Ainda em fase experimental, técnica já aponta prejuízo em reconhecimento de emoções independente do grau de autismo

O rastreio do movimento ocular de crianças autistas vem sendo explorado por pesquisadores. Entender como se movimenta e onde se fixa o olhar de um bebê ou uma criança pode indicar a possibilidade de um diagnóstico de autismo, dar suporte a decisões de professores que lidam com alunos autistas e compreender o reconhecimento de emoções destas crianças.

O assunto foi abordado no VII Simpósio de Atualização do Transtorno do Espectro Autista, promovido pelo Instituto PENSI, em uma mesa mediada pela neurologista infantil Marcilia Martyn, responsável pelo setor de Eletroencefalograma (EEG) do Sabará Hospital Infantil, e pelo neurorradiologista Edson Amaro, assessor científico do núcleo de neurodesenvolvimento do Instituto PENSI.

Técnica permite conferir se a criança compreende para onde é direcionada a olhar e de que forma foca no objeto

As técnicas de rastreio ocular (eye-tracking, em inglês) se desenvolveram a partir dos estudos de 1967 do pesquisador russo Alfred Yarbus. Ele construiu um aparelho muito simples capaz de registrar para onde as pessoas direcionavam o olhar ao ver uma determinada cena e conseguiu desenhar o movimento dos olhos.

A adoção do rastreio ocular na compreensão das crianças com autismo vem da necessidade de avaliar seu comportamento sem que ela precise verbalizar. O registro do rastreio ocular não serve como método diagnóstico, mas é pesquisado como um apoio para identificar indícios do transtorno. “Não temos dados ainda consistentes para conseguir diagnosticar só com base no processamento visual”, diz a psicóloga Katerina Lukasova, professora da UFABC.

Atualmente, as pesquisas adotam aparelhos simples, como uma câmera acoplada ao computador. A câmera emite um raio infravermelho para dentro do olho, ilumina a pupila, a luz se reflete e gera um ponto luminoso estável, que é registrado por um software – que precisa ser calibrado e ensinado a delimitar o espaço visual que o olho observa. A partir daí, é possível por exemplo apresentar algumas figuras na tela, estimular verbalmente a criança a olhar para uma delas e conferir se seu olhar compreende o estímulo, e de que forma foca o olhar na figura em questão.

“Podemos medir a eficiência, ou seja, o tempo levado para que haja uma resposta e medidas de realização, ou seja, quantas vezes a criança fixou o olhar no objeto ou fora dele, por quanto tempo e qual foi o padrão da busca visual, se as fixações foram curtas ou longas”, diz Katerina.

Crianças autistas, em geral, não fixam a atenção nos olhos

Um dos estudos realizados com auxílio do rastreio ocular analisou a relação entre o olhar das crianças autistas e rostos humanos, que são estímulos essenciais logo após o nascimento.

“Bebês recém-nascidos já procuram rosto ou algo com dois buracos, uma boca que vai se modificar, sorrindo ou não, mas procuram esse estímulo e se fixam nele. É muito importante se vincular com um humano para garantir a sobrevivência”, conta a professora Katerina.

No caso das crianças com autismo, a observação padrão é diferente. Enquanto as típicas têm um padrão de olhar triangular – focando olhos e boca -, as autistas têm um padrão retangular, que não passa pelos olhos.

Um outro estudo comparou a reação do olhar de crianças autistas a imagens de outras crianças e a figuras geométricas. A atenção das crianças autistas foi maior para os estímulos geométricos. “Em geral, temos uma grande tendência em crianças com autismo de preferirem estímulos não sociais”, afirma Katerina.

Apoio do rastreio escolar para planejamento e monitoramento da educação inclusiva também vem sendo pesquisado

Estudos também investigam como utilizar o rastreio ocular no apoio ao planejamento educacional inclusivo, adotado como ferramenta complementar na tomada de decisão de professores que atuam com crianças autistas.

A aplicação da ferramenta deve ser voltada para quem precisa de apoio individualizado e intensivo. O trabalho deve ser realizado com a participação da família.

O primeiro passo é avaliar o repertório do aluno: quem é a pessoa, quais são suas habilidades, quais são os objetivos de ensino que serão estabelecidos com o apoio da família a partir das necessidades desta pessoa.

“A gente entende que aprender implica uma mudança de comportamento relativamente duradoura no repertório do estudante e precisa prever não só aquisição de comportamento, mas a manutenção e a generalização, que são o grande desafio”, conta a professora adjunta da UFABC Priscila Benitez.

O rastreio ocular pode ser usado para monitorar o aprendizado da criança a partir da comparação em diferentes momentos do acompanhamento escolar.

Reconhecimento de emoções é essencial para o desenvolvimento e para estabelecer conexão com outras pessoas

Uma das pesquisas sobre rastreio ocular investigou como as crianças autistas lidam com o reconhecimento de emoções. Os bebês típicos desenvolvem de maneira muito instintiva o contato com o olhar e o reconhecimento de emoções. Até mesmo recém-nascidos conseguem imitar comportamentos, como copiar alguém que mostra a língua, por exemplo.

“Isso abre pra criança a leitura de mundo, o que tá acontecendo no ambiente. Se olho pra minha mãe e vejo que ela tá assustada, consigo modelar meu comportamento no ambiente. Também consigo me adaptar ao que ela está sentindo e me conectar com outras pessoas, receber esse contato emocional e responder ao ambiente”, conta a neuropsicóloga Patricia Muñoz, mestre e doutora em Psicologia Experimental pelo Instituto de Psicologia da USP. À medida que a criança cresce, ela aprende a reconhecer emoções e vai aprimorando essa habilidade.

Patrícia atua em uma pesquisa em que os participantes recebiam treinamento para contato visual e reconhecimento de emoções. A pesquisa analisa como o olhar de crianças autistas e não autistas interagem com figuras de rostos. As não autistas focam na região T, formada por olhos, nariz e boca, com grande tempo de fixação na boca. As crianças autistas não dedicavam maior atenção à boca e tinham um padrão de olhar difuso. “Elas exploram um pouquinho de cada coisa na foto”, diz a pesquisadora.

Rastreio ocular mostrou que autistas em geral têm déficit no reconhecimento de emoções

O estudo percebeu que a variação de QI influencia o resultado. “Há correlação entre baixo funcionamento cognitivo e prejuízo no reconhecimento de emoções”, explica. O grau de autismo, no entanto, não afeta o reconhecimento das emoções. Não importa se a criança tem autismo de nível 1, 2 ou 3. “Só pelo fato de estar nesse grupo clínico, [a criança] já apresenta dificuldade de reconhecimento de emoção”, complementa Patricia.

“Tendo esse conhecimento, a gente pode perceber a importância de trabalhar no reconhecimento de emoções nas crianças de qualquer ponto do espectro. O fato de ela ter um autismo mais severo não vai agravar a questão do reconhecimento de emoção. Essa descoberta pra gente foi surpreendente e um dado muito interessante pra pensar na questão da intervenção  não só para crianças que tenham um autismo mais severo mas principalmente para aquelas com um autismo de alto funcionamento”, diz a pesquisadora.

O rastreio ocular é uma técnica que ainda está em fase de exploração por pesquisadores. Por estar em fase de experimentação, a técnica não tem o reconhecimento da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), nem de entidades de classe, para aplicação em larga escala. Não há uma regulamentação específica para o uso, e portanto, não pode ser aplicado por profissionais em consultórios nem pode ser oferecido comercialmente no país. O que os estudos apontam hoje é o potencial do uso da técnica em diversas áreas do conhecimento.

 

Escrito por Clarice Sá, Teia.Work