Daniel Wendler: seja um amigo
Doutor em psicologia fala sobre poder de transformação das relações de amizade
Fanático por sorvete com chocolate e amante de Super Nintendo, Daniel Wendler trocaria qualquer doce gelado ou as horas que passava jogando em frente à TV pela possibilidade de se divertir ao lado de um amigo. A primeira vez em que tentou fazer amizade, no entanto, teve como resultado um soco no estômago.
“Queria poder dizer que essa foi uma experiência incomum pra mim. Queria poder dizer que esse garoto era só um idiota, ou talvez ele estivesse num dia ruim, e da próxima vez que tentasse fazer amizade me receberiam de braços abertos. Mas o fato é que essa era uma experiência comum pra mim na época”, conta Daniel, hoje doutor em psicologia, em sua palestra no TEDxBend, em Oregon, nos EUA.
A primeira tentativa realmente não foi das melhores. Ao descer do ônibus ao lado de um colega, resolveu andar atrás dele. O colega passou a andar mais rápido, e ele também. O menino então começou a correr. Daniel também. Até que o garoto rapidamente parou, se virou, e atingiu Daniel com o soco. “Não quero dizer que toda vez que tentava fazer amizade levava um soco, mas às vezes me chutavam nas costas, e até fingiam gostar de mim, para me convencer a comer batatas fritas em que cuspiram escondido. Às vezes, simplesmente se levantavam e iam embora sem dar uma palavra”, detalha Daniel.
Falta de habilidade para se enturmar levou Daniel a ter certeza, aos 7 anos, de que era uma pessoa ruim
Daniel foi diagnosticado na adolescência com o que ainda se costumava chamar de Síndrome de Asperger, e que atualmente é citado como autismo com nível 1 de suporte ou de baixo grau de suporte. Na escola, se enturmar sempre foi um desafio exaustivo. “A parte mais difícil de toda essa rejeição é que eu achava que merecia isso”, lamenta. A cada soco no estômago, literal ou abstrato, Daniel consolidava a ideia de que era uma pessoa ruim.
Aos 7 anos, já tinha essa certeza. “Quando se é criança, tentamos entender o mundo da melhor maneira possível, e a única maneira de meu cérebro infantil entender minhas experiências de rejeição era achar que a culpa era minha.”
Hoje um adulto, Daniel consegue olhar para a própria infância e compreender o que viveu. Os constrangimentos vieram como consequência da dificuldade de ler pistas sociais, de adaptar o comportamento às normas, de compreender linguagens corporais, tons de voz e nuances da vida social que escapavam do seu entendimento. Na infância, só o que ele conseguia saber era que, não importa o quanto tentasse, não conseguiria fazer as pessoas gostarem dele.
Aos poucos, Daniel compreendeu que o desejo de manter amizades era uma necessidade humana
Logo após receber o diagnóstico de autismo, Daniel se mudou e passou a frequentar uma nova escola, no primeiro ano do Ensino Médio. A maior preocupação era se proteger de qualquer soco que a vida pudesse dar.
No primeiro dia de aula, tinha uma missão clara: manter-se invisível. Funcionou bem até a hora do recreio. Para evitar dividir a mesa do lanche, sentou no corredor, ao lado da porta da classe, para comer sozinho. Acontece que, na porta em frente, alguém que provavelmente também queria ser invisível também se sentou para lanchar.
Foi então que começou a perceber algo que talvez não afetasse só a ele, mas fizesse parte da experiência de cada um enquanto ser humano. “Gostaria de saber naquela época que eu lutava para me encaixar não porque eu era mau, mas porque essa luta simplesmente faz parte da experiência humana, e que na realidade meus sentimentos de solidão, que me faziam sentir tão diferente, eram coisas que eu tinha em comum com muitas outras pessoas”, diz o psicólogo.
Independentemente do diagnóstico, a sensação de deslocamento e falta de conexão machuca as pessoas
À plateia do TEDxBend, ele lista algumas das sensações que vivenciou:
– Sentia que não se encaixava;
– Sentia que, no fundo, não era como as outras pessoas;
– Sentia que precisava esconder parte de quem era para se encaixar;
– Sentia medo de que, se as pessoas o conhecessem de verdade, elas o deixariam
– Sentia-se sozinho, mesmo num grupo.
Em seguida pede para que levantem as mãos o que já haviam vivenciado as mesmas sensações. Boa parte da plateia se manifesta. “Acho que isso nos mostra que essas são experiências bastante universais, que são simplesmente parte de ser humano. Significa que todos nós queremos encontrar nosso lugar e pessoas com quem nos conectar, e isso faz parte da experiência humana. Significa que sofremos quando não temos isso, uma dor profunda. E isso é verdade, independentemente do diagnóstico”, afirma.
Experiência de amizade fez com que Daniel aprendesse a criar conexões positivas
O que aconteceu no corredor da escola no primeiro dia de aula mudou a vida de Daniel. Ele se levantou para conversar com o garoto em frente, que lhe perguntou se ele gostava de videogame. Pronto. “Soube, naquele momento, que tinha acabado de fazer meu primeiro amigo no colégio, e não apenas meu primeiro, mas meu melhor amigo”, diz Daniel, orgulhoso.
A experiência de amizade com Bobby mostrou a Daniel que o contato com outras pessoas também poderia trazer alegria e não apenas dor. A partir dessa conexão, muitas outras começaram a acontecer a partir da alegria. “Tentando ter conexões mais alegres, comecei a me aproximar mais, a trabalhar minhas habilidades sociais, comecei a fazer mais amigos, pessoas que se importavam comigo e me amavam como eu era, mesmo que eu fosse ainda meio estranho.”
A história se conecta com uma trajetória que já relatamos neste blog, a do islandês Brynjar Karl que passou a se sentir mais incluído e se desenvolver dentro do espectro ao ver seu talento valorizado não apenas pela família mas pela comunidade. Ele criou um projeto para construir uma réplica do Titanic com mais de 56 mil peças de Lego e, após se tornar notícia em todo o país, seus planos ganharam o mundo e ele recebeu suporte de pessoas que jamais imaginava. A inclusão das pessoas com autismo reduz o estigma em torno delas e de seus familiares e contribui com seu desenvolvimento e sua saúde mental.
Um amigo pode nos resgatar de um lugar de onde não conseguimos sair sozinhos
Daniel conta, no entanto, que amor é como comida. Segundo ele, “você pode ficar sem ela por um tempo, mas, se não tiver um suprimento constante, vai ter problemas”. Quando se mudou para o estado americano de Oregon para a pós-graduação em psicologia clínica, deixou para trás os amigos e familiares que lhe davam amor constantemente. Ele voltou a pensar que talvez tivesse se tornado mau novamente. Passou inclusive o próprio aniversário sozinho, com medo de que ninguém aparecesse se fizesse o convite.
A situação mudou quando um de seus colegas decidiu puxar conversa. Eles almoçaram juntos e se tornaram amigos. Claro, jogando videogame com frequência. “Pouco a pouco, Kyler se tornou meu melhor amigo. Posso dizer que a amizade de Kyler me resgatou”, conta Daniel. “Sozinho, eu não conseguia me livrar dos medos que me mantinham recluso. Não conseguia acreditar que eu merecia ter um lugar.”
Daniel frisa que ninguém é autossuficiente. Ele conta uma parábola judaica em que cada pessoa é agraciada com uma colher, mas incapaz de comer com ela, por ser muito comprida. A questão é que a colher é para servir os outros e, para comer, é preciso ser servido pela colher estendida por alguém. “Todos precisamos uns dos outros para criar esse lugar de pertencimento, e todos merecemos que cada um de nós crie esse lugar de pertencimento para todos nós. Ninguém é mau, ninguém é desqualificado, e nunca é tarde demais para alguém encontrar esse lugar. O legal é que todos temos a habilidade de criar esse lugar para outra pessoa”.
Amizade tem poder de cura comprovado e pode ajudar a salvar vidas
De acordo com Daniel, uma análise de 148 estudos envolvendo mais de 300 mil participantes descobriu que uma maior conexão social está ligada a uma redução de 50% no risco de morte prematura. O dado é equivalente ao efeito de parar de fumar, e é maior do que o peso do exercício físico ou da obesidade na mortalidade.“Se vocês descobrissem que há 50% de chance de curar qualquer doença apenas tocando em alguém, que tudo que tivessem de fazer seria estender a mão, garanto que todos vocês pulariam de suas cadeiras agora e correriam pro hospital mais próximo, passando em todos os quartos dizendo: ‘toca aqui!’”.
A consciência desse poder de cura pela amizade é essencial para que outras pessoas, como Daniel, possam compreender que não são más por meio da simples decisão de alguém de se tornar um amigo. “Vocês podem dar a uma pessoa a coragem de enfrentar a vida sabendo que ela não precisa fazer isso sozinha e, num momento difícil pra alguém, seu amor pode ser o motivo de ele escolher a vida em vez do suicídio. Esse é o poder da amizade, e esse é um poder que cada um de vocês tem (…) Então coloquem sua colher pra funcionar, espalhem um pouco de cura, e sejam um amigo.”
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