Retrato do ativismo autista no Brasil

2/04/2021Histórias0 Comentários

Uma forma recente de se compreender o autismo

O ativismo do autismo no Brasil começou a se desenvolver entre o final da década de 1970 e o início da de 1980 e, assim como no mundo inteiro, foi introduzido por familiares e profissionais médicos. Até meados dos anos 2000, não se pensava na participação de autistas em reflexões sobre o autismo e na construção de políticas públicas em nosso país. Este cenário só começou a mudar a partir de 2010.

Nos últimos 10 anos, um ativismo feito pelos próprios autistas, de todas as regiões do país, passou a despontar em associações, perfis em redes sociais, canais no YouTube, textos em blog, eventos, congressos e obras literárias. É uma tendência que reflete não um futuro distante de como pensaremos o autismo, mas uma realidade já presente.

Ativismo autista tem influência do conceito de neurodiversidade

No final da década de 1990, a socióloga australiana Judy Singer observou a interação de autistas pela internet, o desenvolvimento dos estudos do distúrbio e uma questão geracional do autismo que unia famílias a um diagnóstico em comum de autismo. Com base nesse fenômeno, criou a expressão “neurodiversidade”, termo que se transformou em um campo dentro dos estudos do autismo e passou também a representar parte de um movimento social composto por autistas.

A neurodiversidade se tornou questão maior para os ativistas autistas, desde aqueles mais ligados a organizações até os que praticam o chamado ativismo solo. As duas primeiras associações de autismo no Brasil que demonstraram explícito interesse em ter autistas ativistas – o Movimento Orgulho Autista Brasil (Moab) e a Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas (Abraça) – carregaram em comum a defesa de uma perspectiva de autismo baseada nos direitos humanos.

Se esta perspectiva se traduziu inicialmente como uma atuação pouco influente nas políticas públicas – como a Política Nacional de Proteção dos Direitos das Pessoas com Transtorno do Espectro Autista ou, mais recentemente, as discussões sobre o autismo no Censo –, hoje ela é impossível de ser ignorada. Todas as associações de autismo relevantes a nível nacional têm autistas em seu corpo de membros, apesar de existirem diferenças nos seus respectivos poderes de decisão.

Autistas adultos têm demandas historicamente ignoradas pela comunidade do autismo

Durante a década de 2010, alguns escritores autistas como Rodrigo Tramonte, Cristiano Camargo e Sophia Mendonça, por exemplo, começaram a compartilhar suas vivências no espectro por meio de narrativas literárias. São experiências geralmente conduzidas por pessoas que só obtiveram diagnóstico na vida adulta, que vivenciaram situações de exclusão no meio escolar, como bullying, e que chamam a atenção para questões relevantes na vida social de autistas, como depressão e suicídio, bem como os desafios de relacionamentos e inserção no mercado de trabalho.

Os temas também foram comumente explorados por autistas em outros meios digitais, como nos vídeos dos youtubers Marcos Petry e Leonard Akira , nas publicações do fotógrafo Nicolas Brito Sales, nos textos de Alice Casimiro no blog A Menina Neurodiversa, ou nas conversas conduzidas por autistas no podcast Introvertendo. Em setembro de 2016, o 1º Encontro Brasileiro de Pessoas Autistas (EBA), ocorrido em Fortaleza e organizado pela Abraça, foi organizado por e para autistas e se tornou um marco do ativismo autista no Brasil.

Se o autismo é historicamente percebido como uma questão de saúde, pessoas autistas costumam destacar influências sociais em torno do diagnóstico, como a influência do gênero no diagnóstico de autismo em mulheres. São autistas, também, que levantam com maior frequência pontos como a sexualidade no espectro e a existência de pessoas com TEA que se enquadram dentro da sigla LGBTQIA+. Desde o assassinato de George Floyd em 2020, ativistas como Luciana Viegas, Táhcita Mizael e Polyana Sá, além de nomes veteranos como Rita Louzeiro, inseriram discussões mais frequentes sobre a questão negra no contexto do autismo.

Por outro lado, nem tudo são flores. O primeiro youtuber autista de notoriedade no país, o matogrossense Nelson Marra, estreou seu canal em 2015 e, apesar do sucesso, o encerrou precocemente em meados de 2016. Experiências parecidas se tornaram frequentes, por diferentes motivos. Perseguição, dificuldades pessoais e outros desgastes fazem com que muitos autistas, ao longo do tempo, desistam da produção de conteúdo e, entre os mais engajados, até do ativismo propriamente dito.

Autistas podem entrar em conflitos com pais e profissionais

Um dos fatores de incipiência do ativismo autista é a relação pouco harmoniosa com uma parcela das famílias e profissionais. São vários os motivos: a forma negativa como alguns familiares podem falar sobre o autismo, discussões sobre tratamentos e terapias e, além disso, o questionamento de quem receberá centralidade nas discussões sobre o autismo – se o próprio autista ou a família, por ser sua responsável legal. Por outro lado, familiares costumam se queixar da postura considerada inflexível, e em alguns contextos, dura, de alguns ativistas autistas.

O epicentro destes conflitos é o que se costuma chamar de “autismo severo”. Familiares se queixam que as demandas de autistas com maior suporte não se encaixam com as de autistas ativistas considerados “leves”. A consequência direta é a discussão sobre tratamentos e terapias sobre o autismo. Uma delas, a Análise do Comportamento Aplicada (ABA), utilizada para o ensino de habilidades educacionais e sociais, é criticada por ativistas, que a acusam de tentar normatizar autistas.

O ativista e pesquisador Willian Chimura considerou que, a partir do ativismo, o autismo pode também ser observado como uma questão de identidade. “Vejo também que o que se discute na esfera social, nos espaços públicos, também manifesta interesse por parte da comunidade científica no que eles devem pesquisar ou deixar de pesquisar”, destacou.

O autismo enquanto identidade é visto como uma característica positiva e não algo a se eliminar. Em março, o estudante de psicologia Lucas Pontes promoveu críticas em seu Instagram ao uso da expressão “sair do espectro”, geralmente associada à cura do autismo e difundida por familiares e profissionais. Ele foi atacado por outras figuras públicas, que o taxaram de praticar um “ativismo radical”. A situação que envolveu Lucas é apenas um exemplo do quanto diferentes percepções do autismo levam a interpretações distintas sobre um mesmo tema.

Autistas querem autorrepresentação

 Uma das principais bandeiras do ativismo autista no exterior (e também no Brasil) é de que autistas, por si mesmos, podem representar suas próprias demandas. O lema “nada sobre nós sem nós”, comum no movimento de pessoas com deficiência, é uma máxima para reforçar a condição de ser autista como um ato de cidadania e luta. Isso não significa que não haja questionamentos de familiares acerca de pessoas autistas que não conseguem se autorrepresentar por não cumprirem requisitos básicos de expressão em sociedade, como desenvolvimento de fala/escrita e escolarização.

Ativistas autistas no Brasil costumam contornar a crítica afirmando que autistas em geral poderiam se expressar se o acesso a comunicação alternativa e aumentativa estivesse mais disseminado dentro da comunidade. Por outro lado, a relação de autistas com técnicas pseudocientíficas como a comunicação facilitada, defendida por parte dos ativistas, ainda é nebulosa. Por ora, muitos familiares de autistas que precisam de maior suporte costumam se referir como a voz de seus filhos, o que gera atritos em comunidade acerca de sua legitimidade.

Ainda é cedo para dizer se essas questões serão resolvidas. O que podemos considerar é que todos aqueles que pensam em se posicionar de forma coerente para o futuro da comunidade do autismo, em todas as suas esferas, não poderão ignorar a força e a relevância das vozes de autistas, antes deixadas em segundo plano.

 

Tiago Abreu

Tiago Abreu

Jornalista, ativista, pesquisador e mestrando em Comunicação pela Universidade Federal de Goiás (UFG), Tiago Abreu é um dos fundadores do Introvertendo, o primeiro podcast do Brasil feito por autistas.

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