Elisabeth Wiklander: neurodiversidade como chave para identificar diferenças

28/09/2020Histórias0 Comentários

Musicista conta como o conceito transformou a percepção sobre si mesma ao se descobrir autista

A musicista sueca Elisabeth Wiklander cresceu com a percepção de que era uma garota estranha. Sofria bullying na escola e se sentia profundamente incompreendida, especialmente entre as pessoas de sua própria família. Também sempre destoou a ampla variação de humor que poderia apresentar em um intervalo de poucos minutos. “Meus familiares ainda ficam incrédulos quando eu passo de uma explosão nuclear para arco-íris e borboletas em menos de dois segundos. Literalmente”, conta em ela em sua palestra no TEDx Talk de Gotemburgo.

A sensação de desconforto sempre fez parte da convivência de Elisabeth. “Em situações sociais, nós temos expectativas uns sobre os outros. Nós usamos um certo tipo de guia de regras que, quando seguimos, nos recompensa com aceitação social”, conta. “Mas sempre senti ser diferente. O problema era que eu não podia explicar como e, certamente, não podia explicar o porquê. Sentia como se eu tivesse recebido um guia de regras diferente e que faltava uma comunidade que confirmasse que a minha maneira de interpretar o mundo também era válida”, detalha a musicista.

No entanto, ainda nos anos de escola, era muito clara sua enorme capacidade de manter o foco, de fazer análises, e sua imensa capacidade de memorização. Estudar, portanto, sempre foi algo simples e prazeroso. Com tantas habilidades, voou longe. Terminou a faculdade em Gotemburgo, concluiu um mestrado em música nos Países Baixos e atualmente trabalha como violoncelista na Orquestra Filarmônica de Londres. Mas a vida dela mudou mesmo foi a partir do diagnóstico de autismo, aos 26 anos.

Elizabeth percorreu um longo caminho de pesquisa e autoconhecimento para ser diagnosticada

O diagnóstico dependeu de um amplo trabalho de pesquisa que ela mesma precisou fazer sobre o transtorno. Elisabeth contou à BBC que chegou a ser testada na infância, mas descartaram a hipótese.

Existem diversas questões relacionadas a sexismo no procedimento de diagnóstico de autismo. A cada três homens, apenas uma mulher é diagnosticada. A hipótese mais aceita atualmente para a discrepância dos números é a de que o transtorno atinge mulheres de modo diferente e, por isso, o diagnóstico escapa da perspectiva médica.

Além disso, as mulheres com autismo considerado de alta funcionalidade são as que melhor conseguem desenvolver habilidades de camuflar e compensar as dificuldades decorrentes do transtorno. É o caso de Elisabeth. “O autismo é um espectro. Eu tive que agir como uma pesquisadora e colecionar um monte de informação de um monte de fontes diferentes em um longo período de tempo para ser capaz de completar o quebra-cabeça particular da minha vida”.

Em uma entrevista para a BBC, ela contou que, exausta de ter o diagnóstico descartado, levou todos os livros, artigos e pastas com tudo o que havia pesquisado sobre o transtorno, colocou tudo na mesa de um especialista e declarou: “Já li tudo isso. Eu tenho essa condição. Por favor, me escute”.

Seus colapsos na infância foram interpretados como acessos de raiva. Na idade adulta, foram se intensificando. “Às vezes, eu simplesmente me fechava, outras vezes precisava gritar”, diz Wiklander. “Meu corpo entrava em movimentos involuntários, como espasmos. Eu chorava, às vezes vomitava. Freqüentemente, terminava um colapso e tinha hematomas que não tinha ideia de onde vieram”.

Enfim, Elisabeth teve acesso ao misterioso guia de regras e pode compreender suas diferenças

Até que ela, enfim, conseguiu encontrar um médico que a diagnosticou e suas perspectivas sobre si mesma se transformaram. “Quando finalmente consegui ver a pessoa certa, fui diagnosticada quase que instantaneamente. Eu tinha um contexto completamente novo no mundo. É por isso que uma melhor consciência dos diferentes tipos de autismo e da forma como ele se apresenta nas mulheres é tão importante”, afirma.

A partir do diagnóstico, Elisabeth diz que todas as experiências que tinha vivido pareciam finalmente fazer sentido. “Ganhei acesso a esse misterioso guia de regras e podia começar a comparar com o meu. E então eu aprendi a identificar minhas diferenças”. Elisabeth prefere afirmar que autismo não é uma deficiência, mas uma diferença e explica seu pensamento a partir do conceito de neurodiversidade.

“Nenhum manual de diagnóstico pode verdadeiramente explicar a multifacetada experiência do autismo. É uma diferença neurológica com um vasto espectro de representações na população. Pode vir com dons e habilidades brilhantes assim como traços devastadores, mas autismo não é necessariamente uma deficiência. Ainda bem que hoje nós temos uma palavra que desafia essa terminologia negativa: neurodiversidade”, afirma a musicista.

Neurodiversidade é um conceito que engloba todos os tipos de mentes humanas, com e sem transtornos

O primeiro registro do conceito de diversidade é atribuído à socióloga australiana Judy Singer. Segundo Singer, neurodiversidade refere-se a ampla variação de composições cerebrais humanas. Assim como o conceito de biodiversidade contempla todas as espécies de seres vivos, a neurodiversidade engloba todas as diferentes formações mentais, sejam elas neurotípicas ou neuroatípicas. Somos todos neurodiversos.

Na visão de Elisabeth, o conhecimento sobre neurodiversidade abre novos canais de comunicação entre as pessoas, facilitando a identificação de diferenças que normalmente ficam escondidas. “Isso destrancou meu mundo com a chave de identificar minhas diferenças e comunicá-las de maneira que nós todos poderíamos entender. Então, hoje eu sou uma pessoa muito feliz”.

Outro grande passo de Elisabeth se deu quando ela decidiu anunciar nas redes sociais que era autista. Enfrentou um medo “aterrorizante” e começou a se expor, conversando abertamente sobre o transtorno.

Experiência de se expor publicamente foi muito mais enriquecedora do que Elisabeth poderia imaginar

“Estava muito preocupada que as pessoas expressassem todas as ideias preconcebidas sobre autismo para mim, em vez de me deixarem mostrar a elas o que o autismo pode parecer. Mas isto não aconteceu”, diz, com sorriso no rosto. “O que aconteceu foi que a minha vida mudou completamente quase do dia para a noite. Eu me encontrei com curiosidade e uma enxurrada de suporte de todos os lados: amigos, família, colegas e até de gente que eu não conhecia”. A imprensa passou a procurá-la e gente de todo o mundo, também.

Ela deixa muito claro que não deixou de ser autista e de lidar com suas características. Mas consegue reagir com muito mais segurança e amor próprio com situações difíceis. “Ainda sou autista, mas eu amo, eu aceito isso”, diz. “Reconhecer como nos diferenciamos uns dos outros de uma perspectiva neurológica nos ajuda a coexistir de forma mais suave sem ter que esculpir tanto nossa autenticidade, deixando nossas habilidades naturais, talentos e criatividade mais livres para se desenvolverem”. Isso vale não apenas para pessoas no espectro autista, mas para todos, complementa.

Para Elisabeth, a aceitação das diferenças neurológicas está relacionada com o acesso a direitos básicos

O debate aberto sobre o transtorno, para Elisabeth, pode contribuir para ampliar as possibilidades de pessoas autistas e o processo de inclusão. É preciso colocar essas pessoas e sua capacidade de processamento em perspectiva para criar, por exemplo, modelos de ensino e ambientes de trabalho adequados.

“Muitos indivíduos autistas ainda não pode acessar seus direitos básicos enquanto cidadãos porque a ignorância sobre a nossa diferença ainda permeia todos os aspectos da sociedade. (…) Todos os serviços precisam começar a se desenvolver na direção de levar a neurodiversidade em conta, ou muitas pessoas vão continuar desamparadas e isso prejudica toda a nossa sociedade”.

Só no Reino Unido, diz ela, a população de autistas em 2017 era estimada em um milhão de pessoas. “É inaceitável que, porque alguns não se encaixam em uma norma padrão, eles estão sob risco de serem moralmente assediados, discriminados, rotulados como incapazes, e empurrados para as margens da sociedade, se transformando em espectadores atrás de uma parede de vidro”.

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