Relacionamentos amorosos entre pessoas com TEA
Reality show “Amor no Espectro” acompanha a rotina de casais autistas e encontros de pessoas com o transtorno em busca de parceiros
Um reality show sobre relacionamentos amorosos aborda a rotina de jovens adultos autistas. “Amor no Espectro” retrata o cotidiano de dois casais e sete solteiros ao longo de cinco episódios de cerca de 40 minutos. Lançado na Austrália pela Netflix no final de 2019, está disponível para outros países, inclusive o Brasil, desde julho de 2020. Rara atração a abordar aspectos de sexualidade entre pessoas com deficiência, mostra como os autistas, suas famílias e seus possíveis parceiros lidam com a ideia de criar laços amorosos e com o aprendizado necessário para que sejam estabelecidos. É simplesmente imperdível.
Prazeres e desconfortos são demonstrados a cada etapa de cada encontro. Há momentos em que participantes entram em crise ou experienciam intensa frustração e outros em que demonstram um profundo autoconhecimento ao mesmo tempo em que tentam compreender a razão de não conseguirem se conectar com um possível pretendente.
Papo em família sobre relacionamento e expectativas ao longo dos encontros compõem os episódios
Os participantes solteiros são apresentados inicialmente em um breve diálogo com a equipe do reality. Contam algumas experiências – ou revelam que não têm nenhuma. Em seguida, aparecem no contexto familiar, conversando sobre o assunto com os pais e irmãos. Pensam sobre como seria o encontro ou que tipo de pessoa gostariam de conhecer.
Depois da breve introdução, é a vez de tentar a sorte. Os encontros acontecem. Antes, durante e depois, os dois vão contando individualmente como se sentem. Assim como entre os típicos, nem sempre dá certo. Mas há momentos de encanto proporcionados por suas habilidades, como o dia em que um diálogo pouco fluido ganha o brilho de uma potente apresentação ao piano.
Especialista em relacionamento auxilia nos primeiros passos a serem dados nas interações
Expectativas também fazem parte da conversa dos participantes com a família e com a equipe de produção. Michael, de 25 anos, quer encontrar uma mulher para casar e viver junto pelo resto da vida. “Ela seria minha prioridade total. Seria o meu maior tesouro, o mais valioso de todos os tempos. Ela seria praticamente o meu milhão de dólares”, imagina o rapaz.
Michael, assim como alguns outros integrantes da série, recebem apoio de uma especialista em relacionamento que trabalha com pessoas com TEA, Jodi Rodgers. “Durante a infância, é dado muito apoio a pessoas com autismo para habilidade e interação social’, diz Jodi. “Quando elas atingem a idade adulta e estão realmente procurando relacionamentos íntimos, nós não damos muito apoio para que entendam a grande complexidade de flertar ou de desenvolver uma relação íntima com outra pessoa.”
Jodi usa sua percepção desde o momento em que entra na casa da pessoa para entender que tipo de orientação é necessária. Logo na chegada, fica atenta se o autista inicia uma interação e de que forma. Para Kelvin, de 21 anos, por exemplo, ela explica que é necessário cumprimentar o pretendente, se apresentar e sentar de forma a manter o corpo direcionado para o interlocutor.
Rotina dos casais é de cumplicidade, compreensão e recheada de peculiaridades
O dia a dia dos casais é comum, com peculiaridades. “É como beijar a Medusa”, brinca Thomas ao se despedir da esposa, Ruth, que estava com sua pequena cobra na cabeça. “Autistas são conhecidos por serem incomuns”, diz ela. Ruth, de 22 anos, conta com a ajuda do bicho de estimação, que chama de Cleópatra, para estabilizar sua sobrecarga sensorial. Com a companheira nas mãos, ou envolta por seu corpo, a jovem, que também é surda, evita crises com mais facilidade.
Ruth coleciona cartões de visita e escreve em runas. Thomas adora trens e tem um ferrorama no quintal de casa. Os dois são autistas e moram juntos desde o terceiro ano de namoro. “Nós nos entendemos um ao outro imediatamente”, conta Ruth sobre o momento em que se conheceram. Casos como este são raros de se encontrar também entre pessoas típicas. Eles lidam com naturalidade com a ideia de que não vão se encaixar em padrões imaginários neurotípicos.
A despreocupação com padrões acontece também com Jimmy and Sharnae. Ele ainda não sabia que era autista quando conheceu a namorada. Ela, no entanto, percebeu com facilidade. Diagnosticada há anos, ela o orientou a procurar ajuda médica.
A relação de parceria entre os dois é inspiradora e neste ponto, converge com o que se espera de qualquer relação amorosa. “Nós pensamos, porque não representar estas pessoas em sua melhor forma, assim como qualquer outra série faz?”, afirmou o diretor e idealizador Cian O’Clery ao jornal Los Angeles Times. “O fato de que as pessoas têm uma deficiência não deve afetar a maneira como as representamos”.
Abordar o cotidiano de pessoas com autismo contribui para romper estigmas e aumentar a inclusão
Iniciativas como a do reality contribuem para evitar estigmas e, consequentemente, ampliar a inclusão das pessoas com TEA. Como já explicamos neste blog, estigma é um conjunto de atitudes preconceituosas, que favorecem a criação de estereótipos e de comportamentos discriminatórios em relação a um determinado grupo.
As pessoas com TEA não possuem um fenótipo característico, por isso é considerado o autismo uma deficiência invisível. Por se tratar de um espectro, cada autista tem um conjunto único de características, que não são facilmente identificáveis visualmente. No entanto, indivíduos com o transtorno são percebidos e tratados pela sociedade da mesma forma que pessoas com outras deficiências e também lidam com diversas formas de exclusão.
Personagens com autismo vêm ganhando espaço e popularidade nos últimos anos
A representação dessas pessoas na mídia de forma que não alimente estereótipos contribui para ampliar o desejo de compreender melhor a condição. Um estudo norte-americano mostrou que as pessoas respondem com mais empatia a 28 minutos de exibição de uma série com um protagonista autista do que a uma palestra com a mesma duração. A série tem um poder maior de despertar o interesse pelo tema.
Nos últimos anos, personagens com autismo vem sendo representados na TV aberta e em serviços de streaming e conquistando popularidade. Entre eles, o protagonista do desenho animado infantil “Pablo”, a Benê, da novelinha “Malhação: Viva a Diferença”, o médico Shaun Murphy do seriado “The Good Doctor”, e Sam Gardner , de “Atypical”, um autista adolescente que está se tornando um jovem adulto.
Esteja você ou não no espectro, tem direito a relações amorosas e conexões com outras pessoas
Por se tratar de um reality, “Amor no Espectro” chega ainda mais perto da riqueza de sutilezas e de conflitos que o desenvolvimento da sexualidade provoca nas pessoas com autismo e em suas famílias.
“O que descobri é que, quando as pessoas no espectro atingem a adolescência e o início da idade adulta, elas desejam desesperadamente esses relacionamentos. As dificuldades que enfrentam não são por falta de vontade, mas pelas complexas habilidades sociais necessárias para desenvolver e manter esses relacionamentos”, conta Jodi. “[Um relacionamento] Não é algo para todos, o que é o caso da população em geral também (…) Não importa se você está no espectro ou não, todos têm o direito básico e a necessidade humana de conexão e amor.”
Escrito por Clarice Sá, Teia.Work
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