Aprendizagem e inclusão
Especialista discute como favorecer o ensino de crianças autistas e descreve processo ideal de inclusão com bases científicas
Qual seria a melhor ferramenta para quantificar o sucesso de uma iniciativa no campo da inclusão escolar? Há quem se apoie em uma métrica simplesmente numérica, como o aumento do total de matrículas em escolas regulares. No entanto, uma mensuração detalhada do aprendizado do estudante seria a melhor opção, como defende o pesquisador Lucelmo Lacerda.
“O número de matrícula eu não quero saber. Quero saber se esse indivíduo está aprendendo. Porque eu só posso dizer se uma coisa está funcionando ou não se a finalidade a que se destina está sendo progressivamente alcançada. A finalidade não é matricular em um certo lugar. A finalidade é a aprendizagem. É isso que eu quero ver, que esses indivíduos aprendiam tanto, passaram a aprender tanto e que em certos contextos aprendem tanto e em outros aprendem tanto”, afirma.
Lucelmo é um dos palestrantes do VII Simpósio de Atualização em Transtorno do Espectro Autista disponível gratuitamente na plataforma de Educação a Distância do Sabará Hospital Infantil. Assim como o projeto Autismo e Realidade, o hospital tem como mantenedora a Fundação José Luiz Egydio Setúbal (FJLES).
Há uma pequena parte dos alunos com deficiência que se beneficiam mais de contextos especializados
Apesar da necessidade de medição do aprendizado, Lucelmo afirma que existe no Brasil uma resistência à mensuração de fenômenos educacionais. “Existe uma ideia profundamente anticientífica de que a gente não pode medir os fenômenos educacionais porque eles transcendem qualquer medida”, diz o estudioso. “Essa tradição anticientífica da educação brasileira é um grande desafio a ser superado se a gente quiser fazer uma inclusão verdadeira. Pra gente avaliar de fato as habilidades do indivíduo.” Ele aponta uma lógica baseada em um pensamento maniqueísta, que se baseia em conceitos subjetivos de bem e mal, para avaliar um desempenho e não em comprovações da ciência.
Um dos pontos demonstrados pela ciência é de que nem todos os alunos são necessariamente beneficiados pela inclusão escolar. “A matrícula em escola comum é uma coisa que favorece a aprendizagem da grande maioria dos alunos, não de todos. Existe uma pequena parcela que tem prejuízos já bastante bem medidos, mensurados em inúmeros contextos, quando eles estão em sala comum. Eles têm muito mais benefícios quando estão em um ambiente mais estruturado – seria o que a gente chama de educação especializada ou instituições especializadas”, afirma o pesquisador, que se dedica às áreas de políticas públicas, psicologia e educação.
Nenhum país apontado como modelo de inclusão escolar acabou com escolas ou salas especiais
Uma das ferramentas de inclusão em escolas regulares são as salas especiais – espaços especializados instalados em escolas regulares nas quais quase sempre há matrículas que são híbridas. Neste caso pode acontecer, por exemplo, de um aluno participar com a turma algumas das aulas, mas em outras, em que não consegue acompanhar o aprendizado, é encaminhado a esses ambientes.
Há crianças com deficiência aptas a participar de todas as aulas. Para outras, o modelo híbrido é mais proveitoso. “No Brasil, fizeram parecer nos últimos anos que a única saída atual, contemporânea, científica, era estar na sala comum. Isto é mentira. Nenhum país do planeta acabou nem com escolas especiais, nem com salas especiais. Em vários desses países tem aumentado o número de crianças em regime híbrido.” É o caso da Irlanda do Norte e da Finlândia, por exemplo, apontados como modelos de inclusão escolar.
Mestre em história, doutor em educação e pós-doutor em psicologia, Lucelmo apresenta no simpósio o que seria um processo ideal de avaliação escolar para pessoas com deficiência. Ele pondera que, no entanto, há pessoas com um grau de comprometimento grave que não encontram neste processo ideal a melhor solução de aprendizado.
Avaliação baseada em protocolos científicos deveria ser primeiro passo do processo de inclusão escolar
O primeiro passo do processo de inclusão deveria ser uma avaliação adequada do estudante, baseada em protocolos cientificamente validados. Entre os disponíveis atualmente, traduzidos e adaptados para a língua portuguesa está, por exemplo, o VB-MAPP – protocolo de avaliação para crianças com autismo e atrasos de linguagem.
É preciso também que sejam avaliadas as habilidades acadêmicas do aluno e dois outros tipos de habilidades que são pré-requisitos às acadêmicas:
– Habilidades desenvolvimentais – aquelas que o indivíduo aprende em casa, normalmente sem precisar de ensino explícito, como falar, responder à fala do outro, rastreio visual (que é uma habilidade fundamental e comumente não avaliada).
– Habilidades de aprendiz – aquilo que a escola ensina sem ser explícita e planejada como por exemplo, ser deixado na porta da escola e entrar na escola em vez de correr, ou ouvir o sinal e ir para a sala, sentar, esperar, olhar para a professora, seguir instruções.
Processo ideal de educação envolveria professor de educação especial e equipe multidisciplinar na escola
A avaliação serve não apenas para saber em que série o aluno está, mas tudo aquilo que precisa desenvolver, considerando as habilidades citadas. A avaliação vai também determinar se o aluno precisa ou não de um mediador. Se houver prejuízo apenas de habilidades acadêmicas, não precisa. Mas se as habilidades de aprendiz ou desenvolvimentais forem prejudicadas, o acompanhante é necessário.
Seguindo na descrição de um processo ideal, deve haver um professor de educação especial disponível para liderar o processo de aprendizagem e ser apoiado pelo professor regente. Ao professor de educação especial, cabe a aplicação do protocolo cientificamente validado, e ao professor regente, a avaliação das habilidades acadêmicas.
O ideal seria que o professor de educação especial tivesse apoio de uma equipe multidisciplinar (com especialistas em fonoaudiologia, psicologia e terapia ocupacional). “Isso é o ideal. Mas há uma outra aberração do sistema educacional brasileiro: não ter esses profissionais em todas as escolas. O que significaria inclusive, muito mais apoio, melhor qualidade e economia em relação ao que é gasto hoje”, critica Lucelmo.
A ausência de profissionais multidisciplinares nas escolas prejudica principalmente crianças em condição de vulnerabilidade social, pois a disponibilidade das famílias em obter tratamento fora do ambiente escolar é menor. “As mães não podem falar assim: “Olha, patrão, terça e quinta não venho porque vou levar meu filho pro TO [terapeuta ocupaicional]e pra fono”, ilustra o pesquisador.
Objetivos de longo, médio e curto prazo devem ser definidos no Plano de Ensino Individualizado (PEI)
Concluída a avaliação, é necessário escrever um Plano de Ensino Individualizado (PEI). Neste documento, devem constar objetivos de longo, médio e curto prazo, que não podem ser amplos. Estas metas precisam ser muito bem especificadas para que seja possível mensurar se foram alcançadas.
O próximo passo é a definição de um programa de ensino baseado em evidências científicas para as metas de curto prazo. Cada um desses programas precisa ter uma folha de registro que vai ser preenchida ou pelo próprio aluno ou pelo acompanhante, conforme definido pela avaliação.
A folha de registro deve indicar detalhadamente todo o passo a passo de cada uma das tentativas de desenvolvimento dos objetivos de curto prazo. “O mediador é treinado pra isso. Ele produz esses dados todos os dias, transforma esses dados em gráficos e o professor de educação especial toma uma decisão baseado em dados”, explica Lucelmo. Concluída uma meta, passa-se a um novo programa, com uma nova folha de registro.
Sistema escolar inclusivo ideal é progressivo e inclui escola especial, sala especial e sala inclusiva
O PEI conta ainda com um protocolo de conduta, que indica características fundamentais da pessoa – se tem alergia, se toma algum remédio, se tem algum gatilho que desperta comportamento de agressividade e qual é o procedimento a ser adotado, por exemplo, em casos de agressividade extrema. O protocolo de conduta norteia, por exemplo, um novo profissional que entre na escola ou alguém que precise eventualmente substituir o acompanhante. O PEI deve indicar ainda quais são os recursos que aquela pessoa precisa como mediador, comunicação aumentativa, estímulos visuais (quantos e onde) etc.
Por fim, no PEI estão registradas também as diretrizes para adaptação de provas e atividades e que critérios devem ser adotados – por exemplo, reduzir textos, parear textos com imagens etc. É este conjunto de diretrizes que vai orientar o professor regente para lidar com esse estudante.
O sistema escolar inclusivo ideal, adotado por países desenvolvidos, inclui escola especial, sala especial e sala inclusiva. Esse modelo é progressivo: à medida que o estudante adquire uma habilidade, ele consegue usufruir de modelos e ambientes menos restritivos.
Na cartilha Autismo Compreensão e Práticas Baseadas em Evidencias, disponível gratuitamente na internet, Lucelmo lista 28 práticas baseadas em evidências para intervenção em autistas.
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