João Vitor Ferreira, o brasileiro campeão mundial de judô DI
Modalidade tenta se consolidar oficialmente e ser reconhecida como paralímpica
Um jovem autista brasileiro é o primeiro campeão mundial da história do judô para deficientes intelectuais, o Judô DI. João Vitor Ferreira, morador da cidade catarinense de Timbó, levou o título em 2017, após seis vitórias por ippon, o golpe considerado perfeito, de pontuação máxima na disputa.
João, de 21 anos, faz parte da terceira geração de uma família de judocas. Os três irmãos dele aprenderam a lutar, mas não viraram atletas, e três primos são faixa-preta. Dois tios e o pai, Giovani, também seguiram os passos do avô de João, que começou a história. A quarta geração já está a caminho, com um sobrinho de 5 anos que já treina no tatame.
No judô DI, há cinco categorias, classificadas de 1 a 5. Quanto maior o número, maior o grau de severidade da deficiência. João luta na categoria 2, uma das mais leves. Além de autismo, ele tem síndrome do X frágil, que afeta as funções da fala e da linguagem e também o intelecto.
João não tem pressa, costuma respeitar o próprio tempo, necessário para falar e se desenvolver
João só começou a falar aos 8 anos, quando já havia começado a lutar. Aos 14, recebeu o diagnóstico, que não foi confirmado oficialmente até hoje. Aos 16, tinha a coordenação motora de um garoto de 12. Ele respeita o próprio tempo. “Não tenho essa coisa de pressa”, diz. Gago, não se intimida a falar. É palestrante, inclusive. Com tranquilidade, se expressa no tempo que for necessário para expor o que pensa. “A gagueira pra mim não foi um impedimento. Não vejo isso como um problema.”
O pai conta que se surpreende com o pensamento de João. Como uma das características da síndrome do X frágil, ele tem orelhas grandes. Por isso, junto com a esposa, Giovani sugeriu ao filho que fizesse uma cirurgia reparadora. A negativa veio em forma de pergunta: por qual razão todas as outras pessoas não faziam uma cirurgia para ficar com a orelha igual a dele?
João conta que não lida com preconceito no dia a dia. Lembra apenas de um episódio marcante na escola, quando a professora que mais gostava disse que “ele não passava de um deficiente, que não adiantava seguir sonhos que não ia alcançar”. João estava em uma aula de reforço. “Quando escutei isso, eu falei pra ela: ‘Eu vou embora. Eu vou embora porque você não me ama. Eu escutei o que tu falou, eu não posso ficar aqui”. Ele voltou a pé sozinho para casa, algo que não costuma fazer, por não ter o costume de olhar para os lados ao caminhar. Hoje diz que superou o episódio. “Eu perdoei ela. Acho que foi um momento de infelicidade.”
Por outro lado, ao tornar-se campeão em Colônia, na Alemanha, as memórias foram as melhores possíveis. “Eu lembrei das pessoas que estavam aqui [no Brasil]. O vô, a mãe, as pessoas que me apoiaram.” João estava acima do peso e precisou se dedicar a um trabalho específico para se manter na categoria de até 81 kg. “A coisa que foi um sonho meu foi escutar o hino. Pra mim foi algo que eu me emocionei, escutar o hino do meu país, sendo o primeiro da América, foi uma emoção maior ainda. Espero que eu não seja o único.”
Pai de João preside a ABJI, recém-criada, para lutar pelo reconhecimento da modalidade no Brasil
O trabalho para que João não seja o único brasileiro a chegar ao pódio exige cuidado e paciência. A categoria não faz parte ainda da Confederação Brasileira de Judô (CBJ). A entidade, no entanto, dá apoio a competições que, antes do período pandêmico, ocorriam de forma paralela a competições adultas ou infantojuvenis. Durante a pandemia, por exemplo, os juízes da CBJ aproveitaram para estruturar regras de arbitragem da modalidade.
“A ideia é que a gente faça isso chegar às pessoas, que elas saibam que existem outros segmentos do judô e que têm regras para esses segmentos. As pessoas desconhecem e ficam à margem disso. Pois existe sim e é um trabalho de inclusão maravilhoso. É obrigação de todos nós abraçar esses nossos irmãos e aprender com eles”, afirmou ao site Olimpíada Todo Dia o Sensei Minakawa, que encabeça este movimento dos árbitros.
Atualmente existem campeonatos regionais, como a Copa Minas, e um campeonato brasileiro está sendo articulado. Em dezembro, foi oficialmente criada a Associação Brasileira de Judô Inclusivo (ABJI), que reúne representantes de vários estados do país para promover a categoria. O presidente é Giovani, pai de João. A ideia da nova entidade é promover eventos exclusivos da categoria.
O Mundial vencido por João foi o primeiro com apoio oficial da Federação Internacional de Judô (FIJ). No entanto, a entidade ainda não reconhece a categoria como paralímpica – apenas o judô para cegos entra na competição. Durante o Mundial, um sinal da ampliação do reconhecimento da modalidade se destacou. Uma comitiva do Japão esteve no evento, entrevistou participantes e acompanhou as lutas. Segundo Giovani, a expectativa é que a visibilidade no país, berço do judô, dê impulso à modalidade. Após o campeonato, o intercâmbio foi reforçado com a visita ao Japão de representantes da Holanda, os mais fortes do planeta em judô DI.
A principal entidade do judô DI atualmente é a Special Needs Judo Union (SNJU), com forte atuação na Europa na luta para tornar a modalidade paralímpica. “É uma batalha, não é só aqui”, diz Giovani.
Falta de malícia na competição é um dos elementos que diferencia o atleta DI dos convencionais
No Brasil, a criação da ABJI conta com apoio de judocas paralímpicos e olímpicos, como o tetracampeão paralímpico Antonio Tenório e a campeã panamericana, mundial e medalhista olímpica Mayra Aguiar.
Ainda que tenham o mesmo peso, altura e idade, não é recomendado que atletas convencionais e DI lutem entre si. “Eles têm muitas características de falta de maldade, falta de malícia. Uma das diferenças do judô DI e do judô convencional é que um atleta que não é DI, um atleta neurotípico, um cego ou um deficiente físico, ele tem a malicia.”, conta Giovani. “Ele pensa: ‘Eu vou entrar ali e vou fazer tal coisa’. O DI, não. O DI não tem essa sacada. Ele pode até ser treinado pra fazer coisas assim, mas não é algo inato dele. O João não luta com atletas convencionais, nunca lutou, nunca participou de competições, pode ser o mesmo peso, mesma idade, mas é bem diferente.”
Giovani conta que, a partir do fortalecimento da modalidade, a tendência é que os atletas com Síndrome de Down tenham uma categoria própria, por diferenças musculares e físicas. A altura média é de 1,60m. Já João, por exemplo, mede 1,90m, o que aumenta a vantagem. No Mundial de 2017, dos 13 atletas que disputaram na categoria 2, apenas um tinha Down.
Moradia assistida e conclusão da faculdade estão entre os planos de João nesta pandemia
João agora espera a chegada da vacina para retomar a rotina de treinos com vigor. Parado desde março de 2020, voltou aos treinos funcionais diários em dezembro, mas ainda seguia longe do tatame e da academia. Da rotina fazem parte as aulas na faculdade de fisioterapia, que agora vão para o sétimo semestre.
O peso aumentou no isolamento e chegou aos 90kg. Um dos trabalhos é retomar o peso necessário da categoria até 81 kg. O peso é também uma preocupação de Giovani em relação aos seus pequenos atletas da escola inclusiva. “Pra crianças com deficiência foi uma preocupação porque a ansiedade potencializa. Tem um menino [da escola] que tem um distúrbio alimentar. Ele tem no máximo 8 anos e estava com 60 kg, obeso. A pandemia trouxe esse problema pra todos”, conta.
A rotina de Giovani já incluía bastante tempo em casa. A atividade que gera renda para a família é com comércio exterior, realizada no mesmo escritório em que ele e João nos concederam a entrevista por vídeo conferência.
Entre os planos para o futuro de João estão a conclusão da faculdade e uma possível especialização em neurologia ou em esporte e a mudança para uma moradia assistida, um modelo que já existe na Holanda.
“São condomínios fechados para pessoas autistas, de vários níveis. Não só autistas, mas pessoas com deficiência”, define Giovani. Segundo ele, há um projeto de moradia assistida para pessoas com deficiência intelectual em Blumenau. “Lá, as pessoas às vezes dependem de terapia, restaurante, lavagem de roupa. Lá é todo mundo diferente junto. É um condomínio deles.” A moradia garantiria não só apoio, mas também algo que preocupa os pais de João, que é permitir que ele seja o mais independente possível.
João conta que não tem um sonho específico neste momento, mas diz que é bom acreditar em sonhos. Quando perguntamos se tinha alguma mensagem que gostaria de deixar aos leitores falou sobre sonho e perdão. “Talvez acreditando, esses sonhos se tornam realidade. E talvez não se tornem realidade no momento que tu quer. Mas ele se torna realidade porque você buscou ele num certo momento da vida. E eu falo bastante de perdão. Falo que perdão e amor andam juntos. Tu não pode perdoar sem amar.”
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