Jun: a história de um músico autista sob o olhar da irmã
HQ aborda cotidiano em família de jovem revelação do pansori, tradicional gênero musical sul-coreano
“Deixa o Jun comer por si próprio”. Assim a sul-coreana Yun-Seon repreende os pais pela forma como tratam Jun Choi, seu oppá – termo coreano para irmão velho. Jun é autista e, segundo a caçula, come perfeitamente, sem derramar comida, quando está ao lado dela. “Vocês continuam tratando ele como criança, é por isso que ele não consegue se virar sozinho.”
A dificuldade de fazer com que seu irmão autista seja tratado como um adulto gera indignação em Yun, menina neurotípica que cresceu encarando como parte da rotina a tentativa incessante dos pais de encontrar acompanhamento adequado, inclusão escolar e até mesmo a cura, por todos os meios materiais e espirituais possíveis, para Jun.
Ela é três anos mais nova que o irmão, diagnosticado com autismo aos 2 anos e meio. Não viveu, portanto, a expectativa pela chegada de um bebê ou o luto que costuma se abater sobre a família após o diagnóstico de autismo de uma criança. O luto com que os pais de Jun, os repreendidos à mesa pela filha, tiveram de lidar.
Aceitar o irmão autista nunca foi uma questão na rotina da caçula Yun, mas lidar com a dificuldade dos outros de aceitá-lo, sim
Yun nunca precisou aceitar a condição: sempre lidou com seu irmão da maneira como ele existia, como mais um dado de sua realidade. Brincar, implicar, herdar roupas e sapatos usados faziam parte do dia a dia na infância.
O desafio de Yun não passava pela aceitação do irmão, mas em lidar com o choque provocado pelo preconceito com que ele e sua família eram tratados. A falta de aceitação de Jun pelos outros, e até mesmo por nuances do comportamento dos pais, a revoltavam.
Uma simples ida ao metrô ou ao supermercado, por exemplo, atraía olhares invasores, e comentários desconfortáveis de gente que se sentia autorizada a julgá-los. “As pessoas olhavam para o meu irmão, depois para nós, aí voltavam a olhar para ele, de novo e de novo.” Atitudes tão incômodas que ela conta jamais ter se acostumado.
Também eram estranhos para Yun alguns cuidados recebidos por Jun. A mãe repetidamente dizia as instruções para que o menino conseguisse vestir corretamente as camisetas. Mas calçar os sapatos nos pés certos, por exemplo, era um desafio mesmo para Yun. Sem contar as consultas em que cartões com desenhos eram apresentados para que o irmão dissesse os nomes dos objetos. Para ela, pareciam encontros muito maçantes e pouco estimulantes para que alguém que jamais tinha falado começasse a se expressar.
Yun se irritava e saía na briga com os meninos que deixassem o irmão em paz e também brigava com o próprio irmão se ele não a deixasse. Em muitos momentos, se sentiu em segundo plano, dando apoio logístico à mãe, enquanto o irmão recebia todas as atenções da casa.
Yun testemunhou sacrifícios dos pais em busca da inclusão de seu o irmão autista
Ainda pequena, antes de entrar na escola, Yun viu a mãe se ajoelhar para implorar por uma vaga para Jun no ensino regular e também atuar como acompanhante dele dentro da sala de aula. Viu o irmão ser rejeitado pela professora e por outros alunos, e percebia a diferença entre a falta de traquejo dele nas sessões de desenvolvimento motor e a forma como reagia, por exemplo, aos sons que o rodeavam – como o do ventilador, um de seus favoritos.
Yun viu também, aos poucos, a família aceitar o autismo como uma condição intrínseca ao irmão. A ideia se tornou cada vez mais forte após a descoberta de habilidades musicais dele. Jun não só aprendeu a falar, mas foi considerado um prodígio quando, na adolescência, passou a se dedicar ao pansori, gênero tradicional coreano.
As apresentações de pansori contam histórias que podem se estender por até seis horas. Exigem dedicação, atenção e refinamento musical. Ele não só cantava, mas também tocava piano e passou a compor suas próprias peças.
Talento no pansori fez Jun ser visto não mais como um garoto autista, mas como um músico
A partir do contato com o pansori, Jun deixou de ser visto como um menino autista e passou a ser enxergado como artista. Começou a falar repetindo as letras dos cantos e costumava fazer apresentações curtas todos os domingos em Insa-dong, bairro turístico tradicional da capital Seul.
O talento no pansori trouxe sentido a algumas características já manifestadas por Jun. Ele adorava o som do vento. Empenhava-se muito para deixar os ventiladores da casa limpos para que pudessem emitir um som mais agradável. No metrô, era capaz de adivinhar o fabricante e o modelo do vagão pelo som que fazia ao se deslocar.
O menino, que parecia tão desajeitado em tantas outras atividades, agora começava a florescer. A vida da família passou a ser mais tranquila, mas as preocupações em torno de sua autonomia permaneciam. Será que Jun seria capaz de ir e voltar para casa sozinho? E se fosse abordado por alguém na rua? Estava vulnerável a assaltos ou agressões?
Autora da HQ sobre Jun é premiada por dramas que revelam a história das Coreias
Foi justamente em um curso de pansori que Jun conheceu a autora que narrou a história dele sob o olhar da irmã. A HQ “Jun”, de Keum Suk Gendry-Kim, foi lançada no Brasil no mês passado pela editora Pipoca e Nanquim.
Suk é mundialmente premiada por Grama, HQ de 2017, em que conta a história real de uma menina vendida pela própria família na infância e forçada a ser escrava sexual pelo Exército Imperial Japonês. Ela também é conhecida por A Espera, em que narra a história de sua mãe, separada da irmã durante a guerra entre as Coreias.
O encontro entre Suk e Jun aconteceu no outono de 2010. “Ele não parecia muito diferente dos demais jovens de sua idade, exceto por estar sempre acompanhado pela mãe, às vezes pelo pai. Por que será que eles trazem e levam um rapaz já crescido?”, se perguntava a autora. Ela conta detalhes do encontro em um texto no fim do livro.
Obras ajudam a ampliar a empatia e reduzir o estigma sobre autistas e suas famílias
Após o curso de outono, se encontraram novamente em um outro programa do curso, nas montanhas, durante o inverno. Desta vez, Jun estava sozinho e contava com os cuidados dos colegas. Ainda assim, diz Suk, ele não se misturava aos outros. Mesmo junto aos colegas, seu olhar seguia outro rumo. “Era como se ele estivesse isolado por uma redoma intangível de vidro transparente”, conta a autora.
Suk não demorou a sentir o incômodo causado pelos olhares desagradáveis direcionados ao amigo. “Havia uma curiosidade envolta numa aura negativa em todos eles (…) Eram olhares que, por mais que eu tentasse esquecer, me voltavam à mente”, diz a autora. “Se foi assim comigo no curto período em que estive com ele, quanta discriminação, direta ou indireta, não teriam sentido e sofrido até hoje o Jun e sua família?”
A ideia de escrever o livro veio da tentativa de encorajar outras pessoas a demonstrarem respeito e abertura para criar laços com famílias como a de Jun. O contato com obras sobre autistas é uma das formas mais poderosas de combate ao estigma. Uma pesquisa revelou que, assistir a uma série com um personagem autista gera mais empatia do que acompanhar uma palestra sobre o tema.
Relação de autistas com irmã mais nova também é abordada na série Atypical
Há diversas produções em tirinhas e HQs que retratam a realidade do autismo. Entre elas, Fala, Maria, do autor mexicano Bef. Na obra, ele conta como lidou com a profunda tristeza que sentiu após o diagnóstico da filha.
Entre os desenhos, livros, filmes e produções de TV que abordam o autismo, a série Atypical (disponível na Netflix) tem um ponto em comum com “Jun”: também retrata o relacionamento de um jovem autista com sua irmã mais nova.
Nas duas obras, as irmãs não se poupam de cobrar os irmãos a fazerem o que já demonstraram serem capazes de fazer. Ainda que os protejam de pessoas ou situações que possam prejudicá-los, demonstram parceria, e não condescendência, e aparecem como pessoas importantes e confiantes em seu desenvolvimento.
Angústia sobre o futuro do filho autista é uma constante nas famílias e também nos livros sobre autismo
Em Atypical, o personagem principal existe apenas na ficção. Sam, é um jovem com autismo de grau 1 – também conhecido como leve ou com menor necessidade de suporte. Ele trabalha, tem uma namorada, entra na universidade e sai de casa para morar sozinho com o melhor amigo.
É uma realidade diferente da de Jun, que apesar de atuar como músico, não se comunica verbalmente de forma fluente, mora com os pais e a irmã, e depende de supervisão para algumas atividades do dia a dia. Para outras, consegue se virar. Ainda que gere apreensão na família, ele consegue ir sozinho de metrô ao curso de piano, por exemplo. As dúvidas sobre sua independência e sobre seu futuro são comuns em outras famílias de autistas. Bef, em seu livro sobre a filha, também relata a preocupação.
Em uma das falas de Yun, no livro, ela diz que a mãe respondeu em uma entrevista que seu maior desejo e o do marido é “viver um dia a mais que Jun”. A resposta para a apreensão é, portanto, viver o presente. “Hoje ele está feliz”, conclui a irmã.
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