Jac den Houting e o paradigma da neurodiversidade
Pós-doutora em autismo, psicóloga propõe que, em vez de pessoas com TEA serem vistas como incapazes, que seu entorno seja questionado se é incapacitante
Uma mudança de paradigma no olhar sobre os autistas. É o que propõe a pós-doutora em autismo, psicóloga Jac den Houting, que está no espectro. Houting foi diagnosticada com o transtorno quando tinha 25 anos e conta que o diagnóstico transformou a forma como se enxergava e se compreendia.
“Foi a melhor coisa que já aconteceu comigo. Descobrir que eu sou autista me trouxe um sentimento acolhedor de alívio. Minha vida inteira até aquele momento finalmente fez sentido. Meu paradigma sobre mim mesma mudou. Eu não era uma pessoa neurotípica fracassada. Eu era uma pessoa autista perfeita”, conta em sua palestra no TED, com o tema “Por que tudo o que você sabe sobre autismo está errado”.
Houting conta que estranha o costume das pessoas enxergarem ser autista como algo trágico, já que para ela o diagnóstico foi algo que trouxe tanta clareza e conforto. Qual seria a explicação para tamanha discrepância?
Busca simples revela limitações sob olhar médico, mas material produzido por autistas rompe padrões
Ela conta que, logo depois de ser diagnosticada, buscou no Google referências sobre autismo. Percebeu que a maior parte eram médicas. “Fui bombardeada com informações sobre meus déficits. Déficits de interação social, em comunicação, comportamentos restritos e repetitivos, déficits em processamentos sensoriais. Pra mim aquela informação não fazia sentido.”
Houting decidiu então mudar o critério de suas buscas. Passou a procurar por material produzido por pessoas com autismo. Dessa maneira entrou em contato com a ideia do paradigma neurodiverso, uma maneira alternativa de pensar sobre o autismo.
O conceito de neurodiversidade foi registrado pela primeira vez em 1998, em um trabalho da socióloga australiana Judy Singer. De acordo com Singer, neurodiversidade significa a imensa gama de composições neurológicas que abrange todos os seres humanos.
Todas as mentes representam a variação natural das formações cerebrais e são igualmente válidas
O termo representa as infindáveis maneiras de existir a partir da variação natural das formações cerebrais. Cada uma e todas as mentes são, portanto, neurodiversas. E ser autista é, então, ter apenas uma forma de pensar que varia da que é considerada como padrão. “De acordo com o paradigma da neurodiversidade”, diz Houting, “não há cérebros certos ou errados. Todos são igualmente válidos e igualmente valiosos. E não importa qual tipo de cérebro tenhamos, todas as pessoas têm direitos humanos iguais e devem ser tratadas com dignidade e respeito”.
Segundo a psicóloga, muitas pessoas consideram que o pensamento dela faz sentido, mas não conseguem entender que, sim, vale para todas as pessoas com autismo, independentemente do grau em que ele se manifesta. Uma reação comum é argumentarem que a regra não se aplica a todos e que há algumas pessoas que são incapazes, mas outras não.
Houting, por exemplo, tem autismo leve. À primeira vista, não é possível deduzir que ela também passa por situações em que pode parecer incapaz. Ela sente muita dificuldade de frequentar shopping centers por serem ambientes barulhentos, brilhantes, imprevisíveis e cheios de gente.
O problema, diz a psicóloga, é que hoje existe um predomínio do paradigma médico para pensar as deficiências e transtornos. De acordo com o paradigma médico, trata-se de um problema individual da pessoa deficiente. “O modelo médico diria que eu tenho dificuldades em ir ao shopping, pois existe um problema na maneira como meu cérebro processa esses estímulos, porque eu sou autista”, afirma.
Modelo social pensa em como adaptar serviços e políticas públicas às pessoas e não o contrário
A proposta de Houting para a mudança de paradigma está justamente aí. Ela propõe adotar não mais o modelo médico, mas um modelo social. A partir desse paradigma, não se pensa a partir da ideia de que há pessoas incapazes, mas que há ambientes que incapacitam as pessoas. São entornos ativamente incapacitantes, planejados sem levar em conta a existência de pessoas fora do padrão.
“No modelo social, nós não nos referimos à pessoa com uma deficiência. Deficiência não é algo que eu carrego por aí, como uma mala. Em vez disso, nós usamos incapacitar como um verbo. Incapacitar é algo que é feito contra mim, ao meu desfavor. Eu estou ativamente sendo incapacitada pela sociedade”, explica Houting.
“Quando vou ao shopping, não tenho dificuldade porque há um problema comigo. Tenho dificuldade porque o shopping foi criado de maneira que não atende às minhas necessidades. Se começássemos a planejar shoppings que fossem quietos, menos iluminados, previsíveis e com poucas pessoas, eu continuaria sendo autista, mas não seria mais incapacitada por shoppings”, conclui.
Uma série infindável de outros serviços e políticas públicas são implementados sem levar em conta as demandas dos autistas, ainda que hoje representem uma a cada 54 pessoas. “Quase tudo o que sabemos sobre autismo se baseia em pesquisas com premissas médicas e no paradigma médico. Nós gastamos centenas de milhares de dólares em todo o mundo, todo ano, em pesquisas sobre autismo. E a vasta maioria destas pesquisas conceituam autismo como um problema”, lamenta a psicóloga.
A própria Houting conduziu uma pesquisa sobre o investimento em estudos sobre autismo na Austrália. O trabalho mostra que mais de 40% do financiamento se destina a pesquisas em genética e biologia – “tentando entender por que autistas são como são e se há uma maneira de prevenir isso”, afirma.
Outros 20% do financiamento eram destinados a investigar tratamentos para o autismo – “a maioria tentando descobrir novas maneiras de fazer pessoas autistas agirem de maneira menos estranha”, critica a pesquisadora. Apenas 7% das verbas se destinava a pesquisas de serviços para ajudar pessoas com autismo.
“Por que isso importa?”, questiona a psicóloga. “Cerca de 1 a cada 50 pessoas tem autismo. Cerca de 60% dos autistas estão subempregados ou sem emprego, 87% de nós tem doenças mentais. Pessoas com autismo são nove vezes mais propensas ao suicídio do que a população em geral. Nós temos uma expectativa de vida de apenas 54 anos. E nós merecemos mais”.
Problema da dupla empatia indica que autistas e não autistas se comunicam bem, mas só entre iguais
Houting dá ênfase à necessidade de haver mais pesquisadores autistas para que haja novos olhares sobre o transtorno. É o caso de Damian Milton, um pesquisador autista que propõe uma teoria chamada de “problema da dupla empatia”.
Milton defende a ideia de que pessoas com autismo talvez não tenham realmente déficits sociais. Segundo ele, o que acontece é que tanto autistas como não autistas simplesmente se comunicam melhor com pessoas que pensam da mesma maneira que eles mesmos.
“Talvez as dificuldades que nós vemos quando autistas e não autistas socializam não ocorram porque pessoas autistas tenham déficits sociais, mas porque autistas e não autistas são ruins em se comunicar de maneiras que façam sentido entre eles. Para a comunidade autista, faz todo sentido”, detalha Houting. A ideia, claro, contraria muitos pesquisadores, já que desafia justamente o paradigma médico.
Porém, segundo Houting, ao longo dos anos, a adesão de estudiosos a essa ideia vem ganhando corpo. Uma pesquisa recente reforça o conceito. O estudo analisou três grupos, um deles apenas de autistas, um apenas de não autistas e um misto.
Para o experimento, usaram a brincadeira do “telefone sem fio”, em que uma mensagem precisa ser passada por várias pessoas. A primeira fala algo em voz baixa no ouvido da segunda, que repete o procedimento contando para a terceira, até que a última participante repita em voz alta o que escutou.
Brincar de ‘telefone sem fio’ revela dificuldade de comunicação entre autistas e não autistas
Os grupos formados apenas por autistas ou apenas por não autistas tiveram o mesmo desempenho em termos de precisão. O grupo misto, no entanto, teve resultado significativamente pior. Assim como prevê o problema da dupla empatia. “Isto sugere que pessoas autistas e não autistas se comunicam igualmente bem. É a combinação entre os tipos de comunicação que causa o problema”, avalia Houting.
É por isso que ela defende esta mudança de paradigma na forma de pensar sobre o autismo. Assim como um dia já se pensou que a Terra era plana, mas hoje sabemos que ela é redonda. Houve uma mudança de paradigma. “Nós precisamos reconhecer que talvez ‘agir menos estranho’ não é o melhor para uma pessoa com autismo. Nós precisamos de serviços e suportes que vão nos ajudar a ter vidas longas, felizes e realizadas, respeitando nosso direito de sermos autenticamente autistas.”
“Nós precisamos do tipo de trabalho que eu faço, pesquisa conduzida por pessoas com autismo que responda a questões que pessoas com autismo queiram que sejam respondidas, porque a terra não é plana e eu não sou uma tragédia”, conclui a pesquisadora.
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