Judy Singer e a neurodiversidade

25/06/2020Histórias0 Comentários

Socióloga usou o termo pela 1ª vez em registro oficial, marcando a história do pensamento sobre autismo

Neurodiversidade é uma palavra recente. A primeira vez que apareceu em um registro oficial foi há pouco mais de duas décadas, em 1998, em um capítulo escrito pela socióloga australiana Judy Singer para um livro publicado pela UK Open University Press. O trabalho se baseou em sua tese pioneira apresentada pouco antes, na University of Technology Sydney.

Neurodiversidade significa a enorme gama de composições neurológicas que abrange todos os seres humanos. A palavra se refere a diferentes formas de existir a partir da formação cerebral e neurológica. “Nós somos todos habitantes neurodiversos do planeta, porque não há duas mentes neste mundo que possam ser exatamente iguais”, afirma a pesquisadora.

Criação do termo tem como base a ideia desenvolvida por Lorna Wing, de que o autismo é um espectro

Na época em que Singer realizou sua pesquisa, a discussão que encarava o autismo como um espectro ganhava cada vez mais força. Ainda em 1979, a psiquiatra britânica Lorna Wing, mãe de uma criança com autismo severo, já havia feito uma pesquisa que apontava uma taxa de prevalência de uma a duas pessoas a cada mil, indicando, portanto, que o transtorno era mais comum do que se pensava.

Em seguida, em 1981, publicou um artigo que revolucionou a forma de enxergar o autismo ao desenvolver o conceito de espectro, capaz de afetar cada pessoa em diferentes graus. No mesmo texto, apresentou a definição da síndrome de Asperger, um grau mais leve do autismo, que afeta de forma menos grave a comunicação e a sociabilidade das pessoas. As ideias de Wing influenciaram pesquisadores em todo o planeta.

Filme ganhador do Oscar “Rain Man” também contribuiu para popularizar o debate sobre autismo

Havia também uma maior visibilidade sobre a questão do transtorno por influência do sucesso estrondoso do filme norte-americano “Rain Man”, lançado em 1988, e que levou o Oscar de melhor filme, melhor roteiro original e melhor diretor.

Além disso, Dustin Hoffman ainda ganhou o prêmio de melhor ator pela interpretação do protagonista, Raymond Babbitt, um autista com síndrome de Savant. Quem contracenava com ele era Tom Cruise, já consolidado como grande galã da época, logo após o sucesso de Top Gun, um clássico dos anos 1980.

Trinta anos depois, personagem ainda é referência como autista, mas a realidade é muito mais diversa

A obra ajudou a popularizar o autismo a partir do sucesso do personagem. No entanto, apenas uma em cada dez pessoas com autismo também tem síndrome de Savant (palavra que quer dizer sábio, em francês).

Uma das críticas feitas ao filme atualmente é que boa parte do público, até hoje, relaciona o autismo às características de Raymond Babbitt que, por ter a síndrome, alia um brilhantismo intelectual a uma profunda dificuldade de interação social.

A variedade das pessoas com autismo, porém, é tão grande quanto o próprio número de autistas. Hoje, o que se sabe é que cada autista é único, ocupa um lugar diferente do espectro e, à sua maneira, compõe o panorama da neurodiversidade definida por Singer.

Pesquisadora faz um paralelo com o conceito de biodiversidade para deixar o conceito ainda mais claro

Um aspecto interessante do conceito é que a neurodiversidade leva em conta todos os tipos de mentes. Vale tanto para aquelas consideradas neurotípicas, onde se encaixam os que não possuem transtornos ou deficiências mentais, quanto para as neuroatípicas ou neurodivergentes, como as pessoas com autismo, dislexia e outros transtornos. Portanto, não só os autistas são únicos, como cada ser humano, em sua composição cerebral, também o é.

Para explicar melhor sua ideia, a pesquisadora faz um paralelo com a natureza e o conceito de biodiversidade. A biodiversidade abrange todos os animais, plantas e microorganismos que habitam o planeta.

Ninguém diz, por exemplo, que a onça é um mamífero e que o mosquito é biodiverso. Todos fazem parte da biodiversidade, assim como todos os humanos e formações neurológicas humanas compõem a neurodiversidade.

Neurodiversidade abrange todas as pessoas, tanto as neurotípicas como as consideradas fora do padrão

“Se neurodiverso se tornar um sinônimo de pessoa com deficiência”, alerta Singer, “em vez simbolizar a incrível maravilha da variação natural, vai rapidamente se tornar um estigma, ser desvalorizado e perder o poder como um símbolo de união”. Isso porque, mais de duas décadas após o termo ser cunhado, ainda há quem se confunda.

Singer gosta de dar especial atenção ao significado preciso de cada palavra. Em uma publicação em seu blog em março deste ano, ela critica por exemplo, a forma como um dicionário explica a neurodiversidade.

O tópico é escrito de forma a associar o que é neurodiverso apenas às pessoas atípicas, como se as pessoas neurotípicas não fizessem parte também da neurodiversidade. Por isso é essencial frisar que o conceito é capaz de abarcar a todos, típicos ou não. Não há como estabelecer um padrão, porque na verdade, somos todos diversos. Essa ideia, presente na tese original de Singer, estabeleceu um novo paradigma para o movimento pelos direitos das pessoas com deficiência.

Diferenças neurológicas, na visão de Singer, tratam-se de características que não são passíveis de cura

Na visão de Singer, diferenças neurológicas precisam ser reconhecidas e respeitadas assim como outras categorias sociais de diferença, como etnia, classe socioeconômica, orientação sexual e gênero. A proposta é considerar o autismo e outras desordens mentais como uma característica das pessoas, algo que faz parte delas e lhes confere identidade e, portanto, não é passível de cura.

Outra ideia importante por trás do termo é a de que não existe um padrão de normalidade. Considerando que a diversidade caracteriza a composição de cada cérebro humano, não há como estabelecer este padrão. Da mesma forma como não é possível estabelecer uma hierarquia de normalidade entre os diferentes tipos de flores ou bactérias.

Ao longo das pesquisas, Singer compreendeu melhor o comportamento da mãe, da filha e até o dela mesma

A trajetória pessoal de Judy Singer também ajuda a entender como ela acabou desenvolvendo o termo. Sua tese de 1998 deu origem ao livro “NeuroDiversity: The Birth of an Idea” (em tradução livre, Neurodiversidade, o nascimento de uma ideia), publicado em 2016.

O trabalho é dedicado à mãe da pesquisadora, Agnes Polgar-Gyarmati, que faleceu no mesmo ano do lançamento. Singer conta que só conseguiu entendê-la na última década de sua vida. Logo na abertura da obra, a pesquisadora revela que sentia um profundo incômodo com o comportamento da mãe. “Por que ela não pode agir normalmente uma vez na vida?”, pensava.

Só quando Agnes chegou aos 60 anos, Singer começou a entender que a mãe nunca havia escolhido adotar seu comportamento habitual, mas que lutava contra um problema hereditário que afetava as mulheres da família.

Ao descobrir que a filha poderia ter autismo, Singer percebeu que sua qualidade como mãe seria julgada

A clareza de Singer sobre sua mãe veio após o nascimento de sua filha que, antes mesmo de completar 1 ano, não se desenvolvia da mesma forma que as crianças da mesma idade.

“Enquanto eu procurava por respostas em livros psiquiátricos de uma biblioteca pública, meu sangue gelou ao ler a descrição de uma temida condição, autismo. Percebi que finalmente tinha encontrado o caminho”, revela a pesquisadora. “Rapidamente percebi que, se mencionasse autismo a amigos e profissionais, corria o risco de ser tachada como uma mãe neurótica, então guardei a hipótese pra mim mesma e continuei buscando por perguntas e respostas.”

A preocupação referente à sua qualidade como mãe decorre de pesquisas que atribuíram o comportamento de pessoas com autismo ao agir de pais emocionalmente distantes. A hipótese da “mãe geladeira” chegou a ser considerada pelo psiquiatra Leo Kanner nos anos 1950, conferindo a elas a responsabilidade pelo comportamento das crianças. Daí a importância dos estudos de Wing. Ela apontou que havia mães de autistas que também tinham filhos sem autismo. A condição, portanto, não poderia ser um simples reflexo da personalidade materna.

Criação da palavra deu novo sentido à trajetória de exclusão que marcou a história da família de Singer

Outra grande mudança provocada por Wing, a definição da síndrome de Asperger, também fez toda a diferença para Singer. Na busca para entender sua mãe e sua filha, o que acabou por descobrir foi que ela mesma também tinha traços de Asperger. Pouco depois, foi oficialmente diagnosticada com grau leve da síndrome.

Por isso, diz Singer, “esta palavra ‘Neurodiversidade’ não surgiu do nada, mas foi o ápice da minha pesquisa acadêmica e de toda uma trajetória de experiências pessoais de exclusão e de invalidação enquanto uma pessoa que lidava com uma família afetada por uma ‘deficiência desconhecida’ que nem nós, nem a sociedade sabíamos do que se tratava”.

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