo:
“Um colega meu tem um filho de 19 anos que é autista; ele não falou uma única palavra a partir dos dois anos. Ele foi considerado retardado mental, um caso sem esperança – até que inesperadamente começou a escrever. Agora este jovem homem – seu nome é Birger Sellin – senta no seu computador e escreve coisas incríveis toda noite (Klonovsky, 1995, p. 1). “
Birger Sellin demonstra sofrimento de estar em um mundo incapaz de compreender que poderia se comunicar
Ao ler os textos do rapaz, o jornalista fica impactado. Ao contrário dos escritos de alguém isolado que não teria interesse em participar do resto do mundo, como havia imaginado encontrar a partir dos seus estudos, Michael percebe haver um pedido de ajuda de alguém em extremo sofrimento que se sentia vivendo em um mundo que não o compreendia.
Após se emocionar com a densidade da escrita de Birger, Michael vai até a casa da família Sellin, perto de Berlim, capital da Alemanha. Ao avistá-lo, Birger anda em torno da mesa onde Michael estava e senta no sofá. Seu olhar agitado, vacilante, inquieto, flutuante, tão logo deixa de olhar Michael, já estava circulando por toda a sala.
Aparentemente alheio à presença dos outros, Birger começa a balançar o corpo de maneira repetitiva e monótona, com o olhar fixando o nada. Depois de alguns movimentos, ele senta no chão, fazendo alguns barulhos com a respiração que se deslocam para um murmúrio, um gemido, enquanto mexe em inúmeras miçangas de vidro e bolinhas de gude.
Diante dessa cena, Michael fica em choque. Não sabe o que pensar. Como alguém com aqueles comportamentos poderia escrever textos tão lúcidos? Não somente eram textos de alguém inteligente, mas eram escritos dotados de excelente qualidade literária.
Jornalista que editou textos de Birger se chocou com o comportamento do autor
Impactado pela discrepância entre a lucidez e a complexidade dos escritos e os comportamentos e a aparência de Birger, Michael decide persistir e propõe que ele escreva um livro, reiterando a admiração por seus textos.
Inicialmente, não há nenhuma reação. Então, Birger fica cada vez mais agitado e começa a bater na própria face, berrando cada vez mais alto e mordendo as próprias mãos. Inesperadamente, Birger sai da sala e só é possível escutar seus gritos ecoando por toda casa.
Após inúmeros encontros com Birger, além de entrevistas com pessoas do seu cotidiano, Michael acentua o mistério da disparidade entre seus escritos e seus comportamentos.
“Este é o único meio de mostrar como eu penso”, diz Birger sobre a escrita
Aos poucos, a compreensão de Michael sobre Birger e o autismo se sofistica. Após incontáveis releituras dos textos, o jornalista tem a sensação de se deparar com as palavras de um jovem homem “profundamente triste, repleto de triste solidão”, que o lembravam dos escritos de Artaud, Nietzsche e Holderlin.
É assim que Birger fala de sua experiência autista:
“Eu quero que você saiba como é dentro crianças autistas sem tocar na escrita nós somos vamos dizer tão amedrontados é um medo como nenhum outro pode você imaginar como é vivendo em um sistema social que está sempre dizendo que você é louco (…) eu quero que todo mundo saiba que crianças autistas não são burras como as pessoas frequentemente pensam eu não sou uma pessoa real sem a escrita porque isto é meu único meio de expressão que eu tenho e este é o único meio de mostrar como eu penso e eu faço isto também mas isto ainda é muito difícil eu acho isto muito exaustivo”.
Relatos revelam necessidade de abordagens inovadoras e percepções singulares sobre a sociedade
Assim como nos escritos de Birger, as autobiografias de outros autistas evidenciam que eles têm muito a dizer a respeito de si, do mundo, e de como pensamos e teorizamos o autismo.
As autobiografias de outros autistas e de pais de autistas evidenciam que a maneira de poder se relacionar com os outros, de construir a apreensão de si, dos outros e da realidade, enfim, a maneira do autista poder estar no mundo, retrata um modo de funcionamento psíquico original e singular, que exige uma abordagem diferente para ser compreendido.
Indiano Tito Mukhopadhyay é autor de quatro livros de reflexões autobiográficas
O jovem autista indiano Tito Rajarshi Mukhopadhyay, diagnosticado com um quadro severo de autismo, tem uma intensa produção de estórias, poemas, contos e reflexões autobiográficas publicada em quatro livros.
Na infância, foi diagnosticado inicialmente com deficiência intelectual, demonstrando incapacidade de realizar atividades básicas do cotidiano ou demonstrar compreender o que era dito. Tito manifestava isolamento social, retraimento, severa dificuldade para coordenação motora, comportamentos estereotipados, busca de mesmice e mutismo.
O prognóstico dado à família Mukhopadhyay era o de que ele não seria capaz de ler, escrever ou compreender o mundo à sua volta. Ao contrário dessas previsões, sua mãe apostou que havia um sujeito pensante e sensível por trás das manifestações autísticas, e decidiu educar Tito, lendo para ele os mais diversos assuntos tanto em bengali quanto em inglês.
Pouco a pouco, Tito ganhou independência para escrever sozinho seus relatos
Tito se mostrava interessado e capaz de compreender as mais variadas temáticas, mas demonstrava uma impossibilidade de falar. A mãe, então, inventou um método pelo qual ele apontava as letras em um tipo de tabuleiro.
Ela começou a utilizar esse método alternativo de letramento quando Tito tinha 3 anos e meio. Aos 8, ele já era capaz de escrever, expressar seus pensamentos e sentimentos, apontando letra por letra nesse tabuleiro, para construir escritos lúcidos e surpreendentes.
Inicialmente ele precisava do contato da mãe oferecendo um apoio à sua mão, que progressivamente se deslocou para um leve toque em seu ombro e, finalmente, pôde ser retirado qualquer contato, e ele se tornou capaz de escrever sozinho, utilizando atualmente programas de computador que leem o que ele digita.
Em um de seus textos, Tito diz que sonha encontrar um espaço de respeito à diferença: “Um dia, eu sonho que nós poderemos crescer em uma sociedade madura onde ninguém tenha que ser “normal ou anormal”, mas apenas seres humanos, aceitando qualquer outro ser humano – pronto para crescer juntos”.
Ido Kedar começou a escrever aos 7 anos e contrariar o que se deduzia a partir de seu comportamento
Já Ido Kedar, diagnosticado autista com 2,8 anos, escreveu seu livro autobiográfico, reunindo seus textos escritos até os 15 anos de idade.
Ido manifestava os sintomas típicos de um quadro kanneriano de autismo com mutismo, comportamentos estereotipados, busca de mesmice, recusa de contato visual, dificuldade nas relações sociais, intensa agitação motora e movimentos de auto-estimulação. Ele teve experiências de ser erroneamente diagnosticado com déficit intelectual e, por ser incapaz de realizar tarefas simples ou manifestar comportamentos adequados a diversas situações, ele foi considerado por muito tempo como um caso de autismo de baixo funcionamento.
Quando Ido começou a escrever seus textos, aos 7 anos de idade, ele pôde, finalmente, mostrar que ele era alguém inteligente, pensante, sensível, desejoso de se expressar e de se relacionar com os outros.
Experiência de escrita permitiu a Ido reforçar sua autoestima e criar perspectiva de futuro
Ido estabelece uma relação terapêutico-educativa com Somma, mãe de Tito, cujo encontro é descrito por Ido como a sua salvação psíquica. Somma permitiu-lhe vivenciar o encontro com outro humano que conhecia as nuances do funcionamento psíquico autístico, que apostava que ele era um sujeito pensante e sensível e que o ajudava a se comunicar.
O livro de Ido é uma coletânea de material autobiográfico. Nele, podemos notar que o seu estudo de seus sintomas, a sua compreensão do autismo, a sua análise na sua maneira de viver a vida, e a sua possibilidade de articular tudo isto pela interação e diálogo com Somma, permitiram que ele elaborasse uma análise precisa de seu funcionamento autístico, recuperando a sua possibilidade de apostar em si mesmo, e criando projetos para o futuro (fazer uma faculdade, trabalhar em educação e autismo, ter uma namorada, ter mais amigos, obter uma vida mais autônoma).
“Experts falam sobre mim com tamanha convicção, que presumem que eles é que estão certos, e eles não estão”, diz Ido Kedar
A análise dos escritos autobiográficos torna evidente quanto todos os métodos de abordagem do autismo poderiam se beneficiar com os ensinamentos que podem ser depreendidos dessas leituras.
Nesse âmbito, Ido Kedar é quem nos alerta que “eu fui bombardeado por experts que falam sobre mim com tamanha convicção, que presumem que eles é que estão certos, e eles não estão”.
Ele tinha que ouvir os especialistas “contando ao mundo insights errados e eu sabia que a minha vida seria pior porque eles tinham poder sobre mim na minha educação e em tudo mais e eu estava preso” sem poder se expressar.
Ele conta que caso seus pais tivessem limitado suas potencialidades ao que os especialistas afirmavam e seus prognósticos, ele ainda estaria restrito a um currículo de 1+1 e ABC. Mais do que uma crítica a uma abordagem específica do autismo, sua ênfase é de que todos os especialistas têm muito a aprender com o que os autistas têm a dizer, dando destaque à voz dos autistas não verbais.
“Autismo é difícil porque você quer agir de um jeito, mas você não pode sempre fazê-lo”, diz Carly Fleischmann
Por fim, menciono alguns trechos escritos por uma autista não falante, Carly Fleischmann, outra jovem autista que somente pode se expressar pela escrita
“É difícil ser autista porque ninguém me entende. As pessoas me olham e já supõem que eu sou burra porque eu não posso falar ou porque eu ajo diferente deles. Eu acho que as pessoas ficam assustadas com o que aparenta ou parece diferente deles.
“Eu sei que eu posso agir ou parecer tola para alguns de vocês, mas eu tenho autismo que me faz agir deste jeito. Muitas crianças e pessoas mais velhas também têm autismo. Eu não sou a única. Autismo é difícil porque você quer agir de um jeito, mas você não pode sempre fazê-lo. É triste porque as pessoas não sabem que às vezes eu não posso me parar e elas ficam bravos comigo.”
E, enfim, Birger, já mencionado acima:
eu aspiro à calma
e eu continuo a levar mal minha vida com ataques idiotas
eu desejo a paz e provoco o caos
(…)
eu desejo também o riso e eu grito
solitário eu sou
solitário eu permanecerei
se eu não saio de atitudes autísticas estrangeiras ao mundo eu não quero mais ser solitário
ah quando chegará o dia
“Falar é praticamente impossível para mim. Pensar não é”, desabafa Ido
Para concluir, retomo os escritos de Ido, que enfatiza a distinção entre a impossibilidade de poder falar e usar do próprio corpo para expressar seus pensamentos e sentimentos e a viabilidade de poder se expressar pela escrita e se comunicar.
“Falar é praticamente impossível para mim. Pensar não é. Falar exige que meu cérebro, boca e língua trabalhem juntos. Pensar não”.
Ido assinala ter vivido toda a sua infância aprisionado e, quando pôde se expressar pela escrita, sua missão de vida virou libertar aqueles que ainda estão presos, lutando para que o saber de cada autista seja reconhecido, que lhes seja viabilizado o acesso à escrita como modalidade de comunicação e que eles sejam endereçados como potenciais interlocutores.
A liberdade do autista não verbal de poder se comunicar pela escrita e ser incluído na vida social, participando de uma classe regular são algumas das prioridades de Ido.
“Eu quero que as pessoas saibam que não falar não é o mesmo que não pensar; que motricidade fina pobre não é o mesmo que não pensar; que ações impulsivas são diferentes do que não compreender a diferença de certo e errado; que expressão facial pobre não é o mesmo que não ter sentimentos; que matar as pessoas de tédio é negá-las a vida, a liberdade e a busca de felicidade.
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Recomendações de Leitura
Tenho me dedicado à leitura de textos autobiográficos escritos por autistas e suas famílias, tanto autistas não falantes, designados de baixo funcionamento, quanto de autistas falantes, incluindo quadros de alto funcionamento e/ou quadros diagnosticados como Asperger.
Para aqueles que se interessarem a aprofundar seus conhecimentos nessa área, sugiro a leitura dos livros escritos pelos autistas não verbais Birger Sellin, Ido Kedar, Tito Mukhopadhyay, Carly Fleischmann, Lucy Blackman, Naoki Higashida.
Já dos autistas falantes, sugiro a leitura dos livros autobiográficos regidos por Daniel Tammet, Dawn Prince-Hughes Donna Williams, Gunilla Gerland, Josef Schovanec. Além disso, complementarmente recomendo a leitura dos livros redigidos por pais de autistas com destaque para os livros de Clara Park, mas também os textos escritos por Idoux-Thivet, Julia Romp, Kristine Barnett, Hodges, Laurence e Thierry Rivat, Mary Callahan, Paul Collins, Ron Suskind, Roy Grinker e Rupert Isaacson.
Marina Bialer
Psicóloga pela USP onde obteve seu doutorado em Psicologia Clínica e seu pós-doutorado em Psicologia Experimental. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, é autora de Autobiografias no Autismo (Toro Editora).
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