A história por trás do mito de que vacinas causam autismo
Livro narra como a hipótese ganhou força e acabou desmentida após anos de pesquisa e investigação
A hipótese de que as vacinas causam autismo já era discutida de maneira informal por familiares de autistas quando um evento específico deu o impulso que faltava para que a falsa teoria ganhasse corpo.
Era 26 de fevereiro de 1998, quando, em uma entrevista coletiva no Hospital Royal Free, de Londres, o jovem gastroenterologista Andrew Wakefield anunciou a possibilidade da vacina tríplice causar autismo. O seu artigo foi publicado na prestigiada revista científica britânica Lancet, o que trouxe credibilidade ao trabalho de Wakefield.
O estudo analisou, ao longo de dois anos, 12 crianças com idade entre 3 e 10 anos. Em oito delas, os sinais do transtorno, segundo os pais, só apareceram após os pequenos terem recebido a dose da vacina.
A tríplice, também conhecida como MMR – ou SRC no Brasil – protege contra sarampo, rubéola e caxumba. A hipótese de Wakefield levava em conta que as crianças apresentavam comportamentos autistas acompanhados de infecção intestinal grave e que, no trato intestinal delas, havia vestígios de vírus do sarampo.
Texto do artigo reconhecia que associação entre vacina e autismo não estava comprovada, era só uma hipótese
No próprio artigo, o médico registrou que a associação não estava comprovada e era apenas uma hipótese. Inclusive porque a associação direta entre receber a vacina e apresentar sinais de autismo se baseava nas lembranças dos pais das crianças, um indício incapaz de sustentar afirmações científicas.
A própria revista Lancet, na mesma edição, trazia um artigo que refutava a tese de Wakefield, apontando que a amostra do estudo não era representativa e que depender da memória dos pais para marcar o início da apresentação dos sintomas era questionável.
Vale contar que, já na entrevista coletiva de Wakefield, houve confusão. Um dos médicos que representava o hospital, se chocou a ponto de esmurrar a mesa após ouvir Wakefield alegar que preferia dividir a vacina em três injeções separadas e que não confiava nos testes de segurança a longo prazo. Arie Zukerman, que era o decano da faculdade de medicina, afirmou que centenas de milhões de doses da vacina haviam sido aplicadas e se mostraram seguras.
Frase “vacina causa autismo” não foi dita, mas foi assim que o público absorveu a mensagem
Após a coletiva, a imprensa passou a procurar Wakefield para entrevistas individuais. Ele defendia que eram necessários estudos complementares ao que havia publicado e que, enquanto isso, a vacina tríplice deveria ser evitada. A partir de então, anos de pesquisa se dedicaram a testar a hipótese – sem sucesso. Wakefield não chegou a declarar explicitamente que “vacina causa autismo”, mas foi assim que seu estudo reverberou e alçou o médico à fama mundial.
A história é narrada no livro Outra Sintonia – A História do Autismo, dos premiados jornalistas John Donvan e Caren Zucker, publicado no Brasil em 2017 pela Companhia das Letras. A narrativa, baseada em um extenso trabalho de pesquisa, traça um panorama de 80 anos da história do transtorno, que envolve discordâncias médicas, tratamentos controversos e a luta das famílias pelos direitos civis dos seus filhos, além das tensões em torno do movimento antivacina.
A obra aponta que profissionais da saúde pública responsáveis por programas de imunização consideram que há um risco mínimo tolerável e necessário para cada vacina, manifestado em casos raríssimos. No caso da vacina contra pólio, por exemplo, sabia-se de uma chance exígua de choque anafilático. O autismo, no entanto, jamais constou na lista de efeitos adversos. A ideia predominante no meio médico é que não tomar a vacina expõe uma pessoa ao risco de contrair a doença que se pretende eliminar. Também é levado em consideração que quanto maior o número de vacinados, maior a proteção de toda a população.
Em 2001, a taxa de vacinação não passou de 79% em Londres, quando deveria ser de, no mínimo, 95%
Quatro anos depois da tumultuada entrevista, Wakefield foi demitido, em novembro de 2001, do Hospital Royal Free, que era contrário à mensagem propagada por ele. Nesta época, o médico já havia divulgado cerca de outros doze estudos em publicações científicas relevantes, se defendido de críticas e mantido a recomendação de evitar a vacinação até que houvesse provas sobre sua segurança.
No entanto, o que especialistas alegavam é que não havia indício de falta de segurança. Apesar disso, a fala de Wakefield tinha impacto. A taxa de vacinação em Londres caiu a 79% naquele ano, enquanto o ideal era um mínimo de 95%.
Em 2000, Wakefield esteve em uma audiência no Congresso dos EUA sobre a segurança da vacina, e disse que havia encontrado novos casos que relacionavam crianças com autismo, problemas estomacais e vírus do sarampo. Porém, ao fim, declarou que isso não significava que a vacina fosse a causa do transtorno.
Outras dezenas de estudos refutaram a hipótese de Wakefiled ao longo dos anos. Um deles, com cerca de 500 crianças, envolveu um período de tempo que incluía o início da vacinação tríplice na Grã-Bretanha. Nenhuma relação entre autismo e vacina foi encontrada. Estudos de epidemiologistas dos EUA, Japão, Finlândia, Dinamarca, Canadá e outros países também rebateram a possibilidade de relação entre a tríplice e o autismo. Houve ainda pesquisas focadas na proliferação do vírus do sarampo em crianças com comportamento autista, e nenhuma confirmou os resultados de Wakefield.
Combate ao uso de mercúrio como conservante de vacinas entra em foco no início dos anos 2000
Em uma outra audiência realizada no Congresso dos EUA, uma mãe trazia um novo elemento para a discussão. Ela não lançava suspeitas sobre o vírus do sarampo ou a vacina tríplice. A alegação era que o responsável pela causa do autismo era o mercúrio presente no timerosal, usado como conservante nas vacinas e, consequentemente, a quantidade supostamente excessiva de mercúrio recebida pelas crianças nos primeiros meses de vida por conta da vacinação.
Um documento recomendou aos pediatras dos EUA que usassem vacinas sem timerosal e adiassem a dose de hepatite B e orientava fabricantes de vacina a retirar o composto das fórmulas. O mesmo documento, no entanto, registrava que não havia nenhum risco conhecido que justificasse as recomendações.
As chamadas “mães do mercúrio” se organizaram em instituições sem fins lucrativos e apoiaram estudos que pudessem endossar a hipótese. No entanto, ao movimento antivacina faltava apoio científico consistente que efetivamente comprovasse suas hipóteses. Os autores atribuem a força do movimento, apesar da falta de comprovação científica, ao medo que ele provoca. “Nunca uma campanha de sensibilização foi mais poderosa que o medo”, diz o livro.
Ainda assim, mães e pais de pessoas com autismo passaram a ganhar visibilidade na mídia e poder de pressão sobre órgãos do governo – depondo em comissões e participando de audiências. Essa força teve desdobramentos políticos. Em 2006, foi aprovada nos EUA, a Lei de Combate ao Autismo, em que um orçamento de US$1 bilhão foi liberado para ser gasto em cinco anos para suprir necessidades dos autistas.
Reportagens demonstraram que interesses financeiros de Wakefield determinaram o resultado de seu estudo
Ao mesmo tempo em que pesquisadores se empenhavam em estudar a hipótese de Wakefield, sem confirmá-la, trabalhos jornalísticos também se detiveram sobre o caso. Um deles foi crucial.
Wakefield contava que as famílias pesquisadas no controverso estudo o procuraram por iniciativa própria. No entanto, uma matéria do Sunday Times publicada em 2004, mostrou que todas as famílias chegaram a ele por meio de um advogado especializado em danos corporais, que estava preparando um processo contra os fabricantes da vacina tríplice. Wakefield e o advogado conversaram sobre a possibilidade de demonstrar um vínculo entre a vacina e o autismo que pudesse justificar o processo.
Graças ao advogado, Wakefield contou com US$ 80 mil para financiar o artigo publicado na Lancet. A matéria aponta ainda que o estudo foi enviado ao advogado antes mesmo de ser apresentado à revista científica. O médico negou as informações.
Além da ligação com o advogado, o mesmo repórter comprovou em um documentário que, antes de publicar o artigo, Wakefield havia depositado um pedido de patente de uma nova vacina contra o sarampo – uma alternativa a quem quisesse evitar a tríplice. Ou seja, havia interesse financeiro individual por trás do estímulo ao medo da vacina.
A metodologia de Wakefield também foi posta em xeque. Um de seus colaboradores na pesquisa afirmou que, desde o começo, não havia evidências do que se pretendia confirmar.
Matéria sobre complô para encobrir os perigos do mercúrio foi desmentida por investigação
Outros golpes contra quem duvidava das vacinas ocorreram em 2004. Uma outra matéria, da Rolling Stone, apontou que o governo dos EUA atuava para encobrir os perigos do timerosal. Porém, logo após a publicação, uma série de correções teve de ser divulgada.
A reportagem gerou uma investigação no Senado norte-americano que durou 18 meses e vasculhou e-mails e transcrições de reuniões, e entrevistou funcionários de três órgãos do governo. As alegações não foram confirmadas. No mesmo ano, um relatório do Instituto de Medicina dos EUA declarou oficialmente que rejeitava a possibilidade de vacinas com timerosal causarem autismo.
Em março de 2004, mais uma derrota começava a se desenhar. Nos EUA, o Programa Nacional de Compensação de Dano Causado por Vacina, o chamado tribunal da vacina, deu início a um julgamento histórico. O programa decidiu que daria um mesmo veredito aos cerca de 5 mil casos de famílias que alegavam que vacinas haviam provocado autismo em suas crianças. A sentença saiu em 2009. A decisão considerou a hipótese “extremamente improvável”. Houve recursos, que foram negados.
Cancelamento do registro de Wakefield e retratação da Lancet fecharam um ciclo em torno da controvérsia
No intervalo entre o início do processo e a sentença, novas evidências contra a relação causal entre vacina e autismo apareceram. Uma delas era que, apesar da redução do uso de timerosal, o número de casos de autismo continuava crescendo.
Em 2010, o Conselho Geral de Medicina do Reino Unido, após três anos de investigação, classificou o comportamento de Andrew Wakefield como desonesto, irresponsável, antiético e enganoso. Considerado inapto para o exercício da profissão, teve seu registro médico cancelado. No mesmo ano, a Lancet se retratou de todo o artigo.
No livro, os autores defendem a ideia de que os anos de controvérsia deixaram como resultado o impulso de novas vozes com uma nova perspectiva a respeito do autismo. “Ofendidos pela premissa fundamental dos ativistas da vacina de que o autismo era uma espécie de doença e uma tragédia, eles viraram essa proposição de ponta-cabeça, comemorando ‘ser autista’ e declarando ‘cura’ um palavrão’”, diz o texto. A obra, considerada referência no tema, pode ser encontrada nas versões física e digital no site da editora.
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