O que a Lancet diz sobre o futuro do cuidado e da pesquisa clínica em autismo
Principal revista médica do planeta reforça a importância da atenção ao transtorno, que afeta 78 milhões de pessoas no planeta
Em janeiro de 2022, a renomada revista britânica The Lancet lançou um documento sobre autismo e as pesquisas sobre o transtorno. O material está disponível gratuitamente na plataforma virtual da publicação.
A The Lancet é uma das mais antigas e conhecidas publicações médicas do mundo. Neste texto, trazemos resumidamente os tópicos apresentados no artigo.
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é descrito como um transtorno do neurodesenvolvimento que afeta cerca de 78 milhões de pessoas em todo o mundo. Segundo o texto, o autismo começa a se manifestar na primeira infância e afeta a comunicação social e os comportamentos ao longo de toda a vida.
Além disso, o texto afirma que olhar sobre condição tem importância global devido à sua prevalência e ao grau em que pode afetar indivíduos e famílias.
Em 2000, 1 a cada 150 crianças era diagnosticada com autismo; hoje são 1 a cada 44
A cada novo relatório do CDC (Centers for Disease Control and Prevention, a agência americana para controle de doenças), a prevalência do TEA vem aumentando (http://autismoerealidade.org.br/2022/02/04/uma-a-cada-44-criancas-e-autista-segundo-cdc/).
Segundo o documento mais recente, de 2021, 1 em cada 44 crianças de 8 anos, em 11 estados norte-americanos, é diagnosticada autista. Em 2000, a prevalência era de 1 a cada 150.
O TEA e outros distúrbios do neurodesenvolvimento têm conquistado o interesse da comunidade científica nos últimos 60 anos. Nos últimos 20 anos, a conscientização sobre o autismo cresceu exponencialmente.
Entretanto, diz o artigo, muito mais poderia ser feito para melhorar a qualidade vida dos autistas – que são um grupo de pessoas altamente heterogêneo.
O artigo afirma que a mudança depende de investimentos em ciência, focados em questões clínicas práticas.
Estudos científicos ainda têm grandes lacunas a preencher no que sabemos sobre autismo
O investimento deve abranger também sistemas sociais e de serviços que reconheçam o potencial de mudança e crescimento dessas pessoas, além das necessidades variadas e complexas dos autistas e de suas famílias.
O texto aponta o que pode ser feito nos próximos cinco anos para atender às necessidades atuais desses indivíduos e suas famílias em todo o mundo.
Progressos substanciais foram feitos em muitas áreas da ciência básica e aplicada, mas os limites do conhecimento e compreensão do autismo ainda não são muito claros.
Para fins clínicos, as revisões e diretrizes científicas aumentaram. Mas a maioria das recomendações se baseia em intervenções de curto prazo focadas na aquisição de habilidades específicas. Ainda não se sabe ao certo como podem contribuir para ganhos de longo prazo ao longo do desenvolvimento.
Grandes lacunas permanecem em torno de questões-chave sobre o transtorno:
Como e quais intervenções e estratégias de apoio são eficazes para quem e quando?
Quais intervenções levam a mudanças além de seus resultados a curto prazo?
Quais são os elementos ou mecanismos ativos, comportamentais ou neurobiológicos, para a mudança?
Há necessidade de desenvolvimento de novas abordagens que sejam economicamente viáveis
Essas questões seriam particularmente importantes porque o autismo afeta desde crianças até idosos e, quase sempre, é acompanhado por outras condições de desenvolvimento, comportamento e saúde mental com grandes implicações ao longo da vida.
Somado a essas questões, estaria o fato de que o autismo afeta indivíduos e famílias em todo o mundo, e a maioria não recebe apoio fora de seus próprios recursos.
Segundo o artigo, abordagens baseadas em evidências para apoiar a vida de crianças, adolescentes e adultos autistas ainda devem ser desenvolvidas. É preciso saber o que funciona para quem, quando e em qual intensidade é necessária.
Além disso, é preciso que as abordagens se enquadrem no sistema econômico, de forma acessível e praticável. Tais abordagens não seriam possíveis com base nos dados de hoje, mas talvez sim no futuro.
É preciso levar em conta o contexto cultural de cada autista e sua família
O artigo propõe um novo modelo de cuidado escalonado modificado e um modelo de saúde personalizado de intervenção e avaliação para autistas e familiares.
Uma necessidade importante, mas nem sempre considerada em tais modelos, é que o tratamento e o apoio levem em consideração as preferências, necessidades e custos para indivíduos e famílias em cada etapa.
Devem ser consideradas as comunidades, culturas e sistemas sociais dos quais os autistas e seus familiares fazem parte.
Usando dados de uma amostra epidemiológica em grande escala, compartilhada pelo Instituto Norueguês de Saúde Pública, foram fornecidos exemplos iniciais de como e porque uma abordagem de saúde personalizada e cuidadosa poderia ser aplicada para abordar as características principais do autismo e condições concomitantes.
Texto afirma que é vital respeitar a heterogeneidade dos autistas e atuar pela inclusão de todos
Autistas e pessoas com outros transtornos do neurodesenvolvimento são uma parte importante da sociedade e representam parte da neurodiversidade (http://autismoerealidade.org.br/2022/07/28/neurodiversidade-primeiros-passos-parte-1/).
Ao mesmo tempo, muitos indivíduos com autismo teriam necessidades particulares e seriam vulneráveis a danos, marginalização e exclusão. Assim, as atitudes sociais em relação à diferença, inclusão e equidade são descritas como grande influenciador de suas experiências e resultados de vida.
É citado também que indivíduos autistas e suas famílias podem mostrar forças extraordinárias, persistência, paciência e percepção que podem mudar seu desenvolvimento.
O artigo afirma que é vital o respeito por essa diversidade e heterogeneidade, assim como pelo poder de desenvolvimento e a possibilidade de mudança.
O foco, então, seria em maneiras de fazer as mudanças acontecerem. Seria um momento de reconhecimento das necessidades variadas dos autistas, incluindo aqueles com deficiências intelectuais graves e deficiências de linguagem.
Autistas mulheres, autistas de minorias étnicas e autistas com comorbidades graves precisam ser alcançados
Também é um momento, diz o artigo, de reconhecer a escassez de recursos em países de baixa e média renda e até em alguns países de alta renda.
Além disso, é necessário garantir a inclusão de diferentes grupos dentro da comunidade autista, como aqueles que são minimamente verbais, as mulheres, as minorias étnicas, e os que possuem comorbidades graves.
É enfatizado que a sociedade, em todas as partes do mundo, tem o dever:
de cuidar de todos autistas e daqueles que cuidam dessas pessoas;
de direcionar investimento em pesquisa e serviços com sabedoria para ajudá-los a alcançar melhores resultados de vida e impulsionar seu desenvolvimento.
É possível transformar não só a vida de autistas, mas também de pessoas com outros transtornos do neurodesenvolvimento
O artigo diz ainda que o autismo se define pela interseção da comunicação social e comportamentos e interesses sensoriais, restritos e repetitivos. Por conta disso, é um transtorno relativamente específico.
No entanto, o autismo não deixa de ser um dos muitos distúrbios do neurodesenvolvimento, com os quais pode compartilhar vários aspectos.
Dessa forma, o texto descreve que, em alguns momentos, considerar o autismo como uma condição específica seria importante, e em outros momentos, o reconhecimento da sobreposição com outros transtornos do neurodesenvolvimento seria mais adequado.
Levando em conta a diversidade individual, familiar, cultural e regional, o artigo afirma que modelos escalonados e personalizados de intervenção e serviços baseados em pesquisas científicas podem mudar a vida de autistas e pessoas com outros transtornos do neurodesenvolvimento em todo o mundo.
Bárbara Bertaglia
Médica residente na pediatria da Santa Casa de São Paulo, pesquisadora na área de Transtorno do Espectro Autista e membro da equipe Autismo e Realidade desde 2019
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