Renata Simões: diagnóstico, autoconsciência e liberdade
Comunicadora conta que se descobrir no espectro trouxe alívio e maior entendimento sobre si mesma
De dois em dois anos, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos publica uma pesquisa sobre diagnóstico de autismo. A cada estudo, os números aumentam. Os dados referem-se a pessoas diagnosticadas com autismo até os 8 anos em 11 estados norte-americanos e são usados como referência em todo o mundo.
Em 2004, o estudo mostrou que os autistas representavam uma a cada 166 pessoas. Os dados mais recentes, de março de 2020, apontam que o número avançou para uma a cada 54. Uma das razões para o aumento é a ampliação do acesso ao diagnóstico. O que indica que, anteriormente, menos pessoas o conseguiam, ou seja, um número significativo de pessoas cresceram sem saber da condição. Pessoas que só se descobrem autistas na idade adulta.
“Ninguém nunca me explicou porque eu era tão ruim de paquerar”, conta de forma bem-humorada a jornalista Renata Simões, de 43 anos. Renata tem autismo altamente funcional, o que lhe permitiu desenvolver uma carreira justamente em uma área com a qual os autistas costumam ter profunda dificuldade de lidar, a comunicação. Formada em jornalismo, atua como diretora, produtora, editora, roteirista e ainda como apresentadora e repórter, com trabalhos em canais de abrangência nacional, como TV Cultura e Rede Globo.
Diagnóstico de autismo significou uma maior consciência sobre quem é e que escolhas fazer
Apesar da inserção no mercado de trabalho em condições de alta competitividade e da espontaneidade, vivacidade e fluência de sua fala, existem outras características suas que o diagnóstico ajudou a compreender. “Foi um alívio e uma explicação de algumas coisas que eu percebia que eram mais difíceis pra mim do que era para as pessoas”, diz.
“Uma vez, estava fazendo reportagem sobre paquera e uma menina falou assim: ‘você vai e fixa o olhar’. Eu não consigo. Realmente me incomoda essa coisa de fixar o olhar. Nossa, eu quero morrer do coração! Então você começa a perceber pequenos padrões de comportamento na sua vida”. Esses padrões vão muito além do flerte e influenciam inúmeras situações cotidianas, como não ver sentido em comentários entendidos como engraçados, por exemplo, ou demorar dias para escrever um e-mail porque a mente está agitada demais para se concentrar.
O sentimento de alívio é frequentemente mencionado por pessoas que se descobrem autistas quando adultas, além de autoentendimento, a sensação de fazer sentido ser quem se é. “Na primeira semana, você se identifica com mais padrões, você conhece aquela tranquilidade de ‘é isso, eu não era muito louca de me achar diferente, não era uma invenção da minha cabeça’”, revela Renata. “A partir daí, começa uma viagem muito boa, você começa a entender o que você pode fazer sobre si mesmo, pra ter mais controle e inclusive entender também o que não funciona pra você.”
No caso de Renata, lidar com o diagnóstico a ajudou a cuidar melhor de si e de suas relações com os outros. “O mais importante é a apropriação do que você é. (…) Talvez eu jamais vá ser boa de paquera na vida. Talvez eu seja sensível demais pra lidar com determinadas situações e estar com determinadas pessoas, então eu tenho que me preparar melhor para isso. Não acho que a palavra é limitação. É tudo sobre autoconsciência. A partir do momento que você tem consciência, você está muito mais livre. ‘Vou fazer isso porque se fizer aquilo, depois vou entrar numa ressaca emocional’”.
Apoio e orientação da analista foram determinantes para buscar e compreender o diagnóstico
A conversa sobre a possibilidade de estar no espectro surgiu na análise, que Renata faz desde que tinha 10 anos – o processo começou logo depois que sua mãe morreu. O apoio da analista foi determinante. Renata conta que sempre notou que tinha uma percepção diferente da maioria das pessoas. “Tinha uma compreensão do mundo e um humor muito comum a diversas pessoas que pra mim não fazia o menor sentido”, explica.
Como alguém altamente funcional, era possível disfarçar e driblar algumas situações que, nos casos de autismo mais severos, são mais difíceis de serem contornadas. No entanto, após o término de uma relação, quando tinha já 37 anos, essa diferença passou a ganhar um outro peso, por conta da nova perspectiva. A partir de um questionamento da própria Renata sobre a possibilidade de ter o transtorno, a analista recomendou que ela procurasse um psiquiatra e um neurologista.
Renata já tinha uma trajetória de lidar com crises de ansiedade e Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), condições que com frequência se manifestam de forma associada ao autismo. “Já sei lidar com meus gatilhos, minhas ansiedades e isso faz com que várias coisas fiquem muito mais fáceis, principalmente no lidar com o outro, que é um desafio pra gente.”
“Autoconhecimento é a grande ferramenta para a liberdade”, afirma Renata
O quadro prévio também contribuiu para que a perspectiva de estar no espectro demorasse a se consolidar. “Ainda que tenha sofrido muitas questões que, se eu tivesse essa rede de apoio mais nova, teriam sido mais fáceis, não abro mão do meu processo, dessa história, porque acho que talvez o mais importante para o espectro autista é o autoconhecimento. No fundo, é você entender o que é seu e o que é do outro, porque essa barreira é mais difícil de estabelecer no primeiro momento”, reflete Renata.
“Autoconhecimento é a grande ferramenta para a liberdade. Porque na hora em que você entende o que é seu e o que você opera, [você diz] ‘não, isso aqui não é meu, é algo que você quer jogar em cima de mim’ (…) O que é meu, da minha personalidade, o que é meu diagnóstico e o que é das outras pessoas? A hora em que você descobre isso, fica muito mais fácil a sua existência”, complementa.
Ainda faltam dados oficiais sobre o diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista entre pessoas adultas
Atualmente, estima-se que há 70 milhões de pessoas autistas no mundo, dois milhões delas no Brasil. No entanto, o dado não é preciso, tampouco, detalhado. A faixa etária dessas pessoas, ou a idade em que foram diagnosticadas não é conhecida.
Há quem passe toda uma vida sem descobrir seu diagnóstico. Trata-se comumente de casos de autismo em grau leve, como o de Renata, que permite adaptação às demandas de convívio social, ainda que com dificuldade. Outras acabam sabendo por pesquisas próprias para, só em seguida, terem a confirmação de um profissional.
Humorista que também teve diagnóstico tardio define autista como “único sóbrio em quarto de bêbados”
É o caso, por exemplo, da socióloga australiana Judy Singer. Ela sempre se sentiu incomodada com o comportamento da mãe e, em 1998, escreveu um artigo pioneiro intitulado “Por que você não pode ser normal uma vez na vida?” em que propõe o conceito de neurodiversidade justamente como forma de acolher essa diferença. Singer conta que, após o nascimento de sua filha e a percepção de que a criança não se desenvolvia como as outras, começou a pesquisar e descobriu o que era autismo. A descoberta permitiu à pesquisadora compreender melhor não só as características da filha, como também as da mãe e, o mais surpreendente, a si mesma. Pouco depois, a própria pesquisadora foi oficialmente diagnosticada com autismo leve.
Recentemente, a humorista australiana Hannah Gadsby, de 42 anos, contou ao público em um show disponível na Netflix que havia sido diagnosticada com autismo aos 38. Hannah é humorista de stand-up comedy e, de forma irônica, conta que a expressão autismo de alta funcionalidade dá a impressão de que ela funciona bem, embora, diz, não seja o caso. Ela compara um autista de alta funcionalidade à única pessoa sóbria em um quarto cheio de bêbados – ou o contrário. Alguém que, embora ocupe o mesmo espaço dos neurotípicos, tem uma percepção completamente diferente da vivência compartilhada.
Síndrome de Asperger não é mais um diagnóstico oficial, mas ainda identifica socialmente as pessoas
É comum que as pessoas com autismo altamente funcional sejam chamadas e se refiram a si mesmas como “Aspies”. A palavra vem de síndrome de Asperger, nome atribuído pela pesquisadora Lorna Wing na década de 1980 aos casos de autismo leve. Wing foi uma das primeiras estudiosas a propor que se enxergasse o autismo como um espectro, um transtorno capaz de afetar as pessoas em intensidades diferentes, que abrange desde um grau mais severo até graus mais leves – como nos mostram os casos de Renata, Hannah e Singer. O nome da síndrome faz referência ao psiquiatra austríaco Hans Asperger, o primeiro a identificar casos leves do transtorno, ainda na década de 1940. Em seu trabalho, Wing resgata estudos dele para definir a síndrome, daí a homenagem.
Atualmente, no entanto, a síndrome de Asperger não é mais listada oficialmente como um diagnóstico médico. O termo deixou de fazer parte do Manual de Diagnóstico e Estatística da American Psychiatric Association (DSM) em 2013, quando todas as subcategorias do autismo passaram a ser consideradas como um único diagnóstico: Transtorno do Espectro Autista (TEA). O termo, porém, ainda é utilizado como uma forma desse grupo de pessoas se identificarem. Renata e um amigo, também com autismo leve, se divertem com o apelido de “Aspargos”.
Estereótipos dificultam aceitação do autismo entre pessoas diagnosticadas e aqueles com quem convivem
Hannah conta em seu show que associava autismo a “esses meninos que gostam de matemática” e sentiu estranhamento ao ser diagnosticada por não se identificar com essa imagem, comumente associada aos “Aspies”. Renata, por sua vez, lida com um outro tipo de estranhamento que não vem dela, mas dos outros. Até hoje, sente certa dificuldade de alguns amigos, que insistem em negar que ela esteja no espectro. O estereótipo que associam ao transtorno é outro, mais próximo ao de um primo de Renata, que tem síndrome de Down associada a um quadro de autismo severo, não-verbal.
“As pessoas não sabem o que é o espectro e que existem muitas camadas, muitas possibilidades de existência dentro dele. Por isso faço questão de pontuar.” Falar do espectro, mesmo em esferas íntimas, pode gerar divergências justamente porque Renata não se enquadra neste padrão. “Com algumas pessoas faz sentido dividir [o diagnóstico] e, com outras, não. Porque tem gente com quem você divide e a pessoa tem a pachorra de falar ‘não, você não é’. Aí você entende que as pessoas têm seus pré-julgamentos do que é ou não é e você não vai ficar debatendo sobre o que você é ou não é com alguém. Esse diagnóstico não é para o outro, ele é pra você.”
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