Neurodiversidade: primeiros passos – parte 1
Após lançar o primeiro livro brasileiro sobre o tema, o jornalista Tiago Abreu conta como a ideia criou tensões e transformou visões sobre o autismo
“O que é neurodiversidade?”. O primeiro livro brasileiro que se dedica a responder essa questão foi lançado neste ano pelo jornalista Tiago Abreu. Autista diagnosticado tardiamente – já no primeiro ano da faculdade – Tiago é também um dos criadores do podcast Introvertendo, o primeiro do país produzido e apresentado apenas por autistas.
O novo passo do jornalista para o amadurecimento das discussões sobre autismo no país é uma obra curta, disponível em formato físico ou digital, com linguagem simples e acessível. Qualquer pessoa que se interesse em entender os pressupostos básicos sobre neurodiversidade encontra nele o necessário para se situar nas discussões, além de referências para se aprofundar nos estudos.
Termo neurodiversidade foi registrado pela primeira vez no final da década de 1990, por socióloga autista
A publicação chega cerca de 30 anos após o primeiro registro do termo neurodiversidade pela socióloga australiana Judy Singer, que tem mãe e filha autistas e também foi diagnosticada com o transtorno. Neurodiversidade, segundo Singer, é a inesgotável variedade de composições neurológicas humanas. Assim como a biodiversidade inclui todos os seres da natureza, a neurodiversidade reúne todas as composições neurológicas possíveis. Portanto, típicos e atípicos somos, todos, neurodiversos.
A visão de Singer contribuiu para reforçar a ideia do autismo como uma condição inerente às pessoas, não sendo, portanto, passível de cura. O conceito, aparentemente simples, provocou uma série de tensões e transformações na comunidade autista, como relata Tiago ao Autismo e Realidade.
Dividimos a conversa em duas partes. Na primeira, ele conta o que o levou a escrever o livro, como escolheu o formato e a estrutura e como foi o processo de publicação. O jornalista também explica porque o termo é considerado controverso. Confira a primeira parte da entrevista:
Tiago conta que montou em uma semana a estrutura básica do livro
– Você conta no episódio 202 do podcast Introvertendo que decidiu escrever o livro em janeiro de 2021, após uma conversa com um de seus amigos, o ativista Willian Chimura. Em uma semana, você já tinha o material escrito. O que mudou na concepção do livro desde esse primeiro “sprint” de uma semana até encontrar uma editora e lançar o livro, em fevereiro de 2022?
– Quando eu tive a conversa com o William, logo após a chamada eu senti muita vontade de escrever o livro, então eu estruturei os capítulos. O que eu fiz basicamente foi estruturar os capítulos e fazer uma escrita inicial de cada capítulo, ou pelo menos inserindo os tópicos.
Na primeira semana, eu tinha escrito pelo menos aquilo que era considerado básico, relevante para todos os capítulos. No momento que eu terminei essa escrita básica, eu tive também algumas questões pessoais, e aí fui aprofundando ou melhorando as lacunas de alguns pontos.
Deixei o texto descansar, depois eu fui conferir a bibliografia que eu tinha citado, revisando de novo para ver se eu tinha explicado alguma coisa errada, se alguma coisa fazia sentido ou não. Fui fazendo essa etapa de aprofundamento, e aí chegou o momento que eu percebi: olha, isso aqui eu preciso explicar melhor, e aí o livro foi ganhando o corpo. Mas o esqueleto – quais são os capítulos, a estrutura do livro – isso eu pensei tipo muito rápido, nessa primeira semana.
Pandemia, questões pessoais e mudanças de cidade prolongaram o processo de publicação
– Quais foram os momentos mais difíceis ao longo deste processo? Como a pandemia influenciou o processo?
– Eu acho que os momentos mais difíceis ao longo desse processo foram relacionados principalmente a dois aspectos. Primeiro, à pandemia. A pandemia teve um impacto muito grande, não só na produção do livro, como na publicação. Primeiro, porque o pessoal da editora em que eu publiquei o livro teve problemas com covid, e isso interferiu no tempo de produção e de lançamento.
Pessoalmente também, emocionalmente, porque 2021 foi um ano muito cheio para mim. Eu tinha acabado de ingressar no mestrado, a pandemia num contexto alto, e teve o livro, eu me mudei para Porto Alegre, uma nova cidade, um novo contexto. Então minha vida estava intensa.
O livro acabou sendo uma gestação de elefante – eu poderia dizer assim. Tive o início da escrita no início de 2021, e o livro só foi ficar pronto de verdade – eu recebendo livro físico em mãos – em dezembro. Foi um ano inteiro trabalhando no livro: processo de escrita, revisão, perguntei opinião de algumas pessoas, aí o livro voltou para mim de novo, escrevi – aquilo que eu já falei lá no episódio 202 [do podcast Introvertendo, disponível neste link].
A pandemia teve um efeito muito forte sobre esse processo de produção. Se não fosse a pandemia, talvez o livro tivesse ficado pronto mais rápido. Mas eu acho que, no final das contas, considerando o tempo que o mercado editorial também tem, um livro bem feito e revisado, a gente conseguiu fazer as coisas com calma no final das contas.
Ideia de criar um livro de bolso foi inspirada na coleção Primeiros Passos da editora Brasiliense
– Por que decidiram por um livro de bolso e quais foram os desafios de compactar toda a informação disponível sobre neurodiversidade em tão poucas páginas?
– A ideia de fazer um livro de bolso foi minha. Desde o início, eu já propus isso direto para editora, utilizando como referência a coleção Primeiros Passos da editora Brasiliense. Porque acho ela muito interessante.
Como um livro poderia dar informações detalhadas, mas ao mesmo tempo ser um pouco mais curto, pequeno, para que as pessoas conseguissem manusear o livro com facilidade? E, mais do que tudo, também: um livro de bolso seria mais acessível em termos de preço, ainda mais agora que a gente vive um contexto de crise econômica muito profunda no Brasil, fazer um livro sobre neurodiversidade grande e denso seria interessante? Seria, mas talvez ele não tivesse a mesma penetração desse livro [mais curto].
Foi um desafio novo que eu me propus eu nunca tinha escrito no livro de bolso. Mas eu gostei muito da ideia, sabe, isso me obrigou, desde o início do conceito do livro, a sintetizar bastante.
Eu queria focar o livro em cinco grandes capítulos e era tudo com C. A ideia original era que os cinco capítulos começassem com a letra C. A primeira era contexto; a segunda, conceito; a terceira, consequências; a quarta, críticas e a quinta eu não lembro qual era a palavra. Lembro que era alguma coisa com C.
Depois, nesse processo, a editora resolveu mudar o nome dos capítulos, e dividiu o último capítulo em dois. Teria um “Neurodiversidade e autismo no Brasil”, e ele virou um capítulo à parte.
Eu já tava muito sintetizado na ideia de que se eu for falar sobre neurodiversidade, eu tenho que fazer um contexto histórico sobre autismo; eu tenho que conceituar a neurodiversidade; tenho que falar do impacto disso, que são as consequências; as críticas e os temas atuais. Tudo o que passar disso já é uma coisa mais profunda, que pode ficar reservada para um debate futuro.
Foi mais ou menos isso, eu já fixei a ideia de livro de bolso desde o início sobre essa proposta e a coisa fluiu.
Em “O Que é Neurodiversidade”, Tiago expora uma narrativa literária, diferente de seu primeiro livro “História e Paratinga’
– Como já ter escrito um primeiro livro (sobre a história de Paratinga, na Bahia, ainda na faculdade) contribuiu para a nova produção, mesmo sobre um tema completamente diferente?
– Do ponto de vista da obra em si, não tem relação direta nenhuma entre o “Histórias de Paratinga” e o “O que é Neurodiversidade”.
Primeiro, por causa do tempo. O “Histórias de Paratinga” levou três anos e meio para ficar na forma final. Comecei a escrever as primeiras coisas dele em 2016 e ele foi publicado em 2019.
Em termos de gênero também, porque o “Histórias de Paratinga” é praticamente um livro de crônicas, é um livro jornalístico – é mais jornalismo literário, na verdade. É um livro que reflete muito uma pessoalidade minha, um livro em que eu me coloco. Eu sou um narrador-personagem da história, participo da história, estou nos lugares, eu que viajo, converso com as pessoas.
“O que é Neurodiversidade” é totalmente o oposto. Porque é um livro curtinho, o “Histórias de Paratinga” é um livro grande, denso, de 300 páginas. No “O que é Neurodiversidade” eu não assumo um papel direto como personagem na história do livro. Meu papel é muito impessoal, eu não falo nem sobre o meu próprio diagnóstico de autismo.
E ele tem uma proposta de ser um híbrido de um livro que traga umas informações quase no viés jornalístico, mas ao mesmo tempo é um livro que tem um foco acadêmico. Eu pensei principalmente nesse livro para academia, pelo fato da gente não ter uma bibliografia sobre o assunto,
Tiago é questionado, mas ainda não tem planos de publicar um novo livro
Nesse sentido mais de comparação entre os dois livros, não há uma relação. Foi um trabalho totalmente diferente. E foi totalmente intencional também, porque a minha perspectiva pessoal é que um livro é uma coisa muito importante, então não dá para escrever sobre qualquer coisa ou fazer qualquer livro só para vender.
Esses dois livros, eles tinham um motivo forte para existir. É por isso que eles existem. As pessoas até me perguntam assim: “Quando virá o próximo?”. Eu não sei. Eu não me vejo no momento escrevendo outro livro. Se alguém me der uma ideia boa aí vai. Mas esses dois livros tiveram um propósito específico nesse sentido.
Um outro ponto é que, do ponto de vista editorial, foi muito mais tranquilo. Quando eu escrevi o “Histórias de Paratinga”, eu fiz ele totalmente independente. Em todo o processo de escrita, revisão, é claro que eu tive uma ajuda editorial da minha orientadora na época, uma designer fez a diagramação do livro, e eu fiz 4 unidades para banca do TCC [Trabalho de Conclusão de Curso]. Depois desse processo, comecei a procurar editoras que viessem a realmente publicar o livro e não só imprimir, como eu tinha impresso.
Experiência de publicação anterior deu traquejo a Tiago para lançar o novo livro já em 2022
Encontrei o pessoal da Canone Editorial e foi na primeira experiência do “Histórias de Paratinga” que eu comecei a ter o maior aprendizado sobre o funcionamento e as regras do mercado editorial.
Eu tinha escrito o livro em 2018 e queria que ele fosse publicado o mais rápido possível. Depois, acabei aprendendo que não é dessa forma que funciona. O livro só saiu no finalzinho de 2019. Quando escrevi “O que é neurodiversidade”, já escrevi com essa perspectiva, porque eu queria que ele estivesse na mão das pessoas em 2022, essa era minha certeza.
Então, me programei nesse sentido. Eu sabia já os prazos, sabia como o pessoal da editora trabalhava, quantas vezes o livro seria revisado ou não, a composição do projeto gráfico, diagramação. Foi uma experiência do ponto de vista da obra em si totalmente diferente, mas eu acho que eu aprendi muito sobre o mercado editorial.
Outra coisa também, sobre a escrita do livro, é que “O que é Neurodiversidade” é um livro que não é regional como “Histórias de Paratinga”. O leitor de “Histórias de Paratinga” é quem é da cidade ou tem contato com a cidade. “O que é neurodiversidade” pode interessar qualquer pessoa de qualquer lugar do mundo. Então foi uma coisa totalmente diferente e isso se refletiu também na procura do livro também. Gente do país inteiro se interessou pela obra, mas isso aí é outro assunto.
Ideia de neurodiversidade pressupõe que não se deve fazer juízo de valor sobre diferenças neurológicas
– No Introvertendo, você conta que um dos desafios de escrever “O que é Neurodiversidade” foi abordar um tema controverso. Como um conceito que propõe respeitar cada pessoa dentro da particularidade de suas composições neurais pode ser controverso?
Eu acho que a questão da neurodiversidade ser considerada um tema controverso tem razões em muitos aspectos. A primeira diz respeito até à própria composição do ativismo autista, por exemplo. A gente sabe que neurodiversidade é um assunto muito mais amplo, não é só restrito ao autismo. Mas a história da discussão sobre a diversidade está muito circunscrita ao autismo.
O ativismo autista, ele surge tensionando várias questões que já eram meio que consensuais ou estabelecidas entre profissionais e famílias: de que o autismo era algo essencialmente ruim, de que os prejuízos do autismo deveriam ser minimizados ao máximo e não reinterpretados de alguma forma, tinha muito grande a ideia de cura do autismo.
Eu não acho que a ideia de neurodiversidade original seja radical. É claro que estou olhando à luz do momento que a gente vive hoje, que é um outro momento da sociedade. Mas a ideia de neurodiversidade não vai dizer simplesmente “autismo é bom”, “autismo é um estilo de vida”. Vai falar que a gente não deve fazer juízo de valor sobre as diferenças. Porque as diferenças, por mais que elas tragam sofrimento, elas também fazem parte daquilo que nos constitui como sociedade. A sociedade não é formada por pessoas iguais.
Mas eu vejo que essa controvérsia nesse sentido, pela formação do ativismo autista, e também pela interpretação incorreta que as pessoas têm da neurodiversidade. As pessoas, muitas vezes de forma crítica, vão entender “ah porque neurodiversidade é aquela ideia que propõe que o autismo é só um estilo de vida, não é uma deficiência”. Então isso acaba sendo controverso.
Conceito de neurodiversidade traz tensões às discussões sobre saúde mental
A outra parte pela qual ele é controverso é a forma como a discussão sobre saúde mental se consolidou, não só no Brasil quanto no exterior. No Brasil, a gente teve uma reforma psiquiátrica e a luta antimanicomial, que foi principalmente criada e sustentada com base em pessoas que tinham principalmente como referencial teórico a psicanálise.
As pessoas com base na análise promoveram um papel muito importante no Brasil que é a reforma psiquiátrica, que não é algo que deva ser jogado fora. Só que a gente sabe que profissionais da saúde mental – que muitas vezes têm esse viés psicanalítico ou uma influência psicanalítica – rejeitam muito a ideia de autismo, por exemplo, com uma identidade ou como algo biológico. E esse é um dos pressupostos da neurodiversidade.
É muito comum no ativismo autista, a ideia do autismo como algo que se nasce autista, se é autista. E muitas vezes as pessoas que pertencem a essa lógica da discussão da saúde mental, principalmente baseada na psiquiatria e na luta antimanicomial, vêem com muita preocupação essa ideia da pessoa assumindo o seu transtorno como uma identidade própria e isso gera muitos questionamentos. Então, eles torcem o nariz para a neurodiversidade, e eles criticam claramente, e vão dizer que isso é quase uma forma de essencialismo biológico.
Então a neurodiversidade é uma ideia controversa porque não é bem aceita entre todos os familiares – principalmente aqueles que vão falar do autismo severo, por exemplo, e não vão se ver como parte dessa discussão seja porque entendem mal a neurodiversidade ou porque têm conflitos com autistas. A neurodiversidade é também um tema controverso porque muitas pessoas que trabalham com saúde mental, e que fazem muitas vezes uma discussão mais aprofundada de saúde mental, rejeitam a expressão ou vêem ela com preocupação.
A segunda parte desta entrevista será publicada na próxima quinta-feira (4).
Escrito por Clarice Sá, Teia.Work
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