Guy Shahar: por ambientes em que autistas se sintam bem
Pai de autista conta como filho é capaz de se abrir e interagir mais de acordo com os estímulos e expectativas de seu entorno
Uma intensa angústia se abateu sobre Guy Shahar e sua família quando o filho Daniel parou de falar. Com apenas 1 ano, ele começou a ignorar os chamados dos pais por seu nome e passar a maior parte do tempo deitado no chão, rolando um carrinho de brinquedo pra frente e pra trás em frente ao rosto.
“Ele inclusive havia perdido a capacidade de pronunciar consoantes e de comer alimentos sólidos. Tivemos de voltar a dar a ele comida pastosa, de colher, enquanto ele assistia a desenhos animados. Ele se tornou propenso aos mais intensos e prolongados colapsos nervosos e, uma vez que começavam, não podíamos fazer nada para consolá-lo”, conta o pai, em sua palestra no TEDxWandsworth, na Inglaterra.
A busca por apoio médico não trouxe alívio. Um deles disse que cada criança se desenvolvia no próprio tempo e recomendou que a família voltasse dois anos depois. “Não conseguíamos imaginar mais dois anos de tamanha incerteza”, diz Guy.
Desamparada na Inglaterra, a família de Daniel decidiu buscar ajuda em uma pequena clínica no norte de Israel
Um outro médico cogitou a possibilidade de Daniel ser autista e daria início a uma investigação sobre o transtorno, sem prazo para acabar. O desamparo levou a família a buscar métodos alternativos. A decisão trouxe dúvidas.
“Tudo que tínhamos era a internet, cheia de suas promessas loucas de milagres e curas, todas com relatos chamativos, vídeos comoventes e um alto custo. Por onde começar? Como encontrar algo verdadeiramente útil em meio a toda essa onda de marketing?”, diz Guy.
Acabaram descobrindo uma pequena clínica no norte de Israel em que haveria uma chance de cuidar do garoto. Um lugar chamado Mifne Centre. “Não sabíamos nada sobre eles, mas ambos tivemos a forte sensação de que aquele era um lugar que poderia realmente mudar a vida da nossa família. Pesquisamos, conversamos com eles, encontramos outras pessoas que estiveram lá e conversamos com elas e, por fim, decidimos tentar e ir lá pessoalmente.” Saíram da Inglaterra e seguiram para lá.
Expectativas também influenciam o ambiente em torno da criança e influenciam seu desenvolvimento
Ali, Guy percebeu a importância do ambiente para o desenvolvimento do filho. E que isso não se refere apenas aos estímulos sensoriais e elementos físicos ao redor, mas também à expectativa que se constrói em torno do comportamento da criança.
A forma como cuidavam do garoto na clínica, aparentemente, não tinha nada de brilhante. “Basicamente só brincavam com ele, individualmente, numa sala, seis horas por dia, ele e um terapeuta, e os terapeutas revezam-se mais ou menos de hora em hora.”
A questão era que ali Daniel era livre para ser do jeito dele, sem sofrer com sobrecargas sensoriais. Para pessoas típicas, elas não fazem grande diferença. Para um autista, muita, pois o processamento sensorial deles costuma ser diferente do que é considerado padrão.
“Mas talvez o mais importante é que era um ambiente livre dos gatilhos emocionais supersutis do estresse, que também eram lançados sobre ele, os quais nem sequer percebíamos. Seriam coisas tipo nossas expectativas não expressas, decepções, dúvidas, medos sobre o futuro, preocupações e todo esse tipo de coisa. Não vocalizávamos essas coisas, mas ele as percebia intuitivamente, e se desestabilizava constantemente com isso”, conta Guy.
Em um ambiente favorável, o autista se desenvolve melhor; foi o que Guy aprendeu com seu filho
Sem elementos físicos, sensoriais e psíquicos que tirassem Daniel do equilíbrio, foi possível trabalhar sua confiança e o interesse de querer estabelecer uma relação com outra pessoa e sentir satisfação nessa interação.
“Isso foi fundamental fazê-lo se abrir e, com isso, a terapeuta pode trabalhar a tolerância dele às diversas fontes de estresse para que, ao fim, ele pudesse passar cada vez mais tempo fora da sala, desenvolvendo a força interior que ele estava criando ali dentro. Isso era para o futuro, mas os resultados imediatos também foram impressionantes”, diz Guy.
“Algumas horas depois de chegarmos, eles conseguiram colocá-lo sentado à mesa, com uma colher na mão, comendo sozinho alimentos sólidos, com um grande sorriso no rosto. Isso era inimaginável.”
Aos poucos, Daniel foi aprendendo a desenvolver tolerância às fontes de estresse e passando a passar mais tempo fora da sala de terapia. “A partir daquele dia, a trajetória foi uma constante ascendente.”
Poucos meses após a viagem, Daniel voltou a interagir com os pais
Na clínica, mãe e pai também receberam treinamento para lidar com o filho. Na volta para casa, já na Inglaterra, com a ajuda de um terapeuta particular, eles aplicaram o que aprenderam.
“Pouco depois, as crises retrocederam, ele ficou mais estável e equilibrado
e, pela primeira vez, pelo que podíamos lembrar, conseguimos criar uma relação realmente significativa com nosso filho.” Quatro meses depois, quando já tinha 2 anos e meio, Daniel voltou a compreender o que os pais diziam e a falar algumas palavras soltas.
Cinco anos depois, Guy ainda enfrentava desafios e dificuldades. “Mas nada que se compare ao que fomos levados a acreditar que teríamos de enfrentar.”
A situação de Daniel fez o pai pensar: “E se a condição de autista, por natureza, não for uma incapacidade ou deficiência, mas apenas uma profunda sensibilidade, no sentido mais positivo possível, que, no ambiente adequado, pudesse levar a uma vida produtiva e impressionante, com grande valor a oferecer ao restante de nós?”
Para Guy, autistas são extremamente ligados ao nosso mundo e, por isso, tão sensíveis a ele
Em suas reflexões, Guy diz que não consegue ver a criança autista como desconectada do seu ambiente, como é comum que as pessoas digam. “É exatamente o oposto. Vejo-a tão profundamente conectada com seu ambiente que é quase impossível para ela não ficar sobrecarregada por ele.”
Guy conta que Daniel é um menino muito sensível e que se preocupa intensamente com a possibilidade de sofrimento de qualquer pessoa ou animal. Ao ver uma criança triste na rua, diz Guy, a reação dele é dar um abraço e dizer que vai ficar tudo bem.
“Vejo esse comportamento como sendo motivado pelos instintos do coração dele, que não lhe permitem machucar nada nem ninguém, mesmo se o tiverem machucado. Quando não é recíproco e ele pode se tornar alvo de chacota ou zombaria simplesmente por ser um pouquinho diferente, é totalmente desorientador, confuso e doloroso pra ele”, diz Guy.
Se Daniel se adapta a ambientes em que as pessoas estão abertas e são colaborativas, Guy questiona: quem então tem um problema?
Ao mesmo tempo, a sensibilidade de Daniel permite que ele se adapte a ambientes onde as pessoas se mostram abertas. “Sempre que ele se vê numa dessas situações sociais muito raras em que as pessoas estão presentes nessa condição incomum de abertura, aceitação incondicional, apoio e positividade, vemos uma criança diferente.”
Quando o garoto tinha 5 anos, a família o levou a um centro de meditação na Índia. “Ele se integrou tão naturalmente no local, que ninguém que olhasse pra ele pensaria que havia qualquer problema, muito menos uma deficiência. Era o tipo de ambiente em que ele podia se desenvolver, e provavelmente todos poderíamos, se estivéssemos prontos pra deixar de lado nossos medos e inibições”.
Se um autista anseia por viver em um mundo aberto, colaborativo, inclusivo, de respeito mútuo e afetuoso, Guy questiona: “Quem é que tem problemas aqui?”
“Será que é a pessoa autista, cujos sentidos aguçados e refinados funcionam melhor num ambiente calmo, onde podem ser estimulados e utilizados em benefício de todos? (…)
“Ou será que somos nós, que enchemos os espaços com exemplos de tensão e crueldade com os quais habitualmente nos deleitamos? Adicionamos a isso nossa própria crueldade, que direcionamos uns aos outros e a eles, sem perceber que isso é intensamente doloroso pra eles.” Daí, diz Guy, podemos pensar que faz todo sentido que autistas pareçam pessoas caladas e isoladas -como é comum que sejam rotuladas.
Conscientização sobre o autismo pode ajudar o autista, e também as pessoas típicas que o cercam, a florescer em sua melhor forma
A partir de sua experiência com Daniel, Guy fundou o The Transforming Autism Project (Projeto Transformando o Autismo, em tradução livre), uma organização sem fins lucrativos focada no diagnóstico e intervenção precoce.
Uma das bases do trabalho é justamente o aprendizado de que o entorno é crucial para o desenvolvimento da criança autista. “Dependendo do ambiente que criamos ao redor de uma criança autista, ela tem a capacidade, por um lado, de se desenvolver, de se tornar uma fonte de alegria e inspiração para nós, e até de nos ajudar a sermos mais parecidos com o que gostaríamos de ser”, diz Guy.
“Por outro lado, ela pode se sobrecarregar, chegar ao limite do que pode suportar, se fechar quase que completamente e precisar de alguns cuidados práticos que seriam totalmente desnecessários se fôssemos só um pouco mais conscientes sobre a forma como ela vivencia o mundo.”
Escrito por Clarice Sá, Teia.Work
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