O que é cripface?

2/09/2022TEA no Dia a Dia0 Comentários

Representação de pessoas atípicas por profissionais típicos cria barreira para a inclusão de autistas

A representação de autistas em séries, filmes, desenhos animados e outras produções culturais é comprovada cientificamente como uma ferramenta eficaz para aumentar a inclusão social e combater o estigma relacionado ao transtorno.

Uma pesquisa americana demonstrou que as pessoas demonstram mais empatia e interesse em saber mais sobre autismo quando assistem a 28 minutos de uma série com protagonista autista do que a uma palestra sobre o assunto.

Rain Man e a popularização do estereótipo do autista gênio em matemática

O principal marco na representação de um autista na indústria cultural é o personagem Raymond Babbit, interpretado por Dustin Hoffman no filme Rain Man, ganhador de oito estatuetas do Oscar em 1989. Naquela época, não havia uma ampla discussão sobre autismo como vemos hoje, impulsionada por autistas, e seus pais e mães nas redes sociais.

O sucesso mundial do filme ajudou a consolidar no imaginário popular um estereótipo de autista ligado ao perfil de Babbit: com profundas dificuldades de interação sócio emocional e uma memória e inteligência matemática ímpares.

Autismo é um transtorno diverso, com múltiplas condições associadas

Há uma série de problemas em torno desse estereótipo. O primeiro é que os autistas, nem de longe, se encaixam em qualquer estereótipo. Não é à toa que o nome médico do autismo é Transtorno do Espectro Autista (TEA). A palavra espectro indica justamente a ampla variedade de formas com que o autismo se manifesta. Há tantas formas de ser autista quanto autistas no mundo, cada um à sua maneira.

O autismo pode ocorrer associado a outras síndromes – a de Down, por exemplo, a doenças raras – como a de Chron, e o que os profissionais de saúde chamam de comorbidades, que são condições associadas ao autismo, entre elas transtornos como o TOC (Transtorno Obssessivo Compulsivo), TDAH (transtorno do Deficit de Atenção e Hiperatividade), Transtorno de Ansiedade e muitos outros.

Os diferentes diagnósticos de uma pessoa podem, ou não se somar.

Comorbidades também podem se somar ou mesmo não se manifestarem em autistas

Além de outros transtornos, há mais comorbidades comuns ao autismo que podem aparecer de formas diversas. Algumas delas são:

  • Estereotipias: movimentos repetitivos que aliviam a sobrecarga sensorial e variam de pessoa para pessoa;
  • Disfunções sensoriais, como hipo ou hipersensibilidade; há pessoas hipossensíveis em uma parte do corpo e hiper em outra, por exemplo;
  • Deficiência intelectual, popularmente entendida como “inteligência abaixo da média”, que provoca déficits nas capacidades mentais genéricas e prejuízos em funções simples do dia a dia, como alimentação ou higiene pessoal, por exemplo;
  • Alterações de sono, que atingem cerca de 70% da população autista.

Vale reforçar que essas condições – e muitas outras não citadas – também podem ou não se somar ou mesmo nem se manifestar em alguns autistas.

Além disso, os autistas também são rodeados por diferentes contextos culturais e sociais, possuem características comuns a qualquer pessoa típica, lidando com questões de raça, classe, idade, gênero e sexualidade. Também buscam espaço e ocupam diferentes lugares no sistema educacional e no mercado de trabalho, entre tantos outros ambientes.

Raymond Babbit representa apenas uma entre tantas possibilidades de ser autista

Toda a extensa lista de possibilidades de manifestações de autismo indica que Raymond Babbit representa apenas uma maneira possível de ser autista, não a única ou mesmo a mais comum. O personagem possui Síndrome de Savant, um diagnóstico que associa uma extrema habilidade de memória e cálculo a uma profunda dificuldade de interação social.

A amplificação desse estereótipo associado ao personagem pode criar barreiras para a busca por diagnóstico e impedir que sejam associadas ao transtorno as outras múltiplas características possíveis de um autista. A ligação do perfil de um autista exclusivamente à imagens como a de Babbit pode ser danosa e descartar a possibilidade de busca de diagnóstico.

“A realidade é que o savantismo ajuda a criar filmes e programas de TV empolgantes”, disse em entrevista à Folha de S.Paulo Michelle Dean, professora de educação especial na Universidade Estadual da Califórnia – Channel Islands. “Mas o savantismo é representado de maneira muito excessiva em Hollywood e a realidade é que a maioria dos autistas não tem síndrome de ‘savant’”.

Há, entre os anos 1980 e 1990, um grupo chamado de “geração perdida” do autismo, que só passou a ser diagnosticado na idade adulta, com a popularização dos conceitos em torno do autismo entre a população em geral e também entre a própria classe médica.

Cripface se refere a pessoas típicas que interpretam personagens atípicos

A chegada da internet e o uso das redes sociais amplificaram as discussões em torno do autismo especialmente a partir da década de 2010. Não só mães e pais, historicamente os primeiros protagonistas nas lutas por direitos dos autistas, mas também os próprios autistas passaram a ganhar voz e conquistar espaço na internet atuando na conscientização do transtorno.

Neste movimento, passaram a surgir novas produções com novos perfis de autistas. Duas de grande destaque são os protagonistas das séries The Good Doctor – Shawn Murphy -, e Atypical – Sam Gardner -, que fizeram sucesso ao redor do mundo. No entanto, os personagens possuem perfil específico e tradicional na representação dos autistas: branco, masculino, cisgênero, heterossexual e de classe média.

Mas, além disso, há um detalhe ainda mais importante a ser registrado. Raymon Babbit, Shaun Murphy e Sam Gardner são interpretados por atores típicos. A isso se dá o nome de cripface: pessoas típicas que interpretam personagens atípicos. O termo cripface deriva de um outro termo mais antigo, blackface.

Há 200 anos, atores tingiam a pele para viver personagens negros que eram ridicularizados

Blackface é a representação de pessoas negras por pessoas brancas pintadas com tinta preta, mas não apenas isso. O termo faz referência a um contexto cultural em que as pessoas negras eram ridicularizadas com estereótipos negativos, representados de forma exagerada, associados a piadas.

A prática começou a ocorrer a cerca de 200 anos atrás, mais comumente nos Estados Unidos e em países europeus. Em contextos fora deste suposto humor, já no século 20, atores brancos de cinema, TV ou teatro tinham suas peles tingidas para viverem personagens de origem africana ou asiática. Com o fortalecimento do movimento antirracista, a prática pasosu a cair em desuso.

Contratação de pessoas atípicas para se representarem rompe ciclo de exclusão

A escalação de atores típicos para papéis atípicos reforça uma série de desigualdades, segundo apontam autistas ativistas. Uma delas é a desigualdade existente no mercado de trabalho. Atualmente, estima-se que 85% dos autistas com diploma universitário estão desempregados. A contratação de um ator autista ajuda a combate essa exclusão.

“A gente tem uma crítica nesse sentido, principalmente feita pelas pessoas com deficiência física ou com algum tipo de deficiência que só conseguiriam interpretar aqueles personagens. Então, por exemplo, uma pessoa surda não vai ter como interpretar uma pessoa ouvinte. Mas uma pessoa ouvinte consegue interpretar uma pessoa surda. A gente tem uma clara desigualdade nesse sentido”, afirma o jornalista Tiago Abreu, do podcast Introvertendo e autor do livro O Que é Neurodiversidade?.

Toda a cadeia de produção é impactada com a presença de autistas, como aconteceu em Everything’s Gonna Be Okay

A questão vai além da representatividade que os espectadores podem ver nas telas, mas passa por todo o processo de produção. As escolhas de figurino, por exemplo, precisam levar em conta os distúrbios sensoriais dos atores, e o roteiro também precisa contemplar as características deles.

A primeira série de TV com uma protagonista autista interpretada por uma autista foi Everything’s Gonna Be Okay, lançada em 2020 pelo canal americano Freeform. A trama aborda a convivência de um jovem de 20 e poucos anos que, após a morte do pai, assume a guarda das duas meio-irmãs mais novas. Uma das garotas é Matilda, vivida por Kayla Cromer.

Kayla conta que durante a primeira leitura coletiva do roteiro sugeriu algumas modificações que pudessem acolher suas dificuldades. Como ela é disléxica, não conseguia pronunciar corretamente uma das palavras previstas para uma cena. O ajuste foi feito para que Matilda falasse errado e fosse corrigida com naturalidade pelo irmão.

Lillian Carrier, que faz o papel de Drea, namorada de Matilda, também é autista e conta que muitos dos traços autistas das personagens foram escritos com base nas características das atrizes.

Estereótipos são reforçados quando autistas não fazem parte do processo

Josh Thomas, criador, roteirista e diretor da série, interpreta o irmão mais velho de Matilda. Para ele, a decisão de contratar atrizes autistas gerou estranhamento.

“Quando decidimos lançar esse programa com elenco autêntico de autistas, muitas pessoas ficaram tipo, ‘Como isso vai funcionar?'”, afirmou em um evento da Autism Society. “A forma como abordamos foi não apenas presumir que vai ser difícil, sabe?”

“O grande problema de Hollywood quando se trata de autismo é que eles acham muito inconveniente conversar, escalar e contratar os indivíduos reais que estão tentando representar”, diz Maria Davis-Pierre, CEO e fundadora da Autism in Black, organização que apoia pessoas com autismo na comunidade negra.

Atrizes típicas que concorreram pelo papel de Matilda faziam “voz de robô”, conta autor da série

“Ao invés de dar acomodações, eles escolhem o caminho mais fácil de contratar alguém neurotípico porque na visão deles seria mais fácil trabalhar com ele. E isso é um grande problema porque a história é filtrada e você acaba reforçando estereótipos e continuando a ser capacitista com uma comunidade”, afirmou Davis-Pierre em entrevista ao USA Today.

Josh conta que enviou o roteiro para a avaliação de consultores: “Eles liam o roteiro e me diziam se havia algo que parecesse falso ou ofensivo. O que nunca aconteceu.” O próprio autor, após a gravação da primeira temporada da série, anunciou que havia sido diagnosticado autista. O personagem revela seu diagnóstico na segunda temporada.

Atrizes neurotípicas chegaram a concorrer para disputar o papel de Matilda, mas todas acabavam fazendo “uma espécie de voz de robô”, disse Josh à revista New Yorker. O entendimento de Kayla sobre sua própria condição fez toda a diferença. “Ver um papel como esse foi um momento muito surreal para mim”, disse Kayla em entrevista à Entertainment Weekly.

“Eu continuei relendo e relendo. Depois de ler o roteiro do piloto eu só queria muito esse papel, porque eu nunca li um roteiro como aquele, muito menos uma personagem como a Matilda”, contou a atriz. Segundo a revista, ao ver a performance animada e expressiva de Kayla, Josh soube que ela seria a pessoa certa para o papel.

Lançada este ano, As We See It mostra três autistas adultos que moram juntos

Uma outra série com atores autistas é As We See It, de 2022, que mostra a convivência de três autistas adultos que dividem um apartamento. São todos autistas que, assim como Matilda, precisam de pouco suporte.

A série apresenta as diferentes formas de manifestação do autismo e dá uma dimensão dos diferentes desafios que enfrentam enquanto adultos. “Eu honestamente não fazia ideia sobre o conjunto de atores autistas que temos disponível”, disse à Folha o criador da série, Jason Katims.

Na série, Sue Ann Pien interpreta Violet, uma jovem de origem asiática em busca de um companheiro amoroso para iniciar sua vida sexual e que precisa se estabelecer em seu trabalho em uma lanchonete. Rick Glassman é Jack, um gênio da tecnologia que fala o que pensa sem rodeios e vê seu emprego e independência financeira colocados em risco. Albert Rutecki vive Harrison, um jovem com agorafobia que se apoia na alimentação excessiva para lidar com questões emocionais.

“Eu não seria capaz de interpretar esse papel se não fosse autista”, Ann Pien. “Não teria sido capaz de oferecer as cores e a profundidade que extraio de minhas experiências.”

Idealização da trama e construção do roteiro precisam contar com autistas

Uma das críticas feitas à série está na produção do roteiro. “A série sempre tenta adicionar nuance numa coisa que não necessariamente deveria ter e acaba passando essa ideia que na minha opinião é falsa, que os autistas são um perigo sexual pra sociedade, que são rudes com chefe. Eu não acho que isso seja verdade”, comentou o estudante de Ciências da Computação Bruno Fillmann, no Introvertendo.

Tiago Abreu reforça a preocupação com a forma como as produções são pensadas. “O problema central, muitas vezes, dessas produções, é que elas não representam o espectro do autismo com a mesma diversidade no processo de produção – e aí estou falando principalmente sobre roteiro, que eu acho que é o ponto mais importante – muitas vezes não tem participação de autistas”, afirma.

“Acaba não tendo muito sentido você incluir atores autistas que vão interpretar personagens que foram construídos por pessoas sem deficiência e que muitas vezes vão reproduzir comportamento estereotipados por que é isso que o roteiro pede – que é uma crítica, por exemplo, que foi feita essa nova série da Amazon que saiu esse ano [As We See It]”, completa o jornalista.

Ainda faltam produções que retratem autistas com necessidade maior de suporte

Outra questão é que a inclusão de autistas interpretados por autistas nas séries ainda é restrita aos de nível 1 – aqueles que precisam de menos suporte.

“A gente sabe que quando a gente fala sobre autismo na vida adulta, quando a gente fala sobre autistas com maior dependência, é muito difícil construir um arco narrativo desses personagens sem a participação dos pais ou de outras pessoas. Nesse sentido, a gente já fica limitado pela própria ideia da produção ficcional”, avalia Tiago.

“Eu acho que ainda faltam algumas coisas para preencher essa lacuna com base em documentários. Eu vejo uma ausência principalmente de abordagens falando sobre autistas com deficiência intelectual.”

Também é limitada a representatividade de autistas negros e trans, por exemplo, embora outras letras da sigla LGBTQIA+ já venham ganhando destaque. O reality Amor no Espectro, que acompanha autistas em busca de um relacionamento amoroso também faz parte do caminho que vem sendo traçado para reforçar essa representatividade e tornar o cripface apenas parte de um passado.

Escrito por Clarice Sá, Teia.Work

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