Escovar dentes e cortar cabelo: com ABA, aos poucos vai

29/06/2021TEA no Dia a Dia0 Comentários

Por que para os típicos parece tão fácil algo que para nós, pais de crianças atípicas, não é?

Famílias de crianças autistas muitas vezes sofrem com situações que, para os outros fora do espectro, são quase triviais. Uma das principais dores de cabeça é a aquisição e manutenção da higiene pessoal autônoma: sair das fraldas, lavar atrás da orelha, usar o fio dental, colocar lixo para fora, entre muitas outras coisas. Crianças (e maridos) neurotípicos também dão trabalho para adotar tais comportamentos, mas no caso de crianças no espectro pode ser necessário lançar mão de tecnologias (no sentido de conhecimento, técnicas, procedimentos) desenhadas pela Análise do Comportamento Aplicada (ou ABA, sigla em inglês para Applied Behavior Analysis).

Recapitulando os pontos essenciais do diagnóstico clínico de TEA – é preciso que a pessoa apresente estas características:
– Perda importante na reciprocidade social, comunicação não verbal, e relacionamentos;
– Ao menos dois destes quatro sinais: comportamento/fala repetitiva, insistência na mesmice, interesses restritos e, mais importante para o assunto em questão neste texto, sensibilidades sensoriais.

Visitas periódicas ao dentista ou ao cabeleireiro podem se tornar momentos traumáticos para filhos, mães e pais

As questões sensoriais podem ser as mais diversas: hipersensibilidade ao toque e/ou a ruídos, luz, texturas e sabores, hipo ou hipersensibilidade à dor, entre outras.

Uma criança que tem hipersensibilidade ao toque, por exemplo, pode tornar a escovação dos dentes antes de dormir um verdadeiro calvário para os pais e, pelo estresse, prejudicar a rotina do sono. Visitas periódicas ao dentista ou ao cabeleireiro podem se tornar verdadeiros traumas de infância.

De cortar o cabelo podemos até desistir, mas a rotina de escovação dental não pode ser negligenciada

Evidente que, para a maioria de nós, aparar o cabelo de uma criança é uma questão de conformidade social apenas. Podemos trabalhar, num contexto de neurodiversidade, para que a criança cabeluda não seja nem sequer tópico de discussão e que passar uma tesoura rente a orelha de uma criança hipersensível não precise ser alvo de ensino ou terapia (pais sabem que é preciso escolher bem as batalhas que se quer lutar nessa guerra).

Sem julgamento estético ou ético, assumimos aqui que vencer o cabeleireiro é um alvo relevante que faz sentido para a família que nos lê. Já a escovação diária dos dentes, permanentes ou de leite, não se entende por opcional.

É preciso escovar os dentes todos os dias, e o TEA não pode servir ao negacionismo. As cáries são uma bomba-relógio e, se essa batalha não for encarada todos os dias, idealmente duas vezes por dia, um dia explode. Relatos de dentistas especializados em atendimento especial contam que, se deixada de lado, a higiene bucal pode levar até a casos extremos, necessitando anestesia geral para intervenção.

Uma das soluções oferecidas pelo ABA é esmiuçar o grande alvo em vários pequenos objetivos

Para conseguir que um dos meus filhos, que é autista, conseguisse vencer a aversão à escovação de dentes diária, foi preciso que a equipe multiprofissional, sob a responsabilidade da Bruna Nobre, que escreve comigo esse artigo, analisasse minuciosamente o alvo em questão e traçasse, uma a uma, as estratégias adequadas para que o objetivo fosse atingido de maneira satisfatória.

Nesse caso, o procedimento utilizado foi o que, em Análise do Comportamento Aplicada, chama-se de Modelagem, e consiste em reforçar as aproximações sucessivas tendo, por fim, um comportamento desejado. Para chegar ao comportamento final, é necessário identificar um ponto de partida, quebrando a atividade em pequenos alvos.

No ambiente da clínica mesmo, na mão das profissionais (enquanto em casa continuava-se o sofrido périplo), a criança era recompensada por abrir e manter a boca aberta em frente ao espelho por 3 segundos, depois 10 e depois 20 segundos. Na sequência, uma escova sem pasta foi introduzida. Depois, apenas tolerar a escova na boca em tempos crescentes. Depois, o movimento do vai e vem da escovação simulada, e, por fim, com creme dental. Tudo aos poucos, evitando ao máximo comportamentos aversivos.

A técnica das experientes terapeutas entra na decomposição adequada da tarefa alvo em pequenos pedaços e o conhecimento de quando se deve conduzir um pouco mais a criança em direção ao passo certo. Após pouco mais de 1 mês trabalhando todos os dias na clínica, com cooperação da família, o resultado final foi positivamente assustador: uma melhora evidente que mudou o patamar de qualidade de vida da família e da própria higiene bucal.

Vencido o desafio de manter limpos os dentes, foi a vez da família toda se unir na aventura de cortar o cabelo

Um vizinho muito amigo nos confessou que só não chamou o Conselho Tutelar quando tentamos cortar o cabelo do menino pela primeira vez nós mesmos lá em casa porque sabia das nossas dificuldades. Ouviam-se os gritos de desespero da criança por toda a vizinhança. Se a escovação era um “jiu-jitsu” diário, em que precisava manter meu filho preso à minha perna para fazer a limpeza, o corte de cabelo era uma espécie de “MMA vale-tudo” de 4 em 4 meses. Até aquele momento, desde muito pequeno, o menino gradualmente foi criando uma aversão ao salão. Mesmo antes do diagnóstico, suas fortes reações no colo da mãe enquanto a cabeleireira, experiente com crianças, tentava cortar, chegaram a um ponto até de vomitar de tanto chorar.

Quando vimos que não haveria como cortar num cabeleireiro profissional, o pai (eu, no caso) assumiu o corte pela primeira e última vez. Talvez a criança esqueça um dia, mas para o pai foi um trauma para a vida. Dado o desastre, as terapeutas entraram em campo, e desenharam uma estratégia que, mais uma vez, decompôs o processo em inúmeras pequenas partes.

Começaram com o simples tocar no cabelo com tesouras simuladas com o dedo, seguidas de recompensas tangíveis comestíveis das mais poderosas, como chocolate. Depois de muito treinar na clínica, veio o momento de começar as visitas a um salão. Gentilmente, e sem custos, a cabeleireira especializada Tia Célia permitiu que visitássemos o salão na saída da sessão de terapia diária. Cada visita, cada dia, um passinho a mais. Começamos só entrando. Depois observando. Depois batatinha frita apenas para sentar na cadeirinha de barbeiro adaptada para crianças. E assim fomos indo, de pouco em pouco, comemorando cada pequena vitória e sempre pedindo um pouco mais da criança. E eis que a pandemia chegou com tudo em março de 2020 a abalou o trabalho de meses.

Com a chegada da pandemia de covid-19, tudo teve de ser resolvido dentro da nossa própria casa

A boa notícia é que descobrimos que o trabalho de dessensibilização gradual não foi perdido. Eventualmente, como tudo durante a pandemia, passamos a fazer nós mesmos em casa o corte de cabelo também. Contando com supervisão remota, os pais passaram a ser “aplicadores ABA” e o ganho de experiência prática foi crucial também para este já antigo alvo.

Importante para o sucesso (mas não mais que uma mãe amadora manejando com destreza a tesoura) foi a Modelação, conceito diferente da Modelagem, utilizada principalmente no ensino da escovação.

Na Modelação, a criança observa um modelo, um voluntário que tem seu cabelo cortado simultaneamente frente a frente com a criança. Fundou-se então o nosso salão particular “Cabeleireiros Cocuruto”, em que a irmã de 7 anos corta o cabelo do pai enquanto a mãe corta o da criança.

O visual da criança foi melhorando a cada interação, de 4 em 4 meses, mas mais importante: as questões sensoriais típicas no TEA foram sendo dominadas e foi ficando cada vez mais fácil cortar.

O corte frente a frente passou a ser feito lado a lado. Os reforçadores de recompensa utilizados foram deliberadamente sendo escolhidos menos poderosos, até que finalmente, este ano, pela primeira vez, o topete do pai modelo não precisou mais ser sacrificado pelas mãos da filha.

Evoluir devagar, com esforço diário e constante, vale mais a pena do que lidar com consequências graves

A ABA dá o ferramental para acostumar a criança, pouco a pouco, passo a passo, com tarefas do cotidiano, como o uso de escova dental, máscara, tesoura, esperar na fila (mesmo tendo prioridade), e assim por diante.

Apesar de sofrido, é importante que os pais se conscientizem que todas essas coisas que normalmente ensinamos às crianças, dentro ou fora do espectro, não podem ser deixadas de lado, pois o preço pago pelo adiamento indefinido sai muito mais alto do que o pago em parcelas diárias.

Ricardo Vêncio

Ricardo Vêncio

Pai de crianças dentro e fora do espectro, professor livre-docente no Departamento de Computação e Matemática FFCLRP-USP.

Bruna Vicentim Nobre

Bruna Vicentim Nobre

Analista do comportamento na Associação de Amigos do Autista de Ribeirão Preto (AMA -RP). Especialista em ABA pela UFSCAR. Graduada em Pedagogia, com especialização em Educação Especial, área em que atua desde 2000. Possui formação em Psicoterapia e é pós-graduanda em Psicopedagogia Clínica e Institucional no Child Behavior Institute (CBI of Miami). 

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