As We See It e a autonomia do adulto autista
Série disponível na Amazon Prime conta histórias de três autistas adultos em busca de independência
Três adultos autistas de 25 anos que dividem um mesmo apartamento em Los Angeles e contam com o apoio de uma tutora para lidar com questões cotidianas são as estrelas da série norte-americana As We See It ou Nosso Jeito de Ser, na versão em português, lançada em 2022 e disponível na Amazon Prime.
A trama é inspirada na série isralense On The Spectrum, de 2018, mas traz novos elementos à produção, como evitar o uso de cripface –a escalação de pessoas típicas no papel autistas. Os três protagonistas são vividos por atores com autismo.
Série ajuda a mostrar a variedade de características e dilemas que permeiam a vida de adultos autistas
Ao longo dos oito capítulos da primeira temporada, a série apresenta um pouco da variedade de comportamentos autistas, o que ainda é pouco explorado nas produções culturais. Em geral, elas focam em um personagem, que ocupa o centro das atenções e se desenvolve ao longo da trama — caso de Atypical e The Good Doctor.
Os três jovens adultos de As Wee See It representam formas diferentes de ser no espectro autista. O conceito de espectro, definido por Lorna Wing, pesquisadora e mãe de autista, transformou a visão sobre o transtorno. O autismo é chamado de espectro justamente por essa multiplicidade de manifestação do transtorno. Por isso, é equivocado afirmar que alguém parece ou não parece autista. Não há estereótipo que dê conta de abarcar a variedade do autismo.
Também não há um fenótipo identificável a olho nu, como no caso de pessoas com Síndrome de Down. O professor autista Stephen Shore costuma dizer que se você conheceu um autista, você conheceu um autista. É o que reforça o ator Rick Glassman, uma as estrelas da série: “Não existe uma representação única para o autismo, assim como não existe uma representação única para negros, gays, judeus, mães, etc”, afirmou em entrevista ao Deadline (confira a íntegra, em inglês, aqui).
Glassman sentiu dificuldade de interpretar a dificuldade de Jack se assumir como autista
Os três personagens de As Wee See It demonstram parte dessa pluralidade. Glassman interpreta Jack, um profissional do setor de tecnologia com dificuldades de se manter no mercado de trabalho por não conseguir filtrar o que diz aos chefes e se vê mais uma vez sob risco de demissão.
Ele percebe que precisa conquistar independência financeira quando descobre que o pai está lutando contra um câncer grave e corre o risco de não sobreviver ao tratamento. Glassman conta que um dos desafios para viver o papel foi lidar com a necessidade de Jack sente de esconder sua condição.
“Embora a criança dentro de mim se identifique muito com Jack, eu, como um adulto que é aberto e que aceita que o autismo faz parte de quem sou achei muito desafiador encontrar uma verdade ao interpretar a necessidade de esconder quem se é”, conta Glassman, que foi diagnosticado há cinco anos –apenas dois antes de gravar o piloto da série.
“O elenco e a equipe estavam ao meu lado”, conta Albert Rutecki sobre os desafios da rotina no set de gravações
Albert Rutecki é Harrison, um jovem ingênuo com agorafobia que é olhado com desconfiança ao criar uma rara amizade com um garoto de 11 anos que mora no mesmo prédio. Ele vem de uma família milionária que se mostra exausta com os desafios constantes da convivência diária com o filho e vê o jovem conquistar mais autonomia fora da mansão onde cresceu.
Em entrevista ao Collider, Rutecki falou sobre o dia a dia de gravações. “Eu estava realmente com medo no começo, mas acabou sendo muito divertido fazer a série. Eu não esperava conseguir um papel em um programa de TV na minha primeira audição de TV. Foi tudo uma experiência muito boa com o elenco e a equipe”, afirma o ator.
“Tive alguns dias que não foram tão bons durante as filmagens, e o elenco e a equipe estavam ao meu lado. Um dia fui picado por uma vespa estúpida, e Rick e Sosie [Sosie Bacon é a atriz típica que interpreta a tutora] cantando uma música idiota para me fazer sentir melhor. Uma vez passei por uma tragédia familiar, e foi um pouco difícil de atuar. Tive que relaxar um pouco com os membros do elenco e tentar recentralizar. Estávamos lá um para o outro”, diz (confira aqui a entrevista na íntegra, em inglês).
Desejo sexual da jovem Violet e como irmão dela lida com a questão é um dos destaques da trama
Sue Ann Pien é Violet, uma jovem que também tem dificuldade de manter um emprego, mas por conta de sua ingenuidade e dispersão. Ela se envolve em confusões na lanchonete onde trabalha por causa do intenso desejo de iniciar sua vida sexual e ter um namorado típico. Violet também sofre em se aceitar como autista. Ela não gosta de ser percebida e tratada como uma mulher diferente e detesta a ideia de se relacionar com alguém também autista.
A presença de uma mulher no roteiro ajuda a dar visibilidade aos conflitos femininos, já que até o acesso ao diagnóstico é mais complicado para mulheres. Atualmente, a cada 4 meninos, apenas uma menina é diagnosticada com autismo. O estereótipo e as construções de imagem sobre o transtorno ainda são muito associadas ao masculino. Além disso, meninas e mulheres sem deficiência intelectual são mais propensas a adotar comportamentos para camuflar o transtorno.
“Acho que as garotas no espectro provavelmente têm experiências de vida muito diferentes”, conta a atriz. “Há esse mal-entendido de que as meninas não estão no espectro, mas isso não é verdade. Elas são apenas muito melhores em fingir. Foi o que eu fiz, minha vida inteira. Você pode dizer muito sobre quem são meus amigos pela forma como estou aparecendo. Eu apenas assumiria seus maneirismos, sotaques, tiques faciais e diferenças. Tudo o que faço é uma performance, quando estou sendo social”, revela.
“É um contraste com o que Harrison e Jack estão experimentando. Violet também é muito emocional, às vezes, e mostra um lado muito diferente do espectro que nem todos conseguimos ver em sua expressão completa, o que acho muito importante, para as famílias saberem que não estão sozinhas e que isso acontece em todos os lugares, o tempo todo, com as pessoas. Há uma maneira de lidar com isso através do amor e da bondade.” (confira o depoimento na íntegra, em inglês, aqui)
Em entrevista à Folha de S.Paulo, ela destaca a importância da escolha de atores autistas para retratar personagens autistas. “”Eu não seria capaz de interpretar esse papel se não fosse autista. Não teria sido capaz de oferecer as cores e a profundidade que extraio de minhas experiências.”
Tutora Mandy é quem faz a conexão do trio protagonista entre si e com outras pessoas
Quem une os três personagens a tutora Mandy, vivida pela atriz Sosie Bacon. Mandy está tentando entrar em uma faculdade de medicina e precisa decidir entre mudar de cidade para acompanhar o namorado enquanto continua tentando a vida acadêmica ou se firmar como cuidadora enquanto acompanha e dá suporte ao desenvolvimento de Jack, Harrison e Violet. Ela é o principal ponto de apoio emocional dos três na trama.
Os três jovens raramente interagem entre si. É Mandy o ponto de ligação entre os três e suas famílias na trama. É ela também quem, em geral, consegue conectá-los às questões relacionadas à afetividade e ao contato interpessoal.
É Mandy por exemplo, que consegue acolher Violet em um momento de crise e deixar claro para ela que qualquer mulher, típica ou não, está sujeita a passar por más experiências em relacionamentos amorosos. A cena acontece após Violet ser ignorada por um rapaz por quem tinha interesse afetivo.
A demanda de Violet aprofunda uma discussão sobre sexualidade no autismo e sobre como a infantilização do autista pela família cria conflitos em torno da necessidade de explorar a sexualidade que adultos, em geral, possuem.
Discussão sobre sexualidade ainda é tabu na comunidade autista
Um ponto que vale ressaltar é que o preparo para lidar com esse tipo de questão pode proteger autistas de abuso sexual. Autistas -em especial as mulheres – são mais vulneráveis a abusos sexuais. O risco de mulheres autistas sofrerem abusos é até três vezes maior do que as típicas e quatro vezes maior do que os homens autistas.
Uma outra série também toca na questão de sexualidade e abuso sexual ao tratar a questão do consentimento. Em Everything Is Gonna Be Ok, a personagem autita Matilda -vivida pela também autista Kayla Cromer – vive um conflito em torno da questão durante uma bebedeira em uma festa.
Uma pesquisa brasileira revela que há uma demanda para a discussão desses assuntos de forma adulta com os autistas.“Nós somos pessoas, a gente tem desejo, a gente sente as coisas, mas é difícil para nossos pais entenderem, talvez até por que eles foram condicionados a nos olharem como anjos azuis”, diz um dos entrevistados.
Esse tipo de discussão envolvendo autonomia financeira, desenvolvimento emocional e sexualidade trazidos por personagens adultos contribuir também para desinfantilizar o estereótipo em torno do autismo. Foi o que moveu o próprio diretor da série, Jason Katim, pai de um autista.
“Tenho um filho que está no espectro do autismo e tinha 20 e poucos anos na época, e comecei a pensar sobre como seria o futuro dele”, disse em entrevista à Folha.. “Comecei a perceber que muito do que eu tinha lido e visto sobre o autismo envolvia crianças autistas, o que inclui meu trabalho em ‘Parenthood’. Escrevi 100 episódios sobre um menino que tem autismo”. Katim começou em 2018 a trabalhar na ideia da série, que entrou no ar este ano e já está pensando nas histórias da próxima temporada.
Escrito por Clarice Sá, Teia.Work
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