O Transtorno do Espectro Autista (TEA) e o sono

1/10/2024TEA no Dia a Dia0 Comentários

O Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) é uma condição do neurodesenvolvimento caracterizada por desafios em dois domínios principais: interação social e comunicação, além de padrões repetitivos e restritos de interesses, comportamentos ou atividades. Esse transtorno pode estar relacionado a condições genéticas, como a síndrome de Angelman, além de deficiência intelectual e outros distúrbios neuropsiquiátricos. Comorbidades frequentemente associadas ao TEA incluem epilepsia, transtornos de humor, transtornos de ansiedade e Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH).

As regiões cerebrais e os sistemas de neurotransmissores envolvidos no desenvolvimento do TEA também desempenham um papel fundamental na regulação do sono e da vigília. Distúrbios do sono são desafios significativos enfrentados por jovens com autismo e, frequentemente, afetam também os membros da família que cuidam deles. Em março de 2024, uma pesquisa científica foi publicada na revista “Clínicas Psiquiátricas da América do Norte”, abordando a relação entre TEA e alterações do sono. Neste artigo, discutiremos os dados apresentados na pesquisa acima.

Aproximadamente 50% a 80% das crianças e adolescentes com TEA enfrentam dificuldades relacionadas ao sono. Entre os problemas mais comuns estão a dificuldade para iniciar e manter o sono, despertares noturnos frequentes e prolongados, acordar muito cedo pela manhã e padrões irregulares de sono. Essas dificuldades para iniciar e manter o sono são consideradas um dos distúrbios clínicos mais prevalentes entre indivíduos com autismo e tendem a persistir com o tempo, ao contrário do que ocorre com seus pares neurotípicos.

As elevadas taxas de distúrbios do sono em crianças com TEA, inicialmente observadas em estudos de menor escala, foram confirmadas por pesquisas mais amplas, segundo a pesquisa de março/2024. Um estudo conduzido por Malow e colegas examinou a prevalência dessas dificuldades em 1.518 crianças, entre 4 e 10 anos, diagnosticadas com TEA e inscritas no Autism Speaks Autism Treatment Network Registry. Os resultados mostraram que 71% das crianças apresentavam distúrbios do sono, embora apenas 30% tivessem um diagnóstico formal. Outro estudo de grande escala indicou que os problemas de sono que surgem na primeira infância geralmente persistem na adolescência, embora a natureza desses problemas tenda a mudar com o tempo. Segundo esse estudo, que analisou distúrbios do sono relatados pelos pais, as crianças mais novas enfrentavam resistência na hora de dormir, despertares frequentes e ansiedade relacionada ao sono. Já os adolescentes lidavam com insônia ao iniciar o sono, curta duração do sono e sonolência diurna.

Objetivamente, indivíduos com TEA apresentam uma arquitetura do sono anormal em comparação aos indivíduos neurotípicos, conforme medido por polissonografia (PSG). As anomalias observadas incluem latência prolongada para adormecer, redução do tempo total de sono, menor eficiência do sono, diminuição do sono REM e não REM, além de um menor número de movimentos oculares rápidos (REMs) durante a densidade REM. Um estudo recente descrito nesta pesquisa de março revelou que, mesmo entre crianças com TEA que não relatam queixas de sono, a qualidade do sono é objetivamente comprometida.

Está cada vez mais evidente que a má qualidade do sono em crianças com autismo está diretamente associada a comportamentos problemáticos durante o dia. Crianças com TEA que apresentam sono de baixa qualidade tendem a ter taxas mais elevadas de agressão, automutilação, ansiedade, hiperatividade e desatenção. Além disso, os sintomas centrais do TEA, como comportamentos repetitivos e dificuldades na reciprocidade social, tendem a se intensificar em crianças que dormem mal. Estudos mostram que uma maior variação na duração e no tempo do sono pode prever comportamentos perturbadores subsequentes durante o dia. Em um estudo, os distúrbios do sono observados inicialmente previram o desenvolvimento posterior de ansiedade significativa. Esses problemas de sono também aumentam a carga sobre os pais e o estresse familiar, muitas vezes afetando negativamente o sono dos próprios pais. Portanto, abordar e tratar os distúrbios do sono em crianças com TEA pode não apenas melhorar o comportamento diurno da criança, mas também o bem-estar e o funcionamento dos pais.

O tratamento dos problemas de sono em jovens com TEA é multifacetado, refletindo a complexidade dos fatores causais envolvidos. Causas ambientais e comportamentais desempenham um papel crucial, especialmente no que diz respeito à insônia. Enquanto muitos desafios ambientais podem afetar o sono de qualquer criança, alguns são particularmente relevantes para aquelas com TEA, como fatores intrínsecos, condições psiquiátricas e médicas, comorbidades e os efeitos colaterais de medicamentos usados para tratar comportamentos problemáticos durante o dia.

Conforme evidenciado por uma recente revisão sistemática e meta-análise mostrada no texto da revista “Clínicas Psiquiátricas da América do Norte”, intervenções comportamentais baseadas em evidências são tanto viáveis quanto eficazes para tratar problemas de sono em crianças com TEA. As técnicas utilizadas são, essencialmente, as mesmas empregadas para tratar insônia em outras crianças, focando na correção de comportamentos que possam ser problemáticos e na promoção de bons hábitos de sono. Um componente fundamental do tratamento é a educação dos pais, capacitando-os a implementar intervenções comportamentais em casa. Essa abordagem oferece a vantagem da individualização do tratamento, permitindo que os pais escolham as intervenções mais adequadas e viáveis para seus filhos no ambiente doméstico.

Em jovens com TEA que apresentam distúrbios do sono, agentes farmacológicos são frequentemente prescritos também, especialmente quando as intervenções comportamentais se mostram ineficazes. Esses medicamentos são utilizados na tentativa de tratar a insônia, tanto na fase de início quanto na manutenção do sono, contribuindo para um aumento na duração total do sono. No entanto, é importante destacar que, até o momento, não existem medicamentos aprovados pela Food and Drug Administration (FDA) especificamente para essa indicação em crianças e adolescentes.

Em uma pesquisa baseada no banco de dados do Autism Speaks Treatment Network Registry, constatou-se que medicamentos para dormir foram prescritos para 46% das crianças de 4 a 10 anos que receberam um diagnóstico relacionado a problemas de sono. A melatonina foi o tratamento mais comumente utilizado, seguida por alfa-agonistas.

Sempre que possível, é preferível escolher um medicamento que vise tratar o distúrbio do sono e, ao mesmo tempo, melhore uma condição coexistente. É indicado iniciar com doses baixas e ajustá-las gradualmente, monitorando os efeitos colaterais de forma atenta. Como ainda não há medicamentos aprovados pela FDA especificamente para tratar a insônia em crianças, a seleção do tratamento medicamentoso deve ser cuidadosa e considerar as comorbidades do paciente e os possíveis efeitos colaterais da medicação.

Bibliografia:

Autism Spectrum Disorder and Sleep – PubMed (nih.gov)

Bárbara Bertaglia

Bárbara Bertaglia

Médica residente na pediatria da Santa Casa de São Paulo, pesquisadora na área de Transtorno do Espectro Autista e membro da equipe Autismo e Realidade desde 2019

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