Willian Chimura e a abertura para o diálogo contra o capacitismo
Ativista e influenciador não se esquiva de polêmicas e se propõe a promover um debate construtivo pela conscientização do autismo
Willian Chimura é uma das principais vozes da comunidade autista no país, com cerca de 200 mil seguidores em seu canal do YouTube e mais de 20 mil no perfil @chimurawill do Instagram. Quando começou as postagens, jamais imaginou que seu conteúdo teria a repercussão que alcança hoje.
As primeiras publicações foram pensadas a partir de uma série de questões básicas que percebeu serem frequentes dentro e fora da comunidade autista depois de ser diagnosticado autista leve.
Apesar de apresentar sinais clássicos de autismo leve, Chimura só foi diagnosticado já adulto
O diagnóstico veio na idade adulta Chimura já tinha 24 anos e passou por um ano de investigação até que houvesse um resultado conclusivo. Desde a infância, sua mãe já suspeitava de um desenvolvimento atípico, mas nenhum médico cogitou a possibilidade de autismo, mesmo com sinais clássicos da chamada Síndrome de Asperger, um grau leve de autismo.
“É um exemplo de livro, mesmo, de Síndrome de Asperger, eu costumo dizer. De uma criança que tinha interesse não usual por temas, objetos que não eram comuns para a idade. Eu repetia muito as frases que ouvia em desenhos, em filmes e em jogos, principalmente. Essa ecolalia que a gente fala. Eu tinha as estereotipias ou stimmings, que são aqueles movimentos motores estereotipados que são característicos do autismo. Enfim, todo o conjunto completo, digamos assim, era bem característico. Só que não existia muita informação, não existia muita capacitação – até hoje não existe, né – mas definitivamente não existia naquela época”, relata.
Chegada do diagnóstico ampliou sua autonomia para estudar sobre como desenvolver novas habilidades
Depois do diagnóstico, a sensação foi de alívio. Havia, enfim, uma razão para que ele se sentisse diferente. “Eu já percebia isso, mesmo sem saber o que era autismo”, conta. “Quando você sabe o que é, isso te dá todo poder – uma sensação de autoaceitação, de autocompreensão muito maior. A notícia por si só é muito impactante. Pra mim, positivamente impactante.”
A partir da descoberta do autismo, Chimura se sentiu motivado a tentar entender o que explica seus comportamentos, como lidar com o déficit de socialização, e quais habilidades precisaria desenvolver (e como) para estabelecer relações mais saudáveis. Ganhou autonomia para pesquisar e se conhecer a partir de estudos científicos. A habilidade na leitura em inglês ajudou bastante. “Posso dizer que eu estudo ciência para me entender melhor, e me entendendo melhor, consigo interagir melhor também, conviver melhor em sociedade, em qualquer área da minha vida.”
Programador, hoje ele é mestrando em Informática na Educação e pesquisa como a tecnologia digital pode ajudar autistas a se desenvolverem.
Estudos e vivência como autista levaram Willian a orientar mães e pais e à ideia de produzir vídeos
Autismo se tornou “o tema mais interessante do mundo de se estudar” e levou Chimura a fazer parte de comunidades nas redes sociais e grupos de WhatsApp. Acabou encontrando muitas mães e pais de autistas recém-diagnosticados, ainda muito confusos e tentando compreender o transtorno. Com base nos seus estudos, Willian começou a ajudar a esclarecer dúvidas.
“Comecei assim, até o ponto em que se tornou insustentável. Muitas pessoas vinham até mim e eu pensei ‘ok, eu posso talvez começar a gravar alguns vídeos ou escrever em algum blog algumas coisas, porque tem algumas perguntas que geralmente são mais frequentes”, conta Chimura. A ideia inicial era salvar tempo e alcançar mais pessoas.
Canal criado sem pretensão para divulgar conceitos básicos transformou Chimura em youtuber e ativista
O convite para uma palestra em 2018 deixou ainda mais clara não só a necessidade de passar essas mensagens, mas a percepção de que ele poderia contribuir de forma única com a comunidade, a partir dos estudos, da vivência como autista e da vivência em grupos com mães e pais.
O primeiro plano foi criar um canal e produzir os vídeos básicos de referência. Seriam até dez vídeos com explicações básicas sobre autismo. O número atual já passa de 50. Isso porque, mais que se ater a esclarecimentos sobre o transtorno, o canal virou uma forma de se expressar sobre questões delicadas em debate na comunidade. Sem que tivesse a pretensão, Chimura se tornou youtuber e passou a ser reconhecido como ativista.
“Nunca havia me proposto como um ativista na verdade, nem mesmo como youtuber, pra ser bem sincero”, revela Chimura. “Eu era mais um autista que queria produzir conteúdo para ajudar famílias e outros autistas, e era isso. Mas, de repente, isso se escalou nesse nível em que meus vídeos passaram a ser utilizados em instituições de ensino, em outros contextos de movimentos sociais, em outras associações e as pessoas passaram a me reconhecer como ativista, e foi assim que passei a incorporar essa postura de ativismo.”
Para autistas e familiares, dói ver personalidades falando algo que pode ser muito capacitista
Um dos aspectos que explica a relevância de Chimura na comunidade autista, e também fora dela, é a clareza e a tranquilidade que dedica aos assuntos abordados – especialmente quando falamos em polêmicas envolvendo autoridades e personalidades.
Chimura não se esquiva de entrar nos assuntos e evita uma abordagem mais agressiva, que pode acontecer por parte da comunidade ao se sentir ferida, especialmente em casos de capacitismo.
“Quando você é autista, um familiar, mãe ou pai de autista, e você vê determinadas personalidades, pessoas públicas falando algo sobre o autismo que não é muito bacana, pode soar preconceituoso, pode até ser muito capacitista em alguns casos, isso dói”, diz. “Seria muito não empático julgarmos essa pessoa por conta de uma reatividade mais agressiva frente uma situação de preconceito. Eu acho muito não empático pedir para que autistas tolerem preconceito, tolerem capacitismo. Até formular a própria frase soa errado por si só.”
Agressividade nos debates vem da dor de quem lida no dia a dia com o descaso e o preconceito
Chimura não condena quem adota a agressividade no discurso, mas prefere um tom mais moderado e assertivo para evitar polarizações. “É muito difícil de se lidar. Ao mesmo tempo que também, às vezes, a gente engaja numa atitude, um mecanismo de contra-ataque que pode ser muito agressivo, aí fica agressão contra agressão e o produto final disso acaba não sendo tão benéfico.”
O que ele se propõe é “fazer um uso produtivo da situação”, com o objetivo de conscientizar as pessoas por mais inclusão e respeito aos autistas na sociedade. “Existe apenas uma sociedade, e em espaços públicos e em outros lugares, todos nós precisaremos conviver, inevitavelmente, uma hora ou outra. Tendo isso em vista, busco a longo prazo de uma forma sustentável, transmitir mensagens sempre mais assertivas”, diz.
“É claro que sempre tenho também a minha parcela de personalidade. Às vezes gosto de fazer piadas ou uma ironia. Em alguns casos, pessoalmente fico estressado, mais irritado. Permito em algum nível isso ser transmitido nas mensagens, mas ao mesmo tempo sempre busco ser assertivo porque acho que isso acaba sendo um grande diferencial em algumas situações de muito estresse, muita confusão em que, infelizmente, a gente acaba quase não aproveitando nada de produtivo.”
Polêmica recente envolveu namorada de humorista que usou termo autista como adjetivo para depreciá-lo
Um dos casos mais recentes e de maior repercussão foi o de um humorista que foi chamado de autista pela namorada de forma pejorativa nas redes sociais. O episódio é considerado capacitista porque o termo autista não é um adjetivo, mas sim uma condição de vida que exige cuidados e envolve uma luta intensa por direitos básicos em todo o mundo.
Após a postagem, houve uma avalanche de críticas e reações agressivas por parte da comunidade. Influenciadores se posicionaram para tentar contornar a situação e conscientizar o casal. Ao fim do processo, após um pedido de desculpas, Chimura foi convidado para o programa de entrevistas em que trabalha o humorista para esclarecer questões relacionadas ao autismo.
“Eu realmente não me esquivo, principalmente em situações que envolvem debate sobre temas que eu acho que são construtivos de serem debatidos, produtivos para amadurecer o debate e as ideias que nós, como comunidade, queremos propagar sempre na sociedade em geral, como maior aceitação, maior inclusão, maior respeito.”
Chimura parte do pressuposto da falta de conhecimento para orientar pessoas envolvidas em casos de capacitismo
O processo adotado por Chimura para lidar com essas situações envolve, em primeiro lugar, validar o gerador da polêmica, partindo do pressuposto de que não houve a intenção de ofender. “Entendo que a pessoa apenas fez isso porque nem sequer considerou – ou seja, estamos falando de um nível de conscientização muito baixo – que na sociedade existe um grupo de pessoas, PcDs (Pessoas com Deficiência), que sofrem preconceito, que diariamente precisam enfrentar uma sociedade que em diversos contextos não possui recursos de adaptação (…) Naturalmente, ela nem sequer considera que essas pessoas existem na sociedade e que vão, eventualmente, consumir essa mensagem.”
A partir daí, a orientação entra em cena. “Tendo a tentar uma abordagem assertiva e educativa, de validar a pessoa primeiro e orientar sobre por que aquilo dói, por que é inadequado falar de determinada forma.”
Principal objetivo é estabelecer diálogo que permita a pessoa deixar de replicar discursos capacitistas
A ideia é estabelecer um diálogo capaz de instruir a pessoa que foi capacitista de forma a aumentar a conscientização e reduzir a probabilidade de replicar o mesmo discurso no futuro.
Chimura pondera, no entanto, que apesar de buscar estabelecer um modelo que classifica como produtivo, entende que ele não deve ser considerado como a melhor abordagem, de forma universal. “Também vejo importância na história do ativismo e dos movimentos sociais em que reações ditas violentas, ditas agressivas, em algumas situações foram as atitudes necessárias para provocar mudanças importantes”.
A visão dele é de um ativismo plural, em que sua visão convive com outras que podem ser efetivas em diferentes contextos. ‘Entendo que o movimento como um todo, inevitavelmente, vai ser composto por uma parte de autistas, de ativistas que também vão reagir dessa forma mais agressiva e eu considero, sim, uma parcela importante. Acho que é só uma questão de ponderar. A gente não pode ser quase 100% agressivo e também não podem faltar formas mais incisivas de se cobrar mudanças, principalmente em situações que envolvem mudanças sociais importantes.”
Protagonismo dos autistas vem ganhando espaço no ativismo e visibilidade tende a se ampliar
Da criação do canal em 2018 até o cenário atual, Chimura aponta algumas mudanças no ativismo do autismo, como o crescimento da participação dos autistas e um entendimento da importância da visibilidade do transtorno, com apoio de personalidades da comunidade, como o apresentador de TV e pai de autista Marcos Mion, com 13 milhões de seguidores no Instagram.
“Esse protagonismo dos próprios autistas certamente é uma tendência. Entendo que é a maior probabilidade de acontecer a partir dos próximos anos. Principalmente de personalidades famosas como Marcos Mion, por exemplo, cada vez mais participando desse movimento também, incorporando realmente essa bandeira, não havendo nenhuma brecha pra tratar autismo como algo a ser escondido, mas sim algo a ser realmente entendido, compreendido, acolhido. Vejo essa tendência, felizmente, cada vez mais.”
Multiplicidade do autismo precisa ser entendida para incluirmos cada um a partir de suas particularidades
Para Chimura, a compreensão do autismo em sua multiplicidade de manifestações é essencial para ampliar a conscientização e permitir que cada autista possa ser incluído a partir de suas especificidades.
O autismo é considerado um espectro por se manifestar de forma única em cada indivíduo. No espectro, há uma divisão em três graus – leve, moderado e severo -, que leva em conta o tipo de suporte necessário para a pessoa exercer atividades do dia a dia. Além disso, há uma série de outras diferenças. Por exemplo, os autistas, em geral, apresentam distúrbios sensoriais, como falta de sensibilidade (hipossensibilidade) ou o excesso dela (hiperssensibilidade) no sistema olfativo, ocular, tátil, gustativo ou auditivo. Em cada um, esse distúrbio se manifesta de uma forma e em um grau diferente.
Há também as comorbidades, como TDAH, distúrbios do sono e ansiedade, entre outros – cada autista pode apresentar uma ou várias delas. O autismo também pode ser essencial, desencadeado pela combinação de vários fatores, ou sindrômico, ou seja associado a síndromes, como a de Down, por exemplo.
Há, portanto, uma infinidade de características que os autistas podem ou não apresentar. Segundo Chimura, isso quer dizer que não há um protocolo de inclusão ou uma adaptação que dê conta de todos os autistas.
“Se pudesse citar uma barreira, seria principalmente por parte das instituições, dos locais, dos contextos sociais que precisam se adaptar para receber autistas. Uma barreira é a não compreensão de que a adaptação para autistas deve ser necessariamente individualizada”, afirma. “Existe uma adaptação, duas, ou sei lá qual o número de adaptações, que serão necessárias para aquele autista. E no momento em que existir outro autista, que vai usufruir daquele serviço, naquele contexto, também será necessário individualizar o apoio para aquele outro autista.”
Adoção de práticas baseadas em evidências científicas precisa nortear processos de inclusão
Além do entendimento amplo da pluralidade e da necessidade de adaptações específicas para cada autista, Chimura aponta ainda a importância de se adotarem práticas baseadas em evidências científicas. “É uma bandeira que eu defendo, porque acho que há muitas tentativas de inclusão que, por mais que sejam cheias de boa vontade, na prática acabam sendo pouco fundamentadas. Isso eu também consideraria como uma barreira nesse processo: de se entender qual é a relação da ciência com esse processo de inclusão dos diversos contextos sociais”.
Para quem quer compreender melhor o ativismo autista, ele indica acompanhar os principais movimentos sociais do autismo no Brasil, caso da Reunida (Rede Unificada Nacional e Internacional pelos Direitos dos Autistas), da Abraça (Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas), da Capricha na Inclusão e do Moab (Movimento Orgulho Autista Brasil).
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