Inclusão de autistas no judô
Pai de autista campeão mundial fala da importância do esporte para o desenvolvimento de pessoas com TEA
Iniciei minha prática no judô em 1976, com meus dois irmãos e meu pai. Desde então, o judô nunca mais saiu de nossas vidas. Digo “nossas vidas” porque hoje temos oito faixas pretas na família, posso dizer que é uma tradição. Muitas coisas aconteceram nestes anos todos, e uma delas mudou muita coisa em relação a vida de todos: nosso penúltimo faixa preta da família, meu filho João Vitor Ferreira, de 24 anos, que tem síndrome X Frágil e autismo.
Recebemos o diagnóstico tarde, quando ele já tinha 13 anos – as coisas eram mais difíceis tantos anos atrás. Mas não é exatamente sobre isso que quero escrever hoje. Escrevo aqui sobre o fato de que o João, como sendo da família Ferreira, também entrou no judô muito cedo, e, com o passar do tempo, assumi uma posição, além de pai, como seu professor. Abrimos uma escola de judô inclusivo que se chama Casa do Meu Amigo, e temos alunos autistas e com outras deficiências, também com idades variadas, mas hoje quero focar em como a prática do judô pode proporcionar a inclusão.
Individualidades de cada autista precisa ser respeitada e bem trabalhada no dia a dia da prática esportiva
Atualmente, ninguém mais discute sobre a importância do esporte na vida de todo ser humano. É comprovadamente importante, eficaz e prioritário na vida de todos, seja a prática de um futebol com os amigos ou uma caminhada no parque, seja a nível de alto rendimento, todos precisamos, inclusive para pessoas com TEA.
O judô tem características próprias que ajudam muito as pessoas com TEA. É algo que realmente me chama a atenção, como pai e como professor. Tenho vários alunos autistas de diferentes idades, e, como sabemos, todos são diferentes uns dos outros. Cada autista tem suas características próprias no que diz respeito a limitações, verbalização, tônus muscular, concentração etc. Cada um é um indivíduo com suas especificidades, e esta individualidade tem que ser respeitada e bem trabalhada.
Cada pequena vitória deve ser comemorada, para estimular o crescimento dentro das possibilidades
Além disso, tenho judocas como o João, meu filho, que foi campeão mundial na Alemanha, e obteve vários outros títulos nacionais e internacionais. Ou seja, dou aulas tanto para competidores, quanto para aqueles que ainda estão aprendendo movimentos básicos. Como cada autista tem suas peculiaridades, todo profissional que trabalha com eles tem que estar preparado, entusiasmado e (por que não dizer?) apaixonado.
Temos que comemorar cada movimento que antes pensávamos que não seria possível, cada sorriso, cada abraço, cada toque. É essencial incentivar o crescimento e progresso respeitando o limite de cada um, desafiar o autista a conhecer coisas novas por meio do judô, estimular sua participação em eventos. Um ponto importante é tratar o autista não como alguém que precisa de sua pena, ou que alguém para quem se faz um favor, mas como alguém que busca no judô o que ele pode proporcionar. Cito abaixo alguns exemplos.
Prática esportiva favorece a socialização e a autoestima, e estimula o sistema cardiorrespiratório
– Socialização
O autista que tem problemas em relação ao toque pode aprender a abraçar, a comemorar, a ter comunhão com o próximo, o judô estimula este contato, que acontece de maneira simples, até mesmo por imitação em um determinado exercício ou na prática em si;
– Autoestima
O autista, por meio de suas conquistas, pequenas ou grandes, ao longo de sua caminhada no judô vai ganhar confiança em si mesmo, sentir-se parte de um grupo, e isso vai reforçar sua autoestima;
– Melhora significativa na condição física
Há evolução no sistema cardiorespiratório. Aprender a respirar corretamente pode ajudar durante uma crise. Há esportes que funcionam como inibidores para autistas que se machucam a si mesmos, pois o autocontrole e a melhora de concentração ajudam muito e podem proporcionar a diminuição de estereotipias.
Coordenação motora, melhora do bem-estar e estímulo à conexão com as pessoas também são estimulados
– Coordenação Motora
Ganho significativo na coordenação motora como um todo. Movimentos que pareciam impossíveis podem começar a fazer parte de sua rotina, melhorando sua consciência corporal;
– Incentivo à conexão
Muitos autistas têm grande dificuldade em conectar-se com o ambiente ou com pessoas, e o judô pode colaborar com a quebra desta barreira de interação e comunicação;
– Promoção do bem-estar e da alegria
O esporte, sem dúvida, pode trazer para o autista experiências incríveis como seres humanos, gerando em seu corpo a química que gera bem estar e alegria.
Escola inclusiva favorece um ambiente em que é comum conviver com pessoas com TEA
Estou há muitos anos nessa área, atuando de forma voluntária. Considerando que o meu salário, minha retribuição pelo trabalho, é ver cada um dos pequenos progressos e o sorriso deles e da família. É ver estereotipias que sinalizam alegria. Enfim, eu aprendo algo novo quase todo treino. Sou surpreendido a cada treino.
Como disse, nossa escola é inclusiva. Todos treinam juntos. Os alunos com TEA não treinam separados dos neurotípicos. Pelo contrário, faço questão que entrem desde o primeiro dia de aula e se apresentem para os outros alunos , e aí vem o grande segredo. O judô tem este poder de incluir quando é trabalhado da maneira correta. Hoje, em nossa escola, é comum para todos conviverem com colegas com TEA e muitos fazem questão de ajudar. Isso me alegra muito, pois por ser pai de um jovem com TEA, senti na pele a dor da exclusão.
Atletas neurotípicos também ganham com a inclusão, ao aprender, na prática, que o mundo é para todos
Tenho orgulho dos meus alunos neurotípicos, pois estão se tornando seres humanos melhores, pessoas sensíveis e com uma visão de que o mundo é para todos, e que todos entendem que o TEA é apenas uma característica de seu colega de treino. Um dos principais aspectos que o esporte pode e deve abranger na vida de pessoas com TEA é a inclusão social, o judô tem este poder, este potencial e esta responsabilidade e função social.
Deixo uma sugestão para todos pais que procurarem algum esporte para seus filhos. Existem muitas opções, mas busquem um profissional que, além de conhecimento técnico, tenha esta preocupação em incluir, em enxergar seu filho como parte da turma, como alguém que merece respeito como qualquer outro. Fica a dica.
Giovani de Oliveira Ferreira
Pedagogo, graduado em Comércio Exterior e pós-graduado em Neuropsicopedagogia. Graduado em judô, atua como coordenador do paradesporto da Federação Catarinense de Judô e é técnico da seleção brasileira de Judô DI (deficientes intelectuais). É o técnico campeão mundial na Alemanha da modalidade em 2017. Palestrante sobre judô e TEA. Pai do João Vitor Ferreira, autista de 24 anos, campeão mundial e graduando em Fisioterapia. Presidente da ABJI (Associação Brasileira de Judô Inclusivo).
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