Colocando números no TEA
Pesquisador detalha experiência para quantificar resultados de intervenções em autistas
Após o nascimento de um filho autista, o professor doutor Ricardo Vêncio, do Departamento de Computação e Matemática da USP, passou a dedicar sua produção científica a investigações que envolvem o transtorno.
“Eu não trabalhava com nada desse tipo, não sabia o que era autismo, não estava no radar. E aí aconteceu com a gente todo o processo que todo mundo que é da comunidade conhece bem. Uma das principais forças que me colocou de volta nos eixos foi redirecionar minha atividade profissional, minha pesquisa científica, para assuntos relacionados ao autismo”, conta o pesquisador.
Uma das preocupações essenciais das famílias de autistas, especialmente logo após a descoberta do diagnóstico, é o que se deve fazer. “Hoje o que se sabe mesmo, bem consolidado, é que a análise do comportamento, conhecida pela sigla ABA, que é do inglês Applied Behavior Analysis, é o que se deve fazer de melhor para intervenção”, afirma o pesquisador.
Vêncio detalha que a análise do comportamento tem modos específicos de operação e conta com um aspecto considerado muito importante, que é o registro. “É a psicologia, mas com uma cara de ciência exatas muito forte. Eles anotam tudo, eles registram. É ciência com C maiúsculo. E tem todo esse aspecto qualitativo, mas também quantitativo embutido no modo de fazer as coisas.”
Um dos livros de referência na área, recomendado pelo pesquisador é “Modificação de Comportamento – O que é e como fazer”, de Garry Martin e Joseph Pear, publicado em 2018 no Brasil pela editora Roca.
O professor apresentou no VII Simpósio de Atualização em Transtorno do Espectro Autista parte de um estudo em andamento no programa de Saúde da Criança e do Adolescente do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da USP. O projeto, de um aluno de doutorado orientado por Vêncio, utiliza inteligência artificial para quantificar resultados de intervenções baseadas em ABA em autistas.
O simpósio está disponível gratuitamente na plataforma de Ensino a Distância (EAD) do Sabará Hospital Infantil. Assim como o Autismo e Realidade, o hospital tem como mantenedora a Fundação José Luiz Egydio Setúbal (FJLES).
Tecnologia incorporada à rotina, como um celular comum, pode ser usada para coletar dados em casa
O objetivo do projeto apresentado por Vêncio é quantificar o comportamento usando inteligência artificial para avaliar uma intervenção baseada em ABA. “Não temos tempo a perder e nem queremos fazer nossas crianças de cobaia, então é importante registrar e entender o andamento da intervenção”, afirma Vêncio.
O registro na área hoje é, normalmente, feito com lápis e papel. “Mas existe um subconjunto de observações que poderiam ser registradas, e que podem se beneficiar bastante das tecnologias atuais de aprendizado de máquina, inteligência artificial, automação”, detalha o professor.
A proposta do projeto é tornar possível observar não só no ambiente clínico, mas também no ambiente doméstico a aquisição de comportamentos trabalhados com base em ABA. “É difícil registrar o que acontece nesse ambiente natural. Às vezes a gente até imagina que eles não se comportam em casa exatamente do mesmo jeito do consultório. Mas com esse tipo de tecnologia de filmagem, você pode adquirir os dados do dia a dia”, conta o professor.
Dentro de casa, os dados podem ser coletados com recursos simples, como um celular comum, e permitem avaliar a rotina da criança e seu desenvolvimento. “Hoje a gente vive na era do Big Data, e todo mundo carrega um celular que consegue filmar, produzir filmes e vídeos com qualidade, sem nenhuma dificuldade, e isso pode ser uma forma de adquirir dados para guiar a intervenção.”
Automatizar processo de observação oferece material farto para acompanhar aquisição de habilidade
Três exemplos de coleta de dados e análise por inteligência artificial foram apresentados pelo professor.
No primeiro, Vêncio conta que gravou imagens do próprio filho em casa. O teste foi acompanhar a introdução do uso da faca na alimentação. Como mensurar se a intervenção para o uso da faca está dando certo? Em vez de adotar o tradicional lápis e papel e fazer anotações enquanto o filho almoça – que seria uma atividade bem desgastante para executar diariamente -, ele colocou um tripé no celular e filmou as refeições. “É uma aproximação razoável do que acontece no dia a dia.” A automatização do monitoramento dá uma amostragem farta para acompanhar o andamento da aquisição da habilidade.
Ao analisar as imagens quadro a quadro, o computador pode detectar onde estão os objetos dos mais variados interesses da criança. Em meio a todos os elementos da mesa no almoço, o equipamento identifica a posição da faca e consegue identificar quantas vezes foi usada na alimentação. É possível, por exemplo, contabilizar quantas vezes a criança de fato pega a faca ou o tempo em que ela é deixada em repouso. A aplicação da computação visual ajuda a mensurar os comportamentos e verifica se a intervenção, com o objetivo de usar a faca, por exemplo, está funcionando.
Inteligência artificial também pode calcular o tempo de intervenção efetiva dentro do consultório
Uma segunda intervenção realizada na pesquisa apresentada por Vêncio foi relacionada ao manejo de uma criança dentro de um consultório durante uma consulta.
Vêncio conta que a indicação ideal mais comum de ABA apresentada aos pais de autistas é de 40 horas semanais, o que assusta não só pelo número de horas, mas pelo custo financeiro. “Não existe bolso profundo o suficiente que possa pagar”, diz o pesquisador. O que se percebe ao longo do tempo, no entanto, é que essas 40 horas não são todas aplicadas em consultório. “Quarenta horas significa que tem que estar intervindo o tempo todo em que a criança estiver acordada.”
A intervenção deve ser constante para que os ganhos sejam generalizados a todos os ambientes frequentados pela criança “A literatura mostra que precisa de uma densidade alta de interação”, afirma Vêncio.
O pesquisador conta que boa parte do tempo destinado em consultório para terapia é investido em acalmar a criança e prepará-la para o momento em que seja possível aplicar a intervenção. “O conteúdo mesmo de ensino é realmente passado pra criança em uma fração das horas em que ela está sob intervenção na sala de uma clínica. Imagina uma criança na consulta de 45 minutos com a fono. Os últimos 15 são pra dar devolutiva pros pais e 40 ela fica causando, chorando ou no chão. Só 5 minutos são de entrega de conteúdo mesmo. Um dos motivos pelo qual intervenção tem que ser intensa é que você precisa caçar aquela janela de oportunidade para conseguir capturar a atenção e o foco da criança para entregar o ensino.”
Monitoramento permite medir objetivamente o tempo da intervenção sem depender de descrições subjetivas
Com a análise da inteligência artificial, é possível quantificar o que acontece no tempo de consulta de forma prática. A avaliação feita no estudo de Vêncio aproveita câmeras de segurança já instaladas na sala para acompanhar o encontro. Com as imagens, o computador é capaz de monitorar os movimentos tanto da terapeuta, quanto da criança.
“Enquanto a criança estiver sentada na cadeira, sei que ela está em terapia, se ela não estiver ali, é manejo.” Com o monitoramento da imagem por inteligência artificial, é possível calcular o tempo gasto com esquiva ou fuga da demanda, por exemplo. “Ser capaz de medir isso objetivamente, sem depender da descrição subjetiva das pessoas, é uma coisa que a gente considera importante.”
A aplicação se baseia em uma tecnologia que, apesar de sofisticada, já está estabelecida, é de fácil acesso e ajuda a quantificar o comportamento para guiar a intervenção de forma automática.
Monitoramento ocular também pode ser feito a partir da adoção de inteligência artificial
Um terceiro exemplo de uso da tecnologia para quantificar resultados de uma intervenção é o monitoramento ocular. A inteligência artificial consegue identificar onde estão os olhos da criança.
Vêncio dá como exemplo uma atividade em que a criança está sentada em uma mesa, de frente para a pessoa responsável pela aplicação da intervenção. A criança, neste caso, pode estar parada, sem mexer o corpo, mas escapar da intervenção olhando para outros lugares. “Não tem como você bloquear o olho da criança e fazer ela olhar”. Com a ajuda do computador, é possível fazer o rastreio e saber quanto tempo da criança foi gasto com essa esquiva e quanto tempo ela esteve efetivamente engajada na intervenção.
A tecnologia pode também ajudar a encontrar um marcador de comportamento apresentado durante a consulta. Em ABA, considera-se um formato de análise chamado ABC, em que A é o antecedente de um comportamento, B é o comportamento em si e C, uma consequência deste comportamento. Neste caso, a análise de imagens gravadas durante a consulta poderia monitorar momentos A deste ABC.
“A busca por padrões em vídeo pode te contar o que aconteceu antes do comportamento. Ninguém tem paciência pra assistir horas e horas do filme, mas se tiver um marcador que avise que no minuto tal aconteceu algo, a máquina pode observar o que aconteceu minutos ou segundos antes do ocorrido”, explica o professor. O monitoramento pode ser feito também com uso de áudio, e detectar por exemplo se a criança chora ou grita.
Além de propor uso da tecnologia, Vêncio faz chamado para envolvimento dos pais na comunidade
Todos esses exemplos, diz Vêncio, demonstram possibilidades do uso da inteligência artificial como ferramenta para auxiliar o gerenciamento do caso. O recurso permite expandir a capacidade de registro para orientar a intervenção, direcionando pequenos passos do dia a dia.
Não só o apoio da tecnologia pode contribuir com o desenvolvimento de crianças com autismo, mas o próprio engajamento das famílias ajuda, e muito, no fortalecimento da comunidade. Ao final da palestra, Vêncio faz um chamado a pais e mães para esta atuação. “Traz o que você sabe fazer. Você é pintor? Doe seu tempo pra pintar um prédio da AMA. Você é rico? Doe dinheiro. Você é médico? Atenda as pessoas. É importante que os pais se envolvam no espectro. O que a gente aqui em casa tem pra oferecer é a ciência. É importante que a gente se envolva com o que a gente sabe fazer. Trazer a expertise, entrar em campo pra ajudar os outros e os nossos próprios filhos.”
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