Acessibilidade com sensibilidade
Arquiteto e urbanista Nikson Dias conta como a chegada do filho autista mudou seu olhar sobre a construção dos espaços e das cidades
Sempre achei clichê frases prontas como, “faça o que ama” ou “quando se faz o que ama não é trabalho”, e daí por diante. Mas, de fato, a vida vira e mexe nos dá um sacode para desentranhar essas convicções e teorias de auto sabotagem.
No meu caso, não poderia ser diferente, vai vendo.
Arquiteto e urbanista, em pleno gozo das atividades profissionais, esculpindo um mundo ideal e sonhando com ideias das mais variadas, desempenhando cargos e funções desejadas pela classe, sou agraciado com um presente que mudaria não só a minha vida, mas alteraria todas as ideias pré-concebidas a respeito do amor, do uso dos espaços, do tempo disponível, do modo de vida, dos tipos de lazer, dos hobbies. Nasceu o Miguel.
Diagnóstico do filho aos 2 anos trouxe enxurrada de dúvidas, culpa, e um longo processo de compreensão
O nascimento de um filho (em ineditismo, o primeiro), é cheio de surpresas, descobertas, aprendizados, erros e acertos. Mas de repente, não mais que de repente, Miguel, aos 2 anos, foi diagnosticado autista.
Como assim? Autismo? O que é? Tem cura? Espectro? O que é espectro? Grau? Não bastando essas perguntas, mas aquelas mais absurdas, Onde eu errei? O que faltou fazer? A ignorância sobre o tema era total.
Um mar de perguntas, um mundo novo se apresentando sem mapa, sem guia, sem norte. Confesso que o processo de compreensão e aceitação foi lento, teve choro e questionamentos pessoais. Não foi nada fácil.
Conviver com o autismo mostrou novas formas de ver o mundo, impactadas por ruídos, cores e texturas
Enquanto pai, fui tentando entender, compreender e definir planejamentos novos, para que pudesse viabilizar tratamento, ambiente controlado, educação, saúde, enfim, todas as angústias dos pais do século XXI. Até porque, de início, entendi que tudo que antes havia sido planejado e organizado, de mais nada valeria – hoje consigo ver a ingenuidade embaraçada com a ignorância em que vivia.
O que eu não imaginava é que descobriria, além das particularidades dos autistas, novas formas de ver o mundo. As cores são diferentes. As texturas têm relevância. Os ruídos, uma intensidade não relacionada a decibéis, mas à agradabilidade – um ruído pode ser maléfico para uns e irrelevante para outros.
Aprendi ainda como os sistemas organizacionais são fundamentais para ordenamento das ideias dentro daquela cabecinha fervilhante. Entendi que a velocidade dos processos se alterariam muito rápido para algumas coisas e super lenta para outras, independente das complexidades. Entendi também que o mundo precisaria se adaptar para proporcionar qualidade de vida e tratamento.
Teoria da Acessibilidade com Sensibilidade foi criada a partir de estudos sobre neuro arquitetura
Passo então a navegar pela neuro arquitetura, uma disciplina nova nos debates, em que formas e funções lidam diretamente com o comportamento humano, as cores alteram o temperamento e a ordem dos espaços definem processos produtivos. E ainda, independentemente de todo esse cuidado, caso alguém não se sinta bem no espaço, pode simplesmente dizer tchau.
Assim, criei a teoria da Acessibilidade com Sensibilidade, onde o projetista se coloca no lugar do autista, entendendo o seu programa de necessidade não só espacial, mas sensorial, onde nos espaços públicos se ordena fluxogramas, organogramas, texturas, cores, formas, ruídos, a fim de proporcionar o máximo de sensações agradáveis possíveis.
Com o espaço acolhendo, seria mais fácil acessar o indivíduo, possibilitando interações das mais diversas.
Engenheiros e arquitetos são doutrinados a partir de normativos técnicos, mas falta empatia na tecnicidade
Como toda teoria, ela passou por amadurecimentos e crises de identidade. Por vários momentos me peguei perguntando: quem não quer calçadas conexas, cores agradáveis, texturas confortáveis, espaços públicos acolhedores? Como se eu estivesse somente apaixonado e não convicto, como se a minha vontade fosse a de criar uma redoma e não proporcionar inclusão.
Nos cursos de engenharia e arquitetura, somos doutrinados conforme normativos técnicos, NBRs, Resoluções, Normas Regulamentadoras e mais um punhado de regras e bibliografias, que nos afastam do fator humano e nos aproximam dos modos cartesianos de pensar.
Não que as doutrinas não sejam importantes. Aliás, são elas que mantêm os prédios em pé. Mas de fato, dentro da frieza normativa, faltava algo.
Lembra no começo deste artigo, quando falei sobre o amor? O Miguel me ensinou a transformar uma ciência exata, em algo que pudesse tocar e mudar a vida das pessoas transformando os espaços onde elas vivem, projetando espaços públicos não mais sob os auspícios na tecnicidade, mas com amor, com empatia, com sensibilidade e com verdade.
Construir espaços pensando na necessidade dos autistas traz benefícios para todos
A NBR 9050 trata de regras de acessibilidade de forma muito bem fundamentada, com preocupações para com os idosos, pessoas com mobilidade reduzida e gestantes, entre outros. Mas não contempla o autismo, suas particularidades espaciais, as nuances do espectro e as contribuições que o espaço construído pode trazer para tratamentos e evoluções.
Assim, em nome do amor, estou embarcando em um projeto de pesquisa, dentro de um doutoramento, para transformar essa teoria em fundamentação. E assim como hoje, ao projetar, lembramos de todos os normativos técnicos, por um momento nos cobrimos de amor, sensibilidade, empatia e nos colocamos no lugar do outro, do outro dentro do espectro.
Em debates já realizados chegamos a um resultado fundamental: a partir do momento em que se projeta e constrói pensando nas necessidades do espectro autista, todos – repito, todos – ganham espaços melhores, ambientes mais agradáveis e qualidade de vida.
Se a classe profissional que lida com projetos vai comprar a ideia, não sei, mas se em algum lugar, um autista se sentir melhor no seu espaço construído e se sentir bem no espaço público, todo esse trabalho de pesquisa já terá valido a pena. Espero poder, em breve, trazer os resultados finais, e que possamos dizer que, nos espaços construídos, ninguém fica para trás.
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Nikson Dias
Pai do Miguel. Arquiteto e urbanista, conselheiro federal do CAU/BR desde 2018. Professor do departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFRR desde 2010. Cidadão Boa-vistense reconhecido pela Câmara dos Vereadores da Cidade de Boa Vista, pelos relevantes serviços prestados à sociedade.
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