Naoki Higashida: um autista não verbal conta sua história

2/02/2021Histórias0 Comentários

Autor japonês de mais de 20 de livros escreve apontando letra por letra em uma prancha alfabética

“Para viver como um ser humano nada seria mais importante do que a capacidade de me expressar.” Esta frase é de um jovem autor de 13 anos em seu primeiro livro, publicado em mais de 30 idiomas. Trata-se de Naoki Higashida, autista não verbal que assina o bestseller O Que Me Faz Pular, lançado no Japão em 2007 e traduzido para o português em 2014.

A estreia de Naoki na literatura encanta ao mostrar o que se passa pela mente de uma pessoa que não consegue expressar por meio da fala aquilo que sente e pensa. É um livro que mostra que não ser capaz de falar não significa não ter nada a dizer, como define um documentário de mesmo nome, baseado em seus relatos.

A obra descreve com profunda delicadeza processos mentais responsáveis por comportamentos que destoam do esperado por pessoas típicas. O texto se desenrola a partir de uma série de perguntas feitas por não autistas, como “Por que você faz as mesmas perguntas o tempo todo?”, “Por que você nunca para quieto?” ou a que deu origem ao nome do livro: “Por que você pula?”.

Naoki revela, por exemplo, que repete a pergunta que os outros fazem como uma forma de “peneirar as lembranças” para tentar encontrar a resposta que o outro deseja. Em um dos textos, compara sua memória a uma piscina de bolinhas, enquanto a de um neurotípico seria mais como uma fila. Além das respostas às perguntas neurotípicas, o livro apresenta também pequenas anedotas criadas por Naoki que revelam a diferença de percepções entre autistas e não autistas.

“Não consigo reagir de forma apropriada quando me dizem para fazer uma coisa”, conta Naoki

Ele conta também que soube, a partir do relato dos outros, que era uma pessoa diferente do comum. Diz, por exemplo, que tem dificuldade em manter uma conversa. “Não tenho problemas em ler livros em voz alta e cantar, mas, assim que tento falar com alguém, minha voz simplesmente desaparece”, afirma.

“Não consigo reagir de forma apropriada quando me dizem para fazer uma coisa e, quando fico nervoso, eu fujo, não importa onde esteja.” Já na abertura, afirma que, se o autismo fosse considerado apenas um tipo de comportamento, sua vida poderia ser mais fácil, e que é muito desagradável se sentir um estorvo para os outros. Também demonstra seu prazer em estar em meio à natureza, quando se sente derreter e tornar-se, com ela, algo único.

Sobre pular, uma de suas estereotipias, diz que é como se seus sentimentos fossem em direção ao céu. “Quando estou pulando, posso sentir melhor as partes do meu corpo — as pernas saltando, as mãos batendo —, e isso me faz muito, muito bem.”

Uma das interpretações que podemos dar ao livro é a de um recado a pessoas neurotípicas de que há muito mais se passando pelo corpo e pela mente de um autista do que é possível deduzir pelo olhar e também uma mensagem de compreensão a partir de uma realidade contra a qual é intensamente desgastante lutar.

Literatura produzida por autistas traz relatos sobre a falta de conexão entre mente e corpo

Em uma análise do livro, a psicóloga Marina Bialer cita que outros escritores autistas e também relatos clínicos descrevem uma dissociação angustiante entre o que se passa na mente e o que é produzido pelo corpo, e que Naoki enfatiza sua incapacidade de autocontrole.

“É interessante ressaltar que Naoki remete a dificuldade para se apropriar do corpo próprio ao sentimento de que ele não tem um corpo próprio, salientando ter o sentimento de estar preso dentro de seu corpo, tentando batalhar para conseguir se apropriar parcialmente deste para poder realizar o que deseja”, diz a pesquisadora no texto A lógica do autismo: uma análise através da autobiografia de um autista, de 2014.

“Ele aponta quanta energia ele usa para entrar em combate consigo próprio, para tentar romper com automatizações ou outros comportamentos que explodem no seu corpo”, diz o texto. Nas palavras de Marina, “a escrita impulsiona Naoki a uma compreensão de si mesmo e a uma modalidade autoterapêutica de expressão que lhe permite colocar em palavras o que vivencia e traduzir a lógica do seu autismo.”

Livro ganhou tradução clandestina de mãe de garoto autista antes de virar bestseller mundial

Na apresentação do livro, o escritor britânico David Mitchell define quatro categorias básicas na literatura sobre autismo. A primeira são os manuais de “como ajudar seu filho autista” que, segundo ele, costumam apresentar uma linha doutrinária. Há também os textos acadêmicos, que vê como distantes da realidade.

Mitchell cita ainda os relatos confessionais de pais e mães, que diz ajudar pouco, por conta da enorme variedade de manifestações do transtorno, e as autobiografias de autistas que, para ele, são esclarecedoras, mas por serem produzidas por adultos já adaptados, não ajudam a compreender as violentas crises com que precisa lidar com seu filho.

O Que Me Faz Pular, no entanto, trouxe sentido à realidade vivenciada por Mitchell. “Através das palavras de Naoki, pela primeira vez senti como se meu garoto estivesse falando conosco sobre o que acontece dentro de sua cabeça.”

O livro foi publicado em inglês após sua esposa, Keiko Yoshida, traduzir algumas cópias clandestinas. Keiko e Mitchell são pais de um garoto não verbal. Nos fóruns de casais internacionais formados por japoneses, pessoas ligadas a autistas passaram a indicar o trabalho de Naoki. Keiko comprou, leu e fez a tradução não-autorizada para distribuir aos professores e profissionais de saúde que acompanhavam seu filho. Com o sucesso da versão caseira, Mitchell procurou seu agente para uma publicação regular do que se tornou um grande sucesso em todo o mundo. O lançamento britânico se deu em 2013 e, no Brasil, no ano seguinte, pela editora Intrínseca.

Naoki também usa o teclado do computador para escrever, mas fica mais difícil pra se concentrar

Naoki nasceu em 1992 na cidade japonesa de Kimitsu, com cerca de 80 mil habitantes. O diagnóstico de autismo veio aos 5, em 1998, quando passou a frequentar escolas para estudantes com necessidades especiais. Isso porque a ele não foi permitido o acesso a uma escola pública regular.

Com a ajuda de uma professora e da mãe, aprendeu a soletrar palavras usando uma prancha de alfabeto composta pelos 40 caracteres básicos do “hiragana” japonês. Em entrevista à revista Time em 2014, ele contou que aponta para as letras, que são vocalizadas quando tocadas. “Também posso digitar em um teclado de computador, mas fico travado ou obcecado por certas letras. (…) Mesmo que uma pessoa com autismo grave aprenda a usar um computador, isso não significa que ela será capaz de expressar por escrito todas as emoções que foi incapaz de verbalizar. Expressar o que está dentro do coração e da mente do meu eu autista sempre será problemático, eu acho.”

Na mesma entrevista, ele é perguntado sobre o que diria aos pais que estão tristes porque um filho foi diagnosticado com autismo. “Não acho meu autismo uma desgraça. Você pode estar preso, seu sofrimento pode continuar, mas o tempo passa. O que seu filho precisa agora é ver seu sorriso”, recomenda o autor. “Crie muitas lembranças felizes juntos. Quando sabemos que somos amados, a coragem de que precisamos para resistir à depressão e à tristeza brota de dentro de nós.”

Seu segundo livro traduzido para o inglês foi publicado aos 21 anos – Fall Down Seven Times, Get Up Eight: A Young Man’s Voice From the Silence of Autism, que em tradução livre para o português, significa Cair Sete Vezes, Levantar Oito: a Voz de um Jovem sobre o Silêncio do Autismo. A obra, lançada no Japão em 2013, ainda não tem versão em português.

Hoje com 28 anos, Naoki produziu uma coleção que passa de 20 títulos, entre textos de ficção, não-ficção, ensaios, poesias e escritos autobiográficos.

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