Autorregulação e o Transtorno do Espectro Autista
A autorregulação é um processo complexo e integrado que envolve o desenvolvimento de aspectos fisiológicos, cognitivos, emocionais e comportamentais, para que possamos nos ajustar às demandas e desafios do dia a dia com estratégias gradativamente mais organizadas, elaboradas, internalizadas e intencionais.
O desenvolvimento da autorregulação ocorre durante toda a infância e adolescência, estando relacionado também ao desenvolvimento do córtex pré-frontal, às experiências pessoais e às características socioculturais de cada indivíduo.
Dificuldades na autorregulação fazem parte do desenvolvimento e são frequentemente observadas em crianças pequenas, como quando choram na hora de ir embora do parque ou ficam irritadiças quando estão com fome ou sono. Na idade pré-escolar, as crianças ainda não dominam totalmente a linguagem e outras funções cognitivas relevantes para a autorregulação, processadas no córtex pré-frontal, ainda estão em aprendizagem e desenvolvimento.
Também observamos dificuldades de autorregulação em crianças com diferentes condições de neurodesenvolvimento, como o TDAH, TOD e o TEA. No autismo, é importante considerar que outros aspectos podem interagir com o desenvolvimento e a consolidação da autorregulação, como as alterações sensoriais, as diferenças no processamento socioemocional, as dificuldades de comunicação, os interesses restritos e comportamentos repetitivos. A seguir, apresentamos como esses aspectos podem interferir na regulação emocional e do comportamento:
- Processamento sensorial: pessoas com autismo muitas vezes têm sensibilidades sensoriais que podem dificultar a autorregulação. Ambientes ruidosos, luzes intensas, odores desagradáveis ou texturas desconfortáveis podem desencadear reações emocionais e levar a comportamentos disruptivos desafiadores.
- Reconhecimento e expressão emocional: no autismo, é frequente haver dificuldade no reconhecimento e expressão das próprias emoções e das emoções dos outros. Indivíduos com TEA podem não identificar que estão ficando emocionalmente sobrecarregados até que já estejam com um nível de estresse muito elevado e isso culmine em reações exacerbadas.
- Habilidades comunicativas: a comunicação limitada e dificuldades no desenvolvimento da linguagem podem tornar difícil para algumas pessoas com autismo pedir ajuda ou expressar suas necessidades, aumentando a frustração e a dificuldade em se autorregular mesmo com o apoio de parceiros sociais.
- Interesses Restritos e Comportamentos Repetitivos: alguns comportamentos repetitivos e interesses intensos, comuns em pessoas com autismo, podem ser formas de autorregulação e auxiliar no controle emocional em diferentes situações por promoverem a previsibilidade. Em situações de estresse, as demandas por flexibilidade cognitiva e social podem ser menos toleradas e esses comportamentos podem se intensificar e gerar dificuldades de ajuste social.
Cientes dessas características do autismo, os diferentes parceiros sociais das pessoas com TEA podem colaborar para uma interação menos propensa a situações de estresse, atuando como reguladores externos para manejo dos estímulos ou o desenvolvimento das reações emocionais e comportamentais, seja na clínica ou em casa, na escola, no trabalho e em outros contextos sociais.
Os projetos terapêuticos multidisciplinares para as pessoas com TEA frequentemente envolvem objetivos relacionados ao desenvolvimento da autorregulação e devem ser elaborados de acordo com as características individuais. Na atuação do psicólogo, o ensino das habilidades de regulação emocional e de comportamentos encontra evidências científicas em diferentes abordagens, como a Terapia Cognitivo-Comportamental, a Análise Aplicada do Comportamento, assim como as estratégias de modelagem em simulação de enfretamento a situações estressoras.
De forma geral, promover ambientes estruturados e previsíveis nos diferentes contextos ajuda a reduzir a ansiedade e facilita a autorregulação. Um exemplo é o uso de rotinas e suportes visuais com figuras para aumentar a previsibilidade e facilitar a comunicação da criança com TEA e seus parceiros.
O desenvolvimento das habilidades linguísticas e comunicativas a partir da intervenção fonoaudiológica no TEA poderá facilitar a utilização de estratégias de autorregulação com o reconhecimento e nomeação das emoções, assim como das estratégias mais produtivas para reduzir o estresse nas diferentes situações. Em indivíduos com autismo e sem comunicação oral, a introdução de um sistema de comunicação alternativa auxilia muito na expressão das necessidades, promovendo também o desenvolvimento dos processos regulatórios.
Paralelamente, a Terapia Ocupacional pode atuar na redução das alterações de processamento sensorial, além da identificação dos estímulos que interferem na autorregulação de cada indivíduo e da adaptação de recursos que contribuam para o gerenciamento da sobrecarga sensorial, como fones com cancelamento de ruído, uso de brinquedos sensoriais para controle de ansiedade, recursos de pressão profunda para melhor qualidade de sono.
Vale ressaltar que as dificuldades de autorregulação não fazem parte dos critérios diagnósticos para TEA, ainda que sejam mais frequentes nessa população. Além dos elementos apresentados, é importante atentar para distúrbios do sono, sintomas gastrointestinais e outras condições médicas que podem estar presentes concomitantemente nas pessoas com TEA, dificultando ainda mais o desenvolvimento da autorregulação, a aprendizagem e o uso de estratégias de manejo das reações emocionais e dos comportamentos nas diferentes situações sociais.
Para lidar com as dificuldades no desenvolvimento da autorregulação nas pessoas com TEA, é essencial que haja a compreensão de como a neurodiversidade implica no processamento das informações e, consequentemente, nas reações ao ambiente, às pessoas e às atividades do dia a dia.
Noemi Takiuchi
Possui graduação em Fonoaudiologia e Doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (USP). É especialista em Educação em Saúde e Fonoaudiologia em Psiquiatria da Infância e Adolescência. Atualmente, é coordenadora do programa Autismo e Realidade e responsável pelo Ambulatório TEA do Instituto PENSI.
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