Bef: sim, há esperança para nós

15/12/2021Histórias0 Comentários

Quadrinista mexicano conta ao Autismo e Realidade o que o inspirou a escrever a HQ ‘Fala, Maria’, em que descreve o processo de conexão com a filha autista e a paternidade após o diagnóstico

“O amor tem muitas formas e, neste caso, tem a de um livro”. Assim o famoso cartunista argentino Liniers apresenta o livro “Fala, Maria”, escrito por seu também renomado colega mexicano Bernardo Fernández, o Bef.

Bef é pai de Maria, a menina que dá nome à obra. Aos 2 anos, ela já dava sinais de que seu desenvolvimento era diferente do de outras crianças. Bef e sua então esposa Rebeca começaram a notar o atraso, especialmente em relação aos filhos dos amigos e à prima dois meses mais nova.

Maria não gostava de interagir muito, costumava falar pouco e só comia pouquíssimos alimentos. Os pais estranhavam e sentiam angústia, por não saber exatamente o que poderia estar se passando com a filha. Será que ela simplesmente gostava de ficar no seu cantinho como o pai? Algo parecia não estar bem, mas não se sabia exatamente o quê.

Foi então que a palavra autismo entrou no vocabulário da família. A primeira vez, em uma reunião com a médica do berçário. Depois desta conversa, Maria começou a ser observada, passou por médicos e por alguns exames, até que o diagnóstico fosse, enfim, confirmado. Sim, Maria é autista.

Bef relata que levou anos para conseguir assimilar a experiência e, enfim, poder contá-la

Maria nasceu em 2008, já em meio a um processo de popularização do diagnóstico do autismo e diminuição do tabu sobre o transtorno e do estigma sobre autistas e seus familiares. O movimento ainda ganha corpo nos dias de hoje e espaço não só nas HQs, como as de Bef, mas em filmes, séries de TV, livros infantis, comédias de stand-up e em perfis de autistas influenciadores nas redes sociais. O ativismo e a conscientização do autismo hoje são ainda mais fortes do que na época.

A ideia de escrever o livro veio anos depois de todo o intenso e doloroso processo vivido por Bef após o diagnóstico, que incluiu sua separação de Rebeca, mãe de Maria. “Maria foi diagnosticada aos 2 anos e o livro fiz quando ela tinha 7, ou 8. Tive que deixar passar esses anos para poder assimilar a experiência e poder contá-la”, conta o escritor em entrevista a Autismo e Realidade.

Amigos cartunistas que escreveram sobre a relação com seus filhos com deficiência inspiraram o autor

O estalo para desenhar a história veio na Feira do Livro de Guadalajara, em uma palestra com dois amigos quadrinistas que também escreveram relatos autobiográficos sobre as relações com seus filhos com deficiência. Um deles é o espanhol Miguel Gallardo, ou apenas Gallardo, pai de uma menina autista também chamada Maria. Ele lançou “Maria y Yo” (Maria e Eu), em 2007. O livro, mais tarde, deu origem a um filme com o mesmo título (é possível ver o trailer aqui e o filme, sem legendas, aqui). O outro é o argentino Gustavo Rosemfett, o Gusti, autor de Mallko y Papá, em que fala sobre a relação com o filho que tem síndrome de Down.

“Era uma conferência sobre pais ilustradores e descobri que os dois haviam escrito livros sobre seus filhos com capacidades diferentes.” Foi aí que Bef começou a pensar em seu próprio livro. Após a decisão, tudo aconteceu rapidamente. A HQ sobre Maria nasceu em nove meses. Normalmente, Bef leva cerca de um ano para terminar um projeto.

Bef chegou a pensar em não publicar o livro, por se sentir vulnerável com a exposição de seus sentimentos

Em “Fala, Maria”, Bef expõe de forma muito delicada a tristeza que sentiu após a descoberta de diagnóstico da filha e a profunda solidão com que teve de lidar, sem conseguir amparar a hoje ex-mulher, Rebeca. Foram dois dias chorando no sofá à espera de um futuro nebuloso e amedrontador.

Uma das frases apresentada ainda na introdução do livro resume o sentimento de Bef. É o trecho de uma conversa do escritor tcheco Franz Kafka, autor de “Metamorfose” e outras obras de apelo sombrio, com o jornalista Max Brod, autor de sua biografia. No diálogo, Kafka diz ao amigo: “Há esperança, esperança infinita, mas não para nós”. Assim se sentia Bef, enterrado aos prantos no sofá de casa.

O luto após o diagnóstico é compartilhado por muitos pais e mães de autistas. Não à toa, levou tanto tempo para que Bef pudesse assimilar o processo e não só escrever sobre isso, mas também desenhar o que sentiu. A delicadeza das páginas é de levar às lágrimas. Ele tenta imaginar como a filha pensa, o que espera dele ou se não espera nada. Se consegue se sentir plena em sua vida solitária e como vai conseguir interagir com ela.

Houve momentos em que Bef se questionou sobre a publicação do livro, por sentir que exporia sentimentos muito íntimos. “Na metade do processo, tinha a sensação de que não teria que publicá-lo. Sentia que estava em uma posição muito vulnerável”, conta.

Bef é escritor, designer gráfico e um dos cartunistas mais reconhecidos da América Latina. Colaborou com e coordenou diversos fanzines, publicou livros infantis e juvenis, e é autor premiado de romances policiais e de ficção científica, com trabalhos traduzidos para oito idiomas. “Nunca tinha feito algo abertamente autobiográfico. Tinha feito algumas coisas, mas não algo tão profundo. Desnudar desta maneira sua alma frente ao leitor te coloca em uma posição muito vulnerável.”

As tirinhas acompanham com suas cores os humores de Bef, da tristeza profunda à esperança de construir um caminho único ao lado de Maria

As cores do livro refletem o semblante do pai ao longo do processo de aceitação da filha. São dominadas por uma tristonha combinação de cinza azulado tanto antes, como logo após o diagnóstico.

A palidez do cinza e do azul predominam durante o período em que há uma intensa busca por acompanhamento para a filha, que incluiu a passagem por um médico charlatão e indicações de religiosos supostamente capazes de curar o transtorno (é sempre bom ressaltar: autismo não é uma doença, é uma condição, uma característica inerente à pessoa e, portanto, não tem cura).

O desânimo dá a tônica da história até que a família, enfim, começa a encontrar amparo. O casal encontra um instituto de autismo e um médico que acende as cores de Bef e seu livro. Ao ouvir que haveria muito o que fazer por Maria, o pai, enfim, percebe que poderia ter esperança em um futuro feliz. Nuances vibrantes de laranja e amarelo, acompanhados de diversas gradações de azul, além de bordô e tons terrosos entram em cena. Havia um caminho único – difícil, porém único – a ser traçado ao lado de Maria. A alegria se torna possível.

O caminho é duro, mas é possível encará-lo com amor, esperança e leveza

As dificuldades na rotina continuaram, mas com ânimo e clareza de que seria possível conviver com Maria e sua maneira de viver. Sua alimentação ainda é muito limitada, a sinceridade de suas respostas é por vezes desanimadora e ela não faz questão de cumprimentar ninguém. “Sim, é um caminho duro. Mas eu jamais trocaria minha filha por ninguém”, afirma Bef no livro.

O futuro de Maria ainda gera angústias, especialmente sobre o que pode acontecer com ela após a morte dos pais – um sentimento constante entre quem tem filhos com deficiência. Dois pensamentos de Bef em sua obra resumem a questão: “Se eu me deixasse dominar por meus medos, viveria paralisado” e “Todos que a amamos pensamos pouco no futuro”.

O bom humor de Bef aparece em muitos trechos, como a forma de apresentar Maria às pessoas como uma estrela do rock – que não fala “oi” para ninguém – ou na tirinha em que expressa a vontade de socar um enfermeiro desagradável durante um exame.

A certeza de publicar o livro veio justamente da possibilidade de dividir o relato de esperança com quem ainda está, como ele esteve, sem perspectiva. ”Finalmente, quando o livro estava pronto, me pareceu que era o que queria comunicar ao resto do mundo, dar este relato, porque para mim teria sido muito útil quando passei por essa situação”, diz o autor. “Isso foi o que me animou.”

Incentivar outros pais de autistas a fazerem parte da rotina dos filhos também foi um estímulo para Bef

O livro de Bef não se propõe apenas a oferecer uma forma de apoio e uma fonte de esperança. Um dos estímulos do autor para a publicação foi mobilizar outros pais a estarem mais presentes na vida de seus filhos autistas. O protagonismo da paternidade é ainda raro nesta comunidade.

“É verdade, tristemente, que o mundo do autismo e em geral das pessoas com deficiência, é um mundo de mães, e os pais fogem frente ao diagnóstico. Eu tratei de não fazer isso e me comprometi a estar no dia a dia, na construção da vida cotidiana da minha Maria”, diz o desenhista. “É um mundo eminentemente feminino, o das mães de autistas, e não deveria ser. Se meu livro animar mais pais a se envolverem profundamente, sinto que terá valido a pena.” A leitura realmente vale a pena.

Maria tem hoje 12 anos, vive conflitos de adolescentes e não gosta muito do livro que conta sua história

Bef conta que a filha não é uma grande fã do HQ que relata sua própria história. “Maria não gosta muito de aparecer neste livro. Ela é muito consciente de que esse livro fala sobre seu autismo e, à medida que cresce, ela vai se dando conta de que o que ela tem é autismo e a torna diferente dos outros e ela não gosta disso. Eu compreendo”.

Maria prefere um outro livro do pai, com uma protagonista que também leva seu nome, e que se parece fisicamente com ela, chamado El Instante Amarillo (O Instante Amarelo). “Por algum tempo tive a percepção de que ela se incomodava com “Fala Maria” e isso me pareceu algo natural’.

A irmã mais nova de Maria, Sofía, do segundo casamento de Bef, é retratada no livro ainda como bebê, mas hoje já está maior. “A irmãzinha não é muito consciente ainda da existência do livro, tem 5 anos apenas, mas é consciente da condição de sua irmã e tem isso muito internalizado”, diz o pai.

Maria tem hoje 12 anos e, como toda adolescente, está sofrendo todas as mudanças emocionais, corporais e hormonais da fase, com a dificuldade própria da idade, porém “sem grandes dores”, segundo o pai.

Ela é uma garota bastante solitária e o contexto da pandemia foi desafiador para a família. Bef e Rebeca consideram as aulas presenciais uma oportunidade de socialização, que acabou interrompida pela necessidade de mudança para as aulas online. Maria foi se adaptando pouco a pouco à nova rotina. Ela está crescendo com um temperamento muito forte, mas bem, está contente e desenhando muito. ”Pensei em fazer um livro sobre autismo e adolescência, mas não sei se o farei”, reflete Bef.

Enquanto não chega o novo livro, ele reforça o recado do primeiro. “Minha mensagem para os leitores brasileiros de “Fala Maria” é que, ao contrário do que diz Franz Kafka, há esperança infinita e sim, essa esperança também vale para nós.”

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