Olhares infantis sobre o autismo

16/06/2022Histórias0 Comentários

Animações produzidas por autistas e irmãos de autistas emocionam ao mostrar com delicadeza nuances da rotina de quem vive no espectro

“Quando minhas emoções ficam intensas eu entro em pânico e corro para me isolar porque eu fico com vergonha, o que é perigoso”, diz Luís, um autista de 12 anos. Na animação “Emoções no Autismo”, criada por ele mesmo, Luís nos conta em detalhes a forma como lida com os próprios sentimentos. O vídeo, em pouco menos de dois minutos, nos ajuda a entender como é ser autista ao tocar em pontos básicos da vivência de quem tem o transtorno.

Um destes pontos é que, apesar do autismo ser um espectro – ou seja, se manifesta de infinitas maneiras e intensidades -, há duas características comuns a todos os autistas:

– padrões restritos e repetitivos de comportamento, como movimentos contínuos, interesses fixos que prejudicam seu convívio social;

– dificuldades persistentes de comunicação social ou interação social (como nas linguagens verbal ou não verbal e na reciprocidade socioemocional).

É justamente por causa desta segunda característica que é tão importante a possibilidade de compreender os próprios sentimentos, como faz Luís.

Entendendo as emoções é possível desenvolver a autopercepção e o domínio de suas ações. A regra vale para pessoas típicas, mas é ainda mais preciosa para os autistas. No caso de Luís, a falta de entendimento pode acabar resvalando no irmão. “Quando fico bravo, eu começo a reclamar e tento controlar a situação. Ficar bravo é para me proteger de sentir medo. Quando fico com medo, eu invento história e às vezes eu bato no meu irmão”, conta o garoto.

Compreender e expressar os próprios sentimentos podem ser grandes desafios para os autistas

A dificuldade não só de compreender, mas também de verbalizar os próprios sentimentos, influencia a construção de relações sociais – na escola ou em família , por exemplo. Em um mundo que ainda precisa evoluir muito para ser mais inclusivo, é bastante comum que autistas sofram bullying no ambiente escolar e tenham dificuldade de conviver em grupos, ainda que sintam vontade de participar. Fazer amigos pode ser um grande desafio para os autistas.

“Falar sobre meus sentimentos me ajuda a entender que minhas ações impactam os outros, e assim fica mais fácil para eu fazer amigos”, diz Luís.

Cultivar amizades e ampliar a inclusão social de uma pessoa com autismo podem acontecer a partir do desenvolvimento de suas potencialidades. Já citamos no blog histórias que exemplificam isso, como a do islandês Brynjar Karl, que construiu uma réplica de Titanic com peças de Lego.

De um garoto isolado nos corredores da escola, ele se transformou em uma pessoa conhecida em todo o mundo ao apostar em seu projeto. Contar com o apoio da família foi essencial para descobrir e incentivar seu talento na criação e na montagem do navio. Para conseguir todas as 56 mil peças necessárias, ele recebeu ajuda de pessoas de todo o mundo, que começaram a enviá-las pelo correio. Com a réplica pronta após quase um ano de trabalho, viajou pelo planeta.

A inclusão, neste caso, veio da demonstração de confiança na habilidade e do encorajamento de uma imensa comunidade que se formou ao redor dele. A partir desta experiência, seus sinais de autismo deixaram de ser um obstáculo para Brynjar e viraram seu maior trunfo.

Autistas são capazes de sentir empatia, mas podem ter dificuldades de expressá-la

Voltando à animação do nosso garoto brasileiro, um outro tema abordado por ele é a capacidade de empatia que os autistas possuem, apesar do senso comum insistir em estereótipos que pintam os autistas como pessoas frias.

“Eu aprendi que minhas emoções nunca estão erradas. Mas às vezes, meu comportamento pode magoar os outros. Eu não quero magoar ninguém, então eu quero aprender a ter compaixão”, reflete Luís. Essa impressão de que, em geral, os autistas são pessoas que não se importam com os outros vem justamente da dificuldade de comunicação e linguagem social característica do autismo.

A capacidade dos autistas sentirem e serem empáticos é abordada na série Amor no Espectro, disponível na Netflix. A produção é um reality show que retrata a jornada de autistas para encontrar uma parceria amorosa. Na primeira temporada, dois casais são apresentados em uma rotina em que o autismo pode causar situações difíceis, porém contornáveis com carinho e paciência. A terceira temporada, mais recente, foi lançada no primeiro semestre deste ano.

Um estudo já demonstrou que a exposição a produções culturais que retratam o autismo é mais efetiva para o entendimento do transtorno do que palestras específicas sobre o tema. Além disso, ajudam a romper estereótipos e o estigma que recai sobre os autistas, seus familiares, cuidadores e amigos.

Contar com suporte em situações de estresse é essencial; Luís recorre aos pais ou professores

Uma das diferenças categorizada oficialmente entre os autistas é o nível de suporte. As pessoas de nível 1 precisam de menos suporte que as pessoas de nível 2. As pessoas de nível 3 são as que mais necessitam de suporte – elas, por exemplo, podem não ter condições de cuidar da própria higiene íntima.

Luís consegue ter autonomia para as tarefas do cotidiano, e possibilidades de desenvolver habilidades de interação social. Ele também demonstra ter uma profunda autopercepção.

“Quando eu fico triste, eu vou para o meu quarto e fico tentando inventar outra versão para o que aconteceu. Quando eu tô confuso eu finjo que sei tudo. Estou aprendendo conversar com meus pais como eu estou me sentindo. Estou aprendendo que todo mundo fica bravo, com medo, confuso e triste, às vezes”.

Para compreender seus sentimentos, o criador da animação recorre a pessoas próximas que possam acalmá-lo e ampliar suas perspectivas sobre a situação. “Então eu estou aprendendo a procurar por um adulto que eu conheço bem como o meu pai, minha mãe ou um professor para dar sentido e dimensão ao que estou sentindo. Pra eles é fácil”.

Vídeo é parte do projeto De Criança para Criança, que põe alunos no centro da construção do aprendizado

O vídeo de Luís é um dos resultados do programa De Criança para Criança (DCPC). O projeto conta com metodologias próprias, entre elas, a Criando Juntos, que coloca as crianças no centro da construção do aprendizado por meio da produção de animações.

“Nós começamos a aplicação da metodologia Criando Juntos nas escolas dentro da sala de aula. Percebemos que a metodologia se encaixaria muito bem na área da saúde. Começamos a aplicá-la em um hospital com tratamento de câncer, depois na Fundação Dorina Nowil e APAE”, conta Vitor Azambuja, diretor criativo do projeto.

No canal do DCPC no Youtube, é possível conferir os vídeos, feitos por crianças típicas e atípicas. Entre eles, o de Luís. “Ele escreveu uma história falando dos seus sentimentos e atitudes. Depois desenhou e narrou a história. Foi incrível poder entender suas atitudes através dessa animação. Até porque é a linguagem que as crianças mais entendem”, conta Vitor, que criou o projeto em 2016 ao lado de Gilberto Barroso, o Giba, presidente do DCPC.

A iniciativa se tornou parte da plataforma finlandesa HundrED, que mapeia inovações em educação. “Percebe que tudo o que foi criado para o universo infantil foi criado por adultos? Cinema, teatro, livros etc. nós mudamos isso. Estamos dando voz às crianças”, diz Vitor. O DCPC tem também um curso de animação 2D.“Criamos uma nova plataforma, para que fez o curso é quiser colaborar com a gente é só se inscrever, fazer um teste e começar a colaborar”, explica o diretor.

A história de Luis chamou atenção até mesmo de uma das principais referências em educação do planeta, Andreas Schleicher, diretor de educação da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Um dos vídeos, produzido uma outra criança autista chamou a atenção de Vitor. “Uma menina com autismo severo desenhou a personagem principal com olhos vermelhos. Achei maravilhoso, pois sei que ela imaginou a personagem sofrendo na história.”

Outros vídeos mostram como irmãos de autistas lidam com frustrações e se divertem junto com eles

Entre as dezenas de vídeos já produzidos com o apoio do projeto, estão dois produzidos por crianças que são irmãs de autistas. “Viver com o Juninho é como colher girassóis: um dia de cada vez”, conta a narradora de “A Caixa”, irmã de um garoto autista. Uma vez, Juninho ganhou o presente, mas gostou mesmo da caixa e preferiu ficar dentro dela a brincar com a irmã.

 

O outro se chama “Meu Irmão Tem Autismo”, criado por um outro garoto também chamado Luís, irmão de Pedro, que tem autismo de nível 3. “Para mim, ele é normal. Para outras pessoas, pode até parecer bizarro”, conta o garoto. “Por exemplo, quando estamos de público as pessoas não entendem o Pedro, e começa a cochichar: ‘Ele tem algum problema? Nossa, o que acontece com ele? Ficou tão bravo’”.

Os olhares de estranheza direcionados aos autistas e seus familiares geram tamanho desconforto que uma quadrinista sul-coreana Keum Suk Gendry-Kim quis retratar essa realidade em seu trabalho. Em um curso de música, Keum conheceu Jun, um músico autista considerado um prodígio do pansori – tradicional gênero musical coreano. Ela conta que ficou imaginando como seria para a família lidar com isso, já que ela mesma ficou marcada pelos olhares apesar da pouca convivência.

Luís conta que conviver com seu irmão Pedro pode ser difícil, mas também inclui cenas inusitadas

Na HQ “Jun”, ela conta a história do músico a partir justamente do olhar da irmã mais nova dele, Yun-Seon. Assim como Luís diz em seu vídeo, para Yun-Seon, Jun é apenas uma pessoa normal. Luis nos conta que muitas vezes acontecem situações divertidas. Pedro, irmão dele, tem algumas estereotipias, que são comportamentos repetitivos usados como forma de lidar com a sobrecarga sensorial. Ele costuma fazer alguns barulhos com a boca, o que já gerou situações engraçadas.

“Uma vez com minha mãe, o Pedro e eu estávamos na fila de imigração. Foi bastante tempo e o Pedro resolveu fazer o efeito sonoro: ring, ring [como de um telefone]. Na seqüência, um homem veio e disse: ‘Lady, pessoas com necessidades especiais naquela fila’. E a fila era bem menor. Foi muito engraçado porque pareceu que o Pedro deu um telefonema ao agente: ring, ring.”

Luís conta também que passa por situações difíceis por conta do comportamento do irmão. Pedro precisa fazer alguns rituais e se não faz, grita muito, conta Luís. Houve uma época em que ele só dormia após apertar ininterruptamente botões imaginários na parede.

“Rituais são ruins. Porque fazem com que o Pedro pense que precisa fazer estas ações sem sentido e isso afasta ele de nós.” Luís diz que às vezes gostaria de ter outro irmão que não fizesse rituais, que não o envergonhe em público e com quem pudesse brincar junto. No entanto, ele conclui algo que podemos relacionar ao conceito de neurodiversidade.

Compreender a neurodiversidade é aceitar que cada ser humano tem uma composição neurológica e que todas elas devem ser aceitas

Registrado pela primeira vez pela socióloga australiana Judy Singer, o termo neurodiversidade abarca todas as composições neurológicas humanas. Assim como a natureza é biodiversa, formada por rosas, girafas ou microorganismo invisíveis, a humanidade é neurodiversa, formada por uma gama infinita de composições cerebrais que inclui pessoas típicas e atípicas.

A ideia de neurodiversidade pensa o autismo como mais uma característica neurológica humana, ou seja, algo que não precisa de cura, mas aceitação. Assim como diz Luís: “Mesmo o Pedro sendo algumas vezes difícil, ele também é divertido e também me ensina coisas importantes sobre a vida, como entender que cada um é de um jeito”.

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