Neurônios-espelho e sua relação com o autismo

28/08/2020Diagnóstico0 Comentários

Responsáveis pelos processos de imitação e pela percepção das intenções podem ajudar a compreender melhor o comportamento de pessoas com TEA

Desde bebês, somos capazes de imitar as expressões faciais, caretas ou bocejos de nossos pais. Esse processo de imitação permite ao bebê, à medida que cresce, aprender a realizar uma série de comportamentos e movimentos que lhe permitirão, por exemplo, começar a falar e a interagir com outras pessoas.

O debate sobre mimetizar (ou imitar) um ao outro ocorre há séculos, em várias áreas do conhecimento. Um dos registros sobre a discussão é do século 18: o livro “Teoria dos Sentimentos Morais”, escrito por Adam Smith em 1759.

Para Smith, a percepção que temos do outro não está restrita à simples observação. Resulta, na verdade, de uma compreensão da ação incorporada por nós mesmos. “Quando vemos um raio de trovão prestes a atingir a perna ou braço de outra pessoa, naturalmente encolhemos e recuamos nossa perna ou nosso braço”, diz um trecho do livro.

Capacidade dos seres humanos imitarem uns aos outros favorece o desenvolvimento e gera empatia

Estudos observacionais sobre comportamento humano sugerem que, quando um indivíduo está na presença de outros, tende a sincronizar seus movimentos para combiná-los com os dos outros. A tendência é que imite gestos e posturas corporais, além de expressões faciais, tom de voz e até o sotaque.

Esta capacidade de imitação desempenha um papel central no desenvolvimento humano e na aprendizagem de habilidades motoras, comunicativas e sociais. É graças a ela que conseguimos entender ações, pensamentos e emoções de outras pessoas. Além disso, também nos tornamos capazes de interpretar uma ação realizada por outra pessoa e de ter empatia por essa pessoa.

Isto fica claro em algumas situações. É o caso de uma criança que repetidamente imita os sons feitos pelos pais para aprender a falar. Também acontece quando nos deparamos com várias pessoas correndo em uma mesma direção, o que nos sugere um perigo vindo da direção oposta e, após esta interpretação, também corremos para longe. Outro exemplo é quando percebemos alguém feliz ou triste e nos solidarizamos.

Compreender os mecanismos responsáveis por esta capacidade de mimetizar o outro é um tema de grande interesse da neurociência – que trabalha para identificar circuitos de neurônios que permeiam esses processos.

Neurônios-espelho são ativados ao planejar, ao realizar e ao observar alguém realizando uma ação

Em 1992, um estudo pioneiro de Giuseppe di Pellegrino analisou como o processo de imitação ocorria nos macacos. Segundo a pesquisa, neurônios localizados em uma área do cérebro chamada de córtex pré-motor eram ativados quando o macaco executava uma ação e também quando ele observava um outro indivíduo executando uma ação semelhante.

Estes neurônios ativados tanto durante a ação realizada, quanto na ação observada, foram, mais tarde, nomeados como neurônios-espelho. Desde o relato de Pellegrino, vários estudos se dedicaram a entender o mecanismo dos neurônios-espelho e sua importância.

Ao longo dos anos, as pesquisas deram um passo à frente. Descobriu-se que a maior peculiaridade dos neurônios-espelho está no fato de serem ativados não só durante a execução e a observação de uma ação, como Pellegrino havia notado. Os neurônios-espelho também são acionados no momento em que o indivíduo pensa em realizar a ação.

Possibilidade de espelhamento permite que reações ocorram de forma precisa no dia a dia

Os neurônios-espelho são definidos por duas propriedades. Uma delas é justamente a capacidade de espelhamento, ou seja, de reagirem a ações executadas pelo próprio indivíduo ou por outras pessoas. A outra propriedade é sua seletividade. Cada neurônio responde a apenas um tipo específico de ação. Ou seja, não responde, ou responde pouco, quando se trata de outro gesto.

Vamos pensar, como exemplo, no movimento de pegar um copo. Quando uma pessoa realiza esta ação, neurônios em regiões específicas do cérebro são ativados. São eles que vão garantir ao indivíduo executar a ação com precisão. Será necessário fechar a mão com exatidão. Com força em excesso, o copo quebra. Com pouca força, o copo cai.

Estes mesmos neurônios também são ativados quando o indivíduo observa outra pessoa pegar um copo. O que acontece neste momento é que eles fazem uma representação cerebral da ação.

Intenção por trás de cada ação também pode ser percebida graças aos neurônio-espelho

Estes dois casos – pegar o copo e observar alguém pegar o copo – foram analisados no estudo de Pellegrino. A partir dele, outros estudos avançaram na ideia de que, além do ato de pegar o copo em si, está em jogo também a razão pela qual a pessoa decidiu pegar o copo.

A intenção da ação pode ser, por exemplo, beber água, pois o dia está quente. Alguém que observe a ação é capaz de supor a intenção por trás dela – ou seja, que o copo será usado para beber água.

O indivíduo também pode planejar a ação que vai executar. No caso, pegar o copo para beber água. Em todas as situações – pegar o copo, observar alguém pegar o copo, ou planejar pegar o copo –, neurônios-espelho serão ativados.

Compreender o comportamento dos outros de forma espontânea também é tarefa dos neurônios-espelho

Além da compreensão do aprendizado e planejamento das ações, os neurônios-espelho são importantes na compreensão para o que se chama de cognição social. Trata-se da forma como as pessoas interagem com outros indivíduos socialmente.

Na interação social, é essencial ter capacidade de entender o que os outros estão fazendo, suas intenções e seus sentimentos. Estudos indicam que essa capacidade é mediada, em parte, pelos neurônios-espelho.

São os neurônios-espelho que registram as informações sensoriais geradas quando um indivíduo planeja uma ação, quando executa a ação e quando vê outra pessoa realizando a ação. Todas elas ficam armazenadas nas mesmas regiões do cérebro.

A semelhança entre essas informações permite que uma pessoa possa compreender o comportamento dos outros de forma simples, espontânea.

Os neurônios-espelho nos permitem entender os outros como indivíduos semelhantes a nós mesmos e são necessários para o desenvolvimento do reconhecimento, da imitação, da empatia e da linguagem.

Possibilidade de comprometimento dos neurônios-espelho em pessoas com autismo é investigada

Há autores que associam o mau funcionamento dos neurônios-espelho a sintomas de transtornos psiquiátricos. Esta falha pode estar ligada a dificuldades de socialização e de comunicação – características de pessoas com Transtorno do Espectro Autista.

Ainda é necessário que novas pesquisas sobre os neurônios-espelho possam tornar mais nítidas as relações entre os neurônios-espelho e outros tipos de neurônio que se relacionam com eles. Existe inclusive a possibilidade de haver neurônios capazes de modular os neurônios-espelho, mas ainda não há pesquisas conclusivas sobre este assunto.

Há uma necessidade também de estudos que possam estabelecer a relação anatômica e funcional entre os neurônios-espelhos e outras áreas do cérebro envolvidas no processo de cognição social para entendermos melhor como elas funcionam e como afetam as pessoas com TEA.

Marcília Lima Martyn

Marcília Lima Martyn

Neurologista infantil com especialização em epilepsia e doutorado em neurogenética pala Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; Responsável pelo setor de EEG (eletroencefalograma) do Hospital Infantil Sabará.

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