6 razões para você nunca mais dizer que alguém “nem parece autista”
Autistas que precisam de baixo grau de suporte lidam no cotidiano com quem duvide de seu diagnóstico
O diagnóstico precoce do autismo é visto como algo necessário para uma maior qualidade de vida do indivíduo e sua família. Por isso, todo um esforço de conscientização de mães e pais é feito por profissionais de saúde para que o transtorno possa ser detectado o mais cedo possível e o desenvolvimento da criança seja explorado ao máximo dentro de suas potencialidades.
Por outro lado, o diagnóstico tardio de autismo é visto como uma conquista depois de anos de um sentimento de inadequação que pode ser, enfim, compreendido, legitimado e acolhido. Alívio, autoconsciência e autocompreensão estão entre os sentimentos descritos por autistas adultos entrevistados neste blog.
Ainda assim, apesar de um empenho que envolve horas de espera em consultórios de diversos especialistas em saúde, avaliações multidisciplinares, diferentes testes e questionários, apreensão, dúvidas sobre o presente, resgate do passado e preocupações com o futuro, há quem tenha que escutar de pessoas alheias a todo esse cansativo processo a seguinte frase: “nossa, mas nem parece autista”.
Este é o item número 1 desta lista de razões: quando esta frase é dita, um trabalho cansativo, que envolve profissionais de diversas áreas e que gera um profundo desgaste nas famílias, é simplesmente ignorado.
Duvidar do diagnóstico de um autista é deixar de lado suas dificuldades e os serviços necessários para atendê-lo
Influenciadores digitais que se dedicam à conscientização do autismo frequentemente mencionam situações em que seu diagnóstico é posto em dúvida. É uma situação comum entre autistas popularmente chamados de “leves”, mas que preferem ser nomeados como autistas com baixo grau de suporte ou autistas de nível 1.
Razão número 2: quando esta frase é dita, as dificuldades e os serviços necessários para atendê-las de forma adequada também são deixados de lado.
A divisão médica atual no autismo vai de 1 ao 3. O nível 2 tem médio grau de suporte e o 3, alto grau, com necessidade de apoio para demandas básicas para o dia a dia – como por exemplo, a higiene íntima.
Os autistas de nível 1 são menos dependentes. Conseguem se inserir com menor dificuldade no mercado de trabalho e no ambiente universitário, por exemplo. Ainda assim, é importante lembrar: dados dos Estados Unidos apontam que 85% dos autistas graduados estão sem emprego. As dificuldades permanecem, são apenas menores.
Autistas não têm fenótipo comum porque autismo é um espectro: se manifesta de infinitas formas
A razão número 3 é muito simples: não existe um fenótipo para o autista. Fenótipos são características físicas que manifestam determinada condição e são facilmente observáveis. Pessoas com síndrome de Down, por exemplo, possuem baixa estatura, pescoço largo e olhos puxados. No caso do autismo, não há uma caraterística comum. Por isso, é impossível dizer apenas pelo olhar se alguém parece ou não autista.
Para tornar ainda mais clara esta explicação, chegamos à razão número 4, que está relacionada ao nome científico do autismo: TEA ou Transtorno do Espectro Autista.
Nomear o transtorno como um espectro foi um marco histórico capitaneado pela psiquiatra e pesquisadora britânica Lorna Wing, que era mãe de uma menina autista. A partir de um extenso trabalho de pesquisa desenvolvido no porão de um hospital em 1972, Wing passou a compreender que o autismo se manifestava de múltiplas maneiras, com várias intensidades.
Comorbidades, síndromes e distúrbios sensoriais estão entre as múltiplas características possíveis dos autistas
O autismo pode ocorrer associado ou não a diferentes síndromes – como a de Down, por exemplo. Também pode estar associado ou não a diferentes comorbidades – como TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade) ou TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo).
Os autistas podem ter ou não stims ou estereotipias, que são movimentos repetitivos que servem para extravasar o excesso de estímulos sensoriais. Os stims podem ocorrer de múltiplas formas – puxar o cabelo, movimento pendular do corpo, necessidade de mexer os dedos ou as mãos. Autistas também podem ter distúrbios sensoriais como hipo (falta) ou hiper (excesso) sensibilidade, em diferentes intensidades, se manifestando de formas diversas em diferentes partes do corpo.
Estas são apenas algumas das características, que podem se apresentar em um sem número de maneiras e intensidades. É por isso que se diz que, se você conhece um autista, você conhece apenas um autista.
Personagens de filmes, livros e séries nos ajudam a compreender a diversidade do autismo
Chegamos à razão número 5. Guiar-se pelo que se acredita ser o estereótipo de uma pessoa com autismo pode até mesmo prejudicar o acesso dela ao diagnóstico, como alerta a atriz australiana Tashi Baiguerra. Há o que se chama de geração perdida de autistas não diagnosticados na década de 1990 justamente porque naquele momento histórico o estereótipo era muito ligado ao personagem Raymond Babbit, do filme Rain Man, ganhador do Oscar.
Babbit era um autista com savantismo ou síndrome de Savant. As pessoas com esta síndrome costumam ter uma memória e uma habilidade matemática excepcionais, associadas a uma profunda dificuldade de interação socioemocional. O sucesso estrondoso do filme na época fez com que o imaginário em torno do autismo ficasse estritamente relacionado a essa maneira de ser. Daí a importância dos novos personagens de filmes, livros e séries de TV como Atypical, Everything is Gonna Be Ok, As We See It e Amor no Espectro, entre outras. Elas nos ajudam a ampliar nosso repertório sobre as diferentes formas de ser autista.
Influenciadora Jú Maia divide com seguidores o desconforto de ver o diagnóstico questionado
Hoje contamos também com um amplo leque de autistas influenciadores que nos ajudam a compreender que as diferentes formas de ser autistas vão além das manifestações biológicas do transtorno, mas também incluem questões sociais, como idade, raça, identidade de gênero e sexualidade.
Uma das mais divertidas – e desbocadas – é a bióloga e mestranda em neurociências Jú Maia, uma mulher cis lésbica. Na última semana, ela fez duas publicações em que abordou o tema. A primeira traz um vídeo em que ela aparece sorrindo, com a legenda: “Eu contando pra alguém que sou autista”. Em seguida, aparece triste e a legenda muda para: “Aí a pessoa fala que é mentira”. Uma terceira cena mostra Jú inconformada com a mão no queixo e a última legenda: “E que estou arrumando doença pra mim”.
Autismo não é doença e, portanto, não tem cura; autistas e típicos compõem a neurodiversidade humana
Nos comentários, uma seguidora responde com ironia: “Eu: tenho laudo, quer ver? Está assinado por dois médicos”. Uma outra lamenta: “É o que mais eu escuto do meu filho”.
Esta publicação traz mais um elemento para a discussão: autismo não é uma doença, é uma condição neurológica. Juridicamente os autistas são considerados PcDs (Pessoas com Deficiência) e possuem direitos específicos, como a carteirinhas de identificação prevista na Lei Romeo Mion.
O conceito de neurodiversidade ajuda a compreender o autismo não como doença mas como condição. Neurodiversidade é a variedade de composições neurológicas humanas, sejam elas típicas ou atípicas. Ser autista, portanto, assim como ser uma pessoa neurotípica é fazer parte desta ampla composição.
Em um segundo post, Jú faz uma lista das “top 5 piores coisas que todo neurodivergente já escutou na vida”:
Mas você é tão bonito pra ser autista
Mas como assim você faz faculdade, você trabalha?
Nossa, mas como assim só descobriu depois de adulto?
Mas como assim você é autista? Autista adulto?
Mas você não tem cara
Autistas são diversos, mas têm algo em comum: todos merecem respeito
Aqui, Jú traz dois novos tópicos para a discussão:
Autistas, como qualquer ser humano, podem ser bonitos ou feios, dependendo dos padrões estéticos de quem os vê;
Parecendo ou não, uma criança autista se torna um adulto autista. Como autismo não é uma doença, não há cura, então a pessoa permanece autista durante toda a vida.
Nos comentários, mais uma vez, os seguidores reforçam como são percebidos. “Já ouvi ‘mas você nem se balança’”, diz uma. “Sempre escuto isso com relação ao meu filho”, afirma outra. “Ahhh! Mas vc é desses inteligentes então né!?!”, conta um terceiro.
Chegamos à razão número 6: esse tipo de comentário, por já ser ouvido tantas vezes, pode magoar muito não só uma pessoa autista, mas também seus familiares.
É um sinal de respeito compreender uma pessoa quando ela conta que é autista. Respeito à trajetória dela, de seus pais e familiares e de todos profissionais de saúde envolvidos em seu diagnóstico e acompanhamento. Acolher o autista e seu diagnóstico é contribuir para um mundo mais justo e inclusivo.
Escrito por Clarice Sá, Teia.Work
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