Uma das principais vozes do autismo na França, filósofo conta que ter autismo pode ser muito mais vantajoso do que se pensa

O despreparo para lidar com pessoas autistas é um problema maior do que as possíveis complicações que o transtorno em si pode provocar na vida de uma pessoa. O autismo pode, inclusive, ser algo muito proveitoso, como defende de forma bem-humorada o escritor, filósofo, tradutor e professor Josef Schovanec, uma das principais vozes da conscientização do autismo na França.

Em sua palestra no TEDxBratislava, na Eslováquia, ele aponta, por exemplo, que pessoas não autistas são bastante apegadas à ideia de reputação. Foi o que ele percebeu em seus primeiros anos na escola, quando nenhum de seus colegas gostava de sentar ao seu lado. “Eles não queriam arruinar sua reputação. A reputação é muito importante para pessoas não autistas.”

No entanto, as coisas começaram a mudar à medida que ele foi crescendo. Por volta dos 16 anos, estar perto dele passou a ser algo valioso, especialmente nos dias anteriores às provas de matemática. 

Pais de Josef contrariaram recomendações médica para que ele fosse internado por questões mentais ainda criança

O bom desempenho escolar contradisse o prognóstico de especialistas que avaliaram o desenvolvimento de Josef ainda na primeira infância. A recomendação dada aos pais dele foi de interná-lo em uma instituição psiquiátrica. Segundo o filósofo, seus pais, no entanto, se negaram a fazer. Eles cresceram sob a rigidez do sistema educacional do regime soviético e tinham medo do que poderia acontecer em uma instituição de saúde mental. 

Ativista em defesa do autismo, ele concluiu dois doutorados, um em filosofia e outro em ciências sociais, ambos pela École des Hautes Études en Sciences Sociales. Sua autobiografia, que também tem um tom bem humorado, foi publicada em 2012 e traduzida em 2014 para o português com o título Sou Autista. 

“Eu consegui aprender algumas coisas, mas há muitas outras que eu não consigo fazer, como dar nós em uma gravata ou amarrar os sapatos”, afirma. É comum que pessoas com autismo tenham dificuldades motoras. A dificuldade de autistas com os laços dos sapatos é tão frequente que virou tema de filme. A animação francesa Os Sapatos de Louis conta a história de um menino que usava sapatos sem cadarços – assim como Josef, que deu sua palestra calçando mocassim. “Você pode ter um doutorado em geometria tridimensional mas não conseguir amarrar os sapatos”, diz o escritor. 

Perder tempo com a opinião alheia, para Josef, é algo que caracteriza as pessoas não autistas

Apesar dos percalços que o autismo pode trazer, o escritor enxerga o transtorno mais como uma qualidade do que como uma deficiência. “Para alguns pais ou futuros pais, o pior que pode acontecer é ter um filho com deficiência. Todos os pais ou quase todos querem uma criança saudável. Mas parece que as crianças classificadas como normais são as que mais têm problemas. Sinto muito por elas”, diz,

Josef dá o exemplo da personagem de um romance que leu porque ganhou de presente da própria autora. Foi um ato de consideração já que ele normalmente não lê ficção. “Por que vou ler um livro sobre algo que não é verdade?”. 

Após a leitura, Josef diz que se sentiu confuso: “A mulher do livro tem um problema novo a cada página.” Em um dos capítulos, a protagonista vai a uma festa. “Aliás, eu gostaria de entender por que pessoas não autistas vão a festas”, ironiza Josef. 

No evento, a mulher diz algo para um outro personagem e passa o capítulo inteiro pensando o que o outro achou do que ela disse. Em outro momento, a mulher  veste uma camisa pólo e fica tentando adivinhar o que os outros poderiam pensar disso. “Eu poderia dar um conselho para essa mulher: ‘Querida escritora, para ter uma vida melhor e mais calma eu recomendo que você seja autista. Isso definitivamente te ajudaria.”

 Chamar alguém de autista com objetivo de ofender é um comportamento capacitista ainda muito frequente

A busca por uma suposta normalidade, comum entre pessoas não autistas, também é algo das ironias de Josef. Ele conta que uma vez conversou com uma psicóloga que estava muito preocupada. A razão é que ela só considerava dois amigos como normais. O professor diz que deu a seguinte resposta: “Então acho que esses dois acho que esses dois você não conhece muito bem”.

A rejeição ao que está longe do ideal de normalidade leva as pessoas a usarem condições como o autismo como adjetivos para dminuírem as pessoas. Essa é uma forma de capacitismo bastante comum. O professor, no entanto, faz graça para mostrar que esse tipo de atitude não faz o menor sentido. “Na França, os políticos ainda chamam uns aos outros de autistas como se fosse uma ofensa. Eu não sei o que aconteceria se alguém me confundesse com um político. Além disso, eu acho muito ofensivo me considerar um político”.

Uma outra diferença de Josef é sua forma de falar. Desde criança ele enfrenta dificuldades. Só aos 6 anos começou a emitir os primeiros sons que os pais conseguiam identificar. “Só mais tarde meu dialeto autista foi compreendido por outros também”, conta. 

 

Não subestime um autista; talvez seja você quem não saiba falar a linguagem que ele consegue entender

Ele diz que na Eslováquia, seu jeito é identificado como o de alguém que fala tcheco. Na República Tcheca, ele é compreendido como alguém da França. Na França, pensam que ele é suíço. Mas o pior, diz ele, é na Bélgica. Lá, um político com problemas de alcoolismo fala de forma muito parecida com a dele. Ou seja, pensam que ele bebe muito. 

Ironicamente, no entanto, Josef conseguiu trabalhar por mais de um ano em uma rádio. “Como uma pessoa que tem problemas de fala, que aprendeu a falar tarde, que tem um sotaque que ninguém consegue saber de onde é, o único trabalho que ela tem é em uma rádio, por mais de um ano?”. Não se deve, portanto, subestimar ninguém.

“As crianças autistas têm talvez as mesmas habilidades das não autistas e, em algumas áreas, são mais inteligentes”, diz Josef. “Imagina que você é um professor e tem um aluno japonês na sua classe, mas você fala com ele em eslovaco e ele não entende nada. Isso significa que ele é burro? Não, apenas que ele pensa de outra forma. Se você explicar a matéria do jeito dele, ele vai entender tudo. Talvez ele entenda mais do que as crianças supostamente normais. 

 

Nos EUA, um outro professor tem uma história muito parecida com a de Josef

A trajetória e a forma de pensar de  Josef são muito parecidas com a do professor norte-americano Stephen Shore

Na infância, ainda nos anos 1970, os pais de Stephen ouviram dos médicos que deveriam abandoná-lo em uma instituição psiquiátrica e ter outro filho. A criança seria incapaz de aprender as coisas mais simples, disseram. Hoje, ele é professor universitário e uma voz ativa na conscientização do autismo. 

Em 2008, conta Josef, Stephen visitou Paris. “Eu estava muito nervoso e tinha poucas habilidades sociais. No final da palestra dele, alguém perguntou de maneira muito indiscreta: “Você é casado. Por que você não tem filhos?”. Ele respondeu, com seu senso de humor único, da melhor maneira que poderia: “Minha mulher e eu decidimos que não vamos ser pais porque há um certo risco de que nosso futuro filho não seja autista.”

 

Escrito por Clarisse Sá, Teia.Work