A opinião dos universitários com TEA
No Brasil, em 2020, havia cerca de 600 estudantes autistas no ensino superior; estudo se dedicou a entender suas vivências na universidade
Em texto recente do nosso blog, falamos um pouco sobre como é, numericamente, a inserção de autistas no ensino superior.
A partir de dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), uma pesquisa brasileira lançada em 2020 mapeou o perfil sociodemográfico dos estudantes autistas matriculados no ensino superior em 2016.
O número de estudantes com alguma deficiência correspondia a 0,43% do total de estudantes matriculados em 2016, e destes, 0,005% se autodeclararam com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Concluiu-se que havia 546 estudantes autistas no ensino superior, sendo 72,3% deles homens.
Ou seja, a quantidade de pessoas com o TEA que acessa o ensino superior ainda é escassa. Por consequência, pode-se inferir que o acesso dessas pessoas ao mercado de trabalho ainda é difícil. Isso mostra, mais uma vez, a necessidade de mecanismos de inclusão e o quanto a inclusão ainda é um desafio.
Pesquisa se dedicou a entender qual seria a opinião dos universitários brasileiros autistas
Um estudo brasileiro publicado em 2019 buscou descrever a experiência acadêmica de seis estudantes com esse diagnóstico, regularmente matriculados em uma universidade pública no estado de São Paulo. Foram realizadas entrevistas individuais que tinham por objetivo identificar tópicos relacionados ao ingresso na graduação, permanência, acessibilidade, relacionamentos e sugestões de melhorias no contexto universitário.
O estudo abrangeu toda a vida acadêmica desses universitários participantes.
Os relatos englobam, em sua maioria, facilidades quanto ao conteúdo acadêmico no ensino básico.
Por exemplo: cinco dos seis participantes não apresentaram dificuldades marcantes com a aprovação, obtendo conceitos bastante satisfatórios na maior parte das disciplinas curriculares. Entretanto, dentre estes cinco participantes, quatro relataram dificuldades em áreas específicas (tais como matemática e artes), necessitando de reforços (dois participantes) ou sendo retidos em algumas disciplinas cursadas (dois participantes).
Dificuldades na interação social motivam ausência dos universitários autistas nas aulas
Em relação ao fator “presença nas aulas”, três dos seis participantes relataram grandes problemas com faltas, devido às dificuldades de interação social. Isso foi mencionado por todos os participantes e se tornou, inclusive, motivo da conclusão do Ensino Médio a distância para dois participantes.
O relato de um deles permite observar alguns desses aspectos: “No ensino fundamental, eu ia bem. Mas sempre tinha essa parte de dificuldade em interação social. Só que, se o aluno tira nota boa, não dá trabalho, por que a escola vai se preocupar?”.
Bullying também atrapalha o desempenho, além do atraso no diagnóstico
Um outro tópico da pesquisa foram as controvérsias entre o interesse pela graduação e o despreparo do contexto universitário. Nesse tópico, houve a reflexão sobre as nuances que estudantes universitários com TEA podem vivenciar no contexto acadêmico.
Após o ingresso na graduação, descreveu um dos participantes: “Eu estava fazendo uma coisa pensando em posteriormente trabalhar com botânica ou com etnobotânica, que era meu sonho, mas não estava conseguindo concluir o curso lá por causa do bullying. Se eu tivesse só o bullying, mas conseguisse levar as matérias eu continuaria. Mas eu não conseguia nenhum dos dois”.
Além disso, houve outra questão que agravou a tensão de alguns dos participantes da pesquisa. Três, dentre os seis participantes, obtiveram o diagnóstico de TEA quando já estavam na graduação. Assim, houve identificação tardia da causa do que lhes afligia.
Após romper a barreira do diagnóstico, alunos autistas tiveram que enfrentar a burocracia universitária
Nos casos de diagnóstico tardio, as dificuldades acadêmicas e emocionais, descritas como “crises de ansiedade” e “depressão”, culminaram na busca por respostas com profissionais externos à universidade, que foram explicadas com a obtenção do diagnóstico.
Quando a par da situação, os três participantes procuraram suporte dos professores e da equipe técnica da graduação.
O primeiro deles pediu ampliação do prazo para conclusão de curso, devido ao fato de que faltava aprovação em 15 disciplinas e já estava prestes a jubilar.
Após algumas dificuldades burocráticas a esse respeito, inclusive a necessidade de recorrer à reitoria, conseguiu a extensão de prazo. Na época da entrevista, ele cursava, pela terceira vez, a última dependência necessária para concluir a graduação em Engenharia Industrial Madeireira.
Em um dos casos pesquisados, mesmo cientes do diagnóstico, professores não colaboraram
O segundo aluno pesquisado que recebeu diagnóstico tardio contou que sua mãe se dirigiu até a universidade e informou o setor de graduação sobre a sua condição. Segundo ela, todos os professores do curso de Ciências Biológicas estavam cientes, mas não foram apresentadas soluções para que conseguisse aprovação nas dez disciplinas em dependência.
O seguinte trecho procura ilustrar a importância da conclusão do curso para o aluno:
“Era tudo que eu queria. Tanto que, com todas as dependências, eu insisti por quatro anos. Eu fiz de tudo. Eu pesquisei formas de aprendizado, tentei procurar outros tipos de terapia e comecei a fazer exercícios físicos. Tudo que você imagina que eu pudesse fazer pra tentar concluir esse curso eu tentei”. Quando questionado sobre o apoio oferecido pela instituição, a resposta foi: “Da universidade não”.
Um entrevistado disse que preferia esconder o diagnóstico em determinadas situações
Cursando Engenharia Mecânica, o terceiro deles contou com o apoio multidisciplinar de uma equipe de profissionais externa à universidade para progredir academicamente.
Os profissionais interviram junto à seção técnica da graduação, orientando sobre como as práticas pedagógicas poderiam ser ajustadas para favorecer a aprendizagem do aluno.
Entretanto, ele relatou que as orientações se esgotaram no plano teórico. Relatou, ainda, que, por sua vontade, não divulgaria o diagnóstico mesmo que isso o impedisse de obter os benefícios legais a que tem direito: “Então, muitas vezes, para não ter atrito com o professor, eu acabei escondendo um pouco isso da academia”.
“Como eu vou interagir?”, questionou um dos alunos autistas entrevistados
O terceiro e último tópico da pesquisa foi: “Necessidades de mudança no âmbito singular e social”. O tópico discorreu sobre as transformações em decorrência das particularidades dos estudantes autistas, como dificuldades com as habilidades sociais, concentração, funcionamento executivo e planejamento. Além disso, discorreu sobre questões relativas aos professores e colegas de classe.
Um dos participantes, matriculado no curso de Ciências Sociais, afirmou: “Falta preparo deles e para mim, orientação dos dois lados. Como eu vou interagir?”.
Os relatos que indicavam dificuldades de interação no âmbito singular foram associados pelos participantes a dificuldades em detectar os estados mentais de seus interlocutores. Outro participante mencionou o comportamento alheio: “Às vezes, eu não entendo. Eu não estou percebendo as coisas”. Ademais, houve relato de ausência no comportamento de “empatia”.
Despreparo dos professores foi apontado pelos alunos autistas como um dos obstáculos na universidade
Já no que diz respeito às habilidades cognitivas, eles discorreram sobre o desafio de se organizarem quanto ao conteúdo a ser estudado para as provas. Uma das causas foi relatada como déficit de concentração durante as aulas.
Um participante descreveu: “Praticamente, eu não consegui aprender com nenhum professor, pois era tudo em slide e muito rápido. Eu não conseguia me concentrar na fala, na imagem do slide e anotar”. Além disso, um fator mencionado por ele seria o fato de ser “lerdo para escrever”. Para ele, um tempo extra para fazer as provas seria essencial.
No que concerne às adaptações ou ajustes necessários no contexto universitário, os relatos apontaram, principalmente, para a mudança de postura por parte dos professores que, segundo os participantes, poderiam compreender melhor as peculiaridades de cada aluno e oferecer auxílio pontual no acesso ao conteúdo ministrado nas disciplinas.
Garantir que o universitário autista tenha condições igualitárias na sua vivência acadêmica, como qualquer outro estudante, ainda se configura um desafio.
Bárbara Bertaglia
Médica residente na pediatria da Santa Casa de São Paulo, pesquisadora na área de Transtorno do Espectro Autista e membro da equipe Autismo e Realidade desde 2019
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