Sarai Pahla: desafios amorosos para uma mulher autista

17/04/2023TEA no Dia a Dia2 Comentários

Médica e tradutora sul-africana conta como seu autismo influencia suas possibilidades de conexão e intimidade

“Meu maior medo é nunca ser amada por ser quem eu sou em um relacionamento romântico”. Assim se apresenta a médica e tradutora sul-africana Sarai Pahla em sua palestra no TED Münster, na Alemanha.

Falar sobre relações amorosas envolvendo autistas é ainda um tabu dentro da comunidade. Como o diagnóstico infantil e a inclusão escolar ainda são desafiadores, ganham mais espaço as conversas sobre autismo na infância do que as discussões sobre a vida adulta.

Ainda há hoje em dia quem se refira aos autistas como anjos. No entanto, a comparação com seres puros e assexuados atrapalha uma discussão significativa não só para autistas adultos, como para as descobertas da adolescência. Os autistas também têm sexualidade, desejam relacionamentos afetivos amorosos e sexuais e precisam aprender a lidar com eles. O que Sarai Pahla nos conta é um pouco de seu aprendizado em 35 anos de vida..

Expectativas sociais sobre comportamento feminino não se encaixam no jeito de ser de Sarai

Sarai não é uma pessoa que se encaixa nos padrões de beleza e não se dedica a atender ao estereótipo de feminilidade. É uma mulher obesa, que prefere não usar maquiagem, muito menos alisar seus cabelos crespos.

Para além da questão física, há outros padrões nos quais ela não se encaixa. “As pessoas esperam que eu seja boa em relacionamentos por ser mulher. Pior ainda, acham que eu deveria cuidar dos outros ou ter instintos maternos” –o que, na verdade, não é obrigação de nenhuma mulher. Mas, no caso de Sarai, a forma como seu autismo se manifesta ajuda a explicar sua maneira de ser.

“Estou aqui para lhes dizer que sou péssima em relacionamentos e em administrá-los. Considero que interagir com pessoas na vida real é ineficiente e exaustivo”, conta. “Também sou completamente não disciplinada; demoro um mês para fazer as mesmas tarefas que outros fazem em uma semana.”

Autismo de nível 1 é a nomenclatura atual para o antigo diagnóstico de síndrome de Asperger

Sarai também não gosta de fazer tarefas domésticas. Simples assim. “Isso não se torna meu trabalho por eu ser mulher. Mas enfim, não gosto de fazer essas coisas por mim, então por que deveria fazê-las pelos outros quando eu poderia jogar o último Call of Duty?”, diz a médica.

Pessoas como Sarai eram diagnosticadas com síndrome de Asperger até 2013, quando foi lançado o DSM-5 (compêndio médico de transtornos mentais), que exclui essa denominação e passou a defini-la como autismo de nível 1. É este o diagnóstico atual de Sarai.

Uma pessoa com autismo de nível 1 tem um alto grau de autonomia dentro do espectro autista. É uma pessoa capaz, por exemplo, de realizar suas tarefas de higiene íntima e se alimentar sozinha, além de ter mais chances de inserção no mundo acadêmico e no mercado de trabalho.

Há casos em que as pessoas duvidam do diagnóstico de um autista pessoa de nível 1, pois em geral, são pessoas que não correspondem ao estereótipo autista. Ouvir a não recomendada frase “você nem parece autista” é uma constante na vida destas pessoas. Autistas de nível 1 são popularmente conhecidos como autistas leves -mas lembre-se, leve não é sinônimo de fácil. Sarai nos ajuda a entender o porquê.

Sarai conta que, na verdade, seu comportamento corresponde a um estereótipo masculino de autista

Ela descreve a forma como seu autismo se manifesta e explica como isso interfere na criação de conexões de intimidade. “O principal é que eu sou ótima para aprender informações apresentadas de forma lógica como a fisiologia humana, mas sou péssima para criar sistemas no mundo real, como colocar objetos corretamente em um armário, porque não há fórmulas para isso e eu preciso de uma fórmula.”

Sarai não atende às expectativas sociais sobre feminilidade. Mas seu comportamento corresponde justamente ao oposto: o estereótipo de um homem autista.

“Para mim, não seria tão ruim, mas, enquanto mulher com autismo, o problema que vejo no resto do mundo é que, quando se fala de pessoas “nerds”, inteligentes, sem habilidades sociais, isoladas e obcecadas por jogos de computador, mas que não sabem cuidar de si mesmas, estão sempre falando de homens. Então, mesmo sendo honesta sobre isso, as pessoas simplesmente não entendem.”

Estereótipo em torno do autismo é masculino; a cada 4 meninos, só 1 menina é diagnosticada

Atualmente, para cada 4 meninos, apenas 1 menina é diagnosticada com autismo, segundo dados do CDC, agência norte-americana de saúde. Todo o imaginário construído sobre o que é ser autista está ligado ao universo masculino.

O primeiro personagem autista que se tornou popular em todo o mundo foi Raymond Babbit, do filme Rain Man. Atualmente, há novas personagens autistas femininas, mas sem a mesma explosão de popularidade, como Matilda de “Everything ‘s Gonna Be Okay”, Violet de “As We See It” e Woo Young-woo, de “A Advogada Extraordinária”.

Filmes, livros, séries de TV e desenhos animados influenciam na inclusão social de pessoas com autismo. Muito mais do que uma explicação racional – uma palestra sobre o tema, por exemplo. Por isso, a representatividade é importante. Como Sarai não corresponde ao que se espera de uma mulher autista, outras pessoas estão despreparadas para lidar com alguém como ela.

Demanda por um companheiro amoroso surgiu na adolescência de Sarai, aos 12 anos

Existem vivências que parecem espontâneas para pessoas típicas, mas não é o caso para as pessoas atípicas. Cada autista tem sua maneira específica de ser, mas todos têm em comum duas características básicas.

Uma delas são padrões restritos e repetitivos de comportamento. Outra é justamente a dificuldade de estabelecer comunicação e interações socioemocionais –o que pode influenciar, e muito, as relações amorosas e sexuais.

Sarai conta que aos 12 anos percebeu “que as pessoas formam uma forma primitiva de ligação; de algum modo, por causa de uma série mágica de eventos, um garoto e uma garota chegavam à escola e anunciavam que agora eram ‘namorado’ e ‘namorada’, trocavam cartas, eram vistos juntos no intervalo das aulas e parecia um acordo muito bom”. Logo, Sarai concluiu que também queria ser uma namorada de alguém,

Sarai tentou escolher seu 1º namorado com argumentos racionais e um relatório

Ela então, agiu à sua maneira. Catalogou os garotos da classe e escolheu o mais adequado. “Eu o observei em ambientes formais e informais, anotando minhas observações. Após algumas semanas, eu as revisava e fazia um relatório, que eu entregava ao indivíduo com a conclusão óbvia de que, com base nas minhas excelentes observações, formaríamos uma ótima “parceria de namorado e namorada”. Não funcionou.

“Sinceramente, não conseguia entender por que essa abordagem racional sempre falhava”, diz Sarai.

Outras questões também tinham influência nesta busca. Aos 12 anos, ela era uma garota negra que vivia na África do Sul na metade dos anos 90, logo após o fim do apartheid – um regime em que o racismo era oficial e negros e brancos deveriam ocupar lugares definidos por lei. Além disso, ela falava inglês, a língua dos colonizadores britânicos brancos.

Na África do Sul, a questão racial se sobrepunha ao autismo; na Alemanha, sem tanta tensão, Sarai passou a se compreender melhor

“Os sul-africanos negros me chamavam de nomes horríveis, como ‘coco’, que significa que alguém é marrom por fora e branco por dentro, ou diziam que eu era ‘muito masculina’ ou ‘muito inteligente’. Do outro lado, havia os brancos, que achavam que me namorar seria ‘imoral’, ‘nojento’ ou ‘constrangedor’. E também havia todas as pessoas entre os dois extremos que diziam: ‘Deixe-nos fora disso, por favor; não queremos nos envolver’.

Mais tarde, ela se mudou para a Alemanha, um país mais liberal, onde sentiu menos influência de sua raça e sua origem nas relações. “Mas as dificuldades relacionadas ao autismo persistiam. Por cerca de 20 anos, tentei várias coisas diferentes para tentar conquistar o ‘status de namorada’”, diz.

Ela conta que chegou a aprender programação na esperança de que o garoto que ela gostava pudesse admirar os códigos que ela era capaz de fazer. Também não funcionou.

Sarai aprendeu a verbalizar suas necessidades, mas elas ainda eram entendidas como empecilho para uma relação

Com o passar do tempo, Sarai passou a entender algumas de suas características. Passou a entender que detestava o contato pelo olhar, algo bastante comum entre autistas, e muito necessário para criar cumplicidade entre duas pessoas típicas.

“No fim, eu acabava pensando: ‘Ah, ele não gosta de mim, não é justo”. E eu comia para aliviar a frustração. Em dado momento, minha comida favorita era uma torta de maçã inteira com chantili”, diz.

Aos poucos, ela foi compreendendo que precisaria verbalizar suas necessidades e limitações, o que não é até hoje bem compreendido por pessoas típicas. “Se eu quiser construir intimidade emocional com as pessoas e quiser que me conheçam por inteiro, tenho que ser honesta, o que significa dizer coisas como: ‘Acho estímulos físicos desagradáveis’ ou ‘Não posso ir a um restaurante porque aquele barulho dos talheres faz com que sinta como se meus ouvidos estivessem sangrando’”.

Sarai diz que é constrangedor não conseguir se comportar de modo que parece tão natural para pessoas típicas

“Sendo uma mulher com autismo, em vez de aprender que namorar é divertido, empolgante e leva a relacionamentos duradouros, aprendi que leva à rejeição, coerção, discussões, abusos, tristeza e, no fim, as outras pessoas fizeram com que me sentisse indigna de amor só por ser ‘muito diferente’”, conta a médica. Apesar das frustrações, Sarai sempre quis encontrar essa conexão.

Ela conta que não é a única mulher com essas dificuldades, mas uma das poucas que consegue falar sobre isso. “Porque é constrangedor ser tão ruim em algo que todos ao seu redor consideram completamente natural”, diz.

A médica dá algumas dicas para quem está ou pretende se relacionar com uma pessoa autista.

1- Leia sobre autismo. “Isso evita muitos problemas. Você reagirá com compreensão e empatia, em vez de rejeição e escárnio.”

Pensar em encontros onde o autista se sinta à vontade é essencial para criar conexão

2- Pense em um encontro silencioso. Nenhuma regra vale para todos os autistas, mas no caso de Sarai – e você talvez deva perguntar para a pessoa autista que você conhece – um encontro silencioso seria muito valioso. Os estímulos sensoriais podem sobrecarregar o autista.

“Eu adoraria conhecer alguém que fosse a um encontro silencioso comigo”, diz Sarai. “Isso significa que conversaríamos usando aparelhos eletrônicos, mas sentados lado a lado, então ainda teríamos uma conexão na vida real. Para alguém com autismo, lidar com conversas é uma das coisas que mais nos sobrecarregam. Porque, quando estou conversando, observo a linguagem corporal da outra pessoa, que eu nem entendo muito bem. Expressões faciais… é tudo confuso.”

No caso de Sarai,um encontro em local público exige se concentrar no som que a voz da pessoa emite enquanto inúmeros sons ao redor a incomodam. “Tento ouvir o que ela diz enquanto tento bloquear todos os sons, o barulho, os talheres, tudo ao redor.”

Além disso, ela tenta ler os lábios da pessoa, para ter certeza que a entendeu bem. E também precisa fazer uma expressão facial adequada e evitar falar qualquer coisa que possa ofender a outra pessoa. É um desgaste intenso. “Então seria bom se as pessoas aceitassem esse meio-termo.”

Autistas têm dificuldades para compreender linguagem não verbal

3- Priorizar a comunicação verbal. Entender o significado de uma piscadinha ou um aceno de cabeça não é algo intuitivo para muitos autistas.

“Nós praticamente nem notamos isso, se é que entendemos o que estão fazendo.Idealmente, vocês deveriam dizer: “Estou me divertindo com você e gostaria de abraçá-la agora”, para que possamos processar logicamente a informação e nos prepararmos para o estímulo que virá em vez de pensarmos: “Eca! Toques! Que nojo!”.

4- Considere que uma mulher autista já passou por péssimas experiências no processo de namorar. Sarai por muito tempo não entendia o que era ser paquerada e ficava nervosa ao ser abordada. “Por outro lado, agora que estou mais velha e tenho mais experiência, temo sempre que alguém demonstra interesse por mim, porque as pessoas esperam que eu tenha uma larga experiência em namoro que eu simplesmente não tenho.”

Sarai aponta ainda o que vale a pena em namorar uma mulher autista. “Eu definitivamente estimo as pessoas por quem me apaixono com admiração e encanto quase infantis. (…) Sou leal, sou apaixonada e sou intensa. Sou uma mulher autista e recompenso a compreensão, a comunicação direta e a tolerância com amor incondicional.”

Leia mais em Relacionamentos amorosos entre pessoas com TEA

Escrito por Clarice Sá, Teia.Work

 

2 Comentários

  1. Olá, eu me relaciono com uma mulher autista nível 1.
    Muitas características apontadas por você se encaixa no comportamento dela.
    A dificuldade é que ela só foi diagnosticada ano passado, depois de três anos que Est amos juntas.
    Há diferença de pessoas neurotipicas, mas há muitas singularidades que eu me sinto privilegiada.

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  2. Amei esse relato

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