Rodrigo Tramonte: O autista é um ilhado?
Quadrinista brasileiro refuta a tese comum de que autista é um ilhado e propõe estimular conexões a partir das semelhanças
Entendeu ou quer que desenhe? No caso de Rodrigo Tramonte, desenhar é a melhor opção. Rodrigo sempre foi uma pessoa isolada, e o universo dos traços e linhas é muito mais confortável para ele do que a interação com outras pessoas.
A explicação é simples: as pessoas mudam de características ao longo do tempo, enquanto os personagens mantêm um comportamento padrão. “Sempre tive uma afinidade maior com o mundo dos desenhos. Eu nem sempre entendia as pessoas direito, mas os desenhos tinham uma lógica que fazia mais sentido pra mim. Uma lógica previsível, simples, coerente”, conta em sua palestra no TEDxFloripa.
“Por exemplo, no desenho animado ou em um quadrinho, a gente, mesmo sem conhecer os personagens, consegue identificar quem é o herói, quem é o vilão. Eles sempre têm o mesmo emprego, moram no mesmo lugar, têm os mesmos amigos, falam as mesmas frases.” O mundo dos seres humanos, por outro lado, é imprevisível, complexo e incoerente. As pessoas mudam de emprego e de cidade. “Jogador de futebol quando fica famoso muda de time”, lamenta Rodrigo. Enquanto isso, personagens criados há décadas continuam os mesmos até hoje.
Para Rodrigo, autistas são náufragos, pois ainda que tentem não possuem ferramentas para deixar suas ilhas
Rodrigo é autista, e isso ajuda a explicar seu modo isolado de ser e a preferência pelos padrões do mundo dos desenhos. Há quem se refira aos autistas como pessoas ilhadas, presas em seu próprio mundo. No entanto, Rodrigo prefere usar o termo naufragado. Ele considera o termo mais adequado porque, ainda que um autista queira sair de sua ilha, tem menos recursos para conseguir. Faltam as ferramentas adequadas para que ele possa desbravar o mar e encontrar outras ilhas.
A comunidade científica se refere ao autismo como Transtorno do Espectro Autista (TEA). O termo espectro indica a imensa diversidade de manifestação do transtorno. Cada autista é único e manifesta seu autismo de forma diferente. Por isso, existe a máxima: se você conhece um autista, você conhece um autista.
Há, no entanto, duas características básicas comuns a todos as pessoas que estão dentro do espectro. Uma delas é a dificuldade na comunicação e na interação social em diferentes contextos. A outra, padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades.
Para autistas de grau 1, como Rodrigo, é comum ser difícil estabelecer laços de amizade
Atualmente existem três classificações do grau de autismo de acordo com a necessidade de suporte, segundo o DSM 5. O autismo de grau 3 é considerado como severo e, nestes casos, a pessoa precisa de apoio para atividades básicas do dia a dia, como as de higiene, por exemplo. No grau 2, moderado, o nível exigido de suporte diminui e é possível conquistar uma certa autonomia para tarefas do cotidiano.
O autismo de grau 1, considerado leve (o que não é sinônimo de fácil nem de simples), implica em uma independência ainda maior e pouco suporte para atividades diárias, como é o caso de Rodrigo. Por outro lado, é muito comum que pessoas com autismo de grau 1 tenham dificuldade em estabelecer laços de amizade, por exemplo. “Tinha muitas dificuldades de fazer amigos”, diz Tramonte. O doutor em psicologia Daniel Wendler fala sobre essa dificuldade em seu TED e relata um momento em que levou um soco de um colega de escola ao tentar ter um primeiro amigo na vida. O episódio evidencia o capacitismo do colega e a solidão de Daniel – por mais que quisesse, ele não sabia como sair de sua ilha.
Rodrigo faz uma provocação: se você não consegue sair, como então fazer com que as pessoas procurem a sua ilha? No caso dele, a solução estava justamente nos traços que o confortavam.
Produzir caricaturas virou o ponto de conexão de Rodrigo com as outras pessoas
Rodrigo começou a usar seu talento para transportar os humanos para o mundo dos desenhos. Passou a investir em caricaturas, um pedido recorrente das pessoas assim que descobriam suas habilidades como desenhista.
As caricaturas viraram um ponto de conexão entre Rodrigo e as outras pessoas, uma forma de criar pontes entre sua ilha e as outras. “Me ajudou a aumentar a afinidade com elas. Depois que eu comecei a trabalhar com caricatura, comecei a conversar com as pessoas, a atender clientes”, diz.
Estimular o talento foi o impulso para o jovem islandês Brynjar Karl construir pontes com pessoas de todo o mundo. Fascinado pelo Titanic, ele decidiu construir uma réplica do navio com 56 mil peças de Lego. Seu projeto ganhou espaço na imprensa e peças foram enviadas de todo o país para que pudesse concluí-lo. Brynjar, que é autista, viajou por diversos países para apresentar seu navio. A partir do reconhecimento de seu talento, seus sinais de autismo deixaram de se tornar um obstáculo. ‘A única cura é sermos aceitos como somos’, diz Brynjar.
Um processo semelhante aconteceu com Rodrigo. Nos trabalhos fixos, ele ficava nas mesmas ilhas, nos mesmos ambientes. Graças às caricaturas, passou a circular por lugares diferentes, empresas de vários setores. Assim como Brynjar, seu mundo se ampliou.
Investir em seu talento com caricaturas fez Rodrigo conhecer a pessoa que o alertou sobre o diagnóstico de autismo
Circulando por novas áreas, Rodrigo acabou conhecendo pessoas da área de saúde e encontrou alguém que suspeitou que ele pudesse ser autista. “Uma pessoa que era fonoaudióloga de autistas, observando meu jeito de falar, minha postura, me falou sobre esse termo aí que eu nunca tinha ouvido falar antes, Síndrome de Asperger”. O termo Síndrome de Asperger é uma classificação que atualmente está em desuso para referir-se a autistas de grau 1, que precisam de pouco suporte.
O encontro com o diagnóstico ajudou a esclarecer ao próprio Rodrigo quem ele era. “Foi uma epifania”, diz, sobre a sensação que teve logo após uma breve pesquisa na internet. A sensação de autodescoberta e de alívio é comumente relatada por pessoas diagnosticadas na idade adulta, como a humorista Hannah Gadsby, a jornalista Renata Simões, a jovem britânica Carrie Beckwith-Fellows e a musicista Elisabeth Wiklander. “Foi um momento de luz na minha vida. Como se eu fosse um extraterrestre que descobriu que era de outro planeta. Que passou a vida inteira morando em outro planeta”, desabafa Rodrigo.
Após descobrir-se autista, Rodrigo passou a ser parte de uma comunidade e sua sensação de isolamento diminuiu
O diagnóstico de autismo ajudou a explicar porque Rodrigo se sentia tão confortável com os desenhos e também diminuiu a sensação de isolamento. “Ter descoberto que tem muito mais gente igual a mim no mundo me fez sentir parte da mesma ilha.”
Rodrigo conta que viver sem saber que tinha autismo era como andar na direção errada. “Como a descoberta foi na minha idade adulta, eu senti como se eu tivesse passado a minha vida caminhando por uma estrada para um destino errado. Como se eu quisesse ir lá pro Amazonas e tivesse indo lá pra Pernambuco. E todo mundo que já fez uma viagem sabe, pra fazer o retorno até o ponto certo leva algum tempo.”
Por conta do diagnóstico tardio, Rodrigo só passou por algumas experiências depois de adulto. Ao ter contato com outros autistas, pais, médicos e professores de autistas, se tornou parte de uma comunidade. “Apesar de serem pessoas diferentes, com formações diferentes, interesses diferentes, sempre achei pontos em comum com a minha história. Por exemplo: não ter amigos, sofrer bullying na escola, não conseguir comer de tudo”.
A partir desses contatos, Rodrigo começou a abraçar o ativismo autista e passou a ser militante da causa. Decidiu fazer caricaturas em público e até publicou um livro com seus desenhos, a HQ Humor Azul. Na atuação como ativista, conheceu a personalidade autista mais influente do planeta, Temple Grandin, que revolucionou as técnicas de manejo de gado.
Conceitos básicos do TEA
No ativismo, Rodrigo também aprendeu conceitos básicos do autismo. O primeiro é que um autista nunca é igual ao outro. Entre os mais famosos estão, além de Temple Grandin, a cantora Susan Boyle, o engenheiro eletrônico John Elder Robison e o surfista Clay Marzo. “Autistas podem ser parecidos nesse ponto, de ter um interesse muito forte em alguma coisa, mas nem sempre vai ser na coisa.”
Ele também cita a diversidade de graus do transtorno e como isso pode afetar o diagnóstico. “Vai ter o autista mais comprometido, que não fala, não consegue se vestir direito, e o autista que consegue se virar sozinho, mais independente. Taí a razão do meu diagnóstico tardio também. Muitos médicos ainda acham que só existe o autismo severo.”
Outra coisa que Rodrigo conta que aprendeu é que todo mundo tem alguma deficiência. “Todo mundo é deficiente em alguma coisa. A pessoa que não sabe desenhar, que não sabe dirigir, não sabe cozinhar, não sabe falar inglês, ela também tem uma deficiência. Todas as pessoas têm algum interesse restrito. A profissão que a gente escolhe pra nossa vida é de certa forma um interesse restrito, um assunto do qual a gente sempre vai falar nas nossas conversas.”
Mais importante de todas as descobertas após o diagnóstico foi a própria personalidade
A descoberta mais importante, diz Rodrigo, foi valorizar quem ele é. Ele conta que conseguiu obter sucesso na profissão e também se tornou uma personalidade dentro do ativismo. Mas isso acabou apagando sua própria pessoa, que ficou, por muito tempo, em último plano. “Quando alguém fica famoso, acaba virando um personagem. As pessoas enxergam como alguém que não come, não dorme, não vai no banheiro”, afirma.
Ele conta que, de tanto se dedicar a caricaturas, sente que se tornou uma caricatura de si mesmo. Em geral, não costumam perguntar como ele está, mas questionam sobre os desenhos. Além disso, muita gente na comunidade, especialmente mães de autistas, começou a enxergá-lo como um super-herói do autismo, alguém que usou uma habilidade para superar uma dificuldade. “Só que uma coisa que o mundo dos desenhos ensina sobre os super-heróis é que todo super-herói tem sua identidade secreta, e essa aqui é minha identidade, o Rodrigo Tramonte.”
Ele conta que conseguiu alcançar o destino na estrada da profissão e do ativismo e, na busca por quem ele é, ainda está fazendo o retorno. “Agora que conheço minha verdadeira essência, minha personalidade, minha forma de funcionar, eu estou conseguindo superar minhas dificuldades nessa estrada também.”
A palestra termina com uma recomendação, mais uma descoberta dele. Quando encontramos alguém diferente – um autista, um cego, um surdo ou cadeirante, em vez de focar na deficiência, é preciso focar nos pontos em comum: cozinhar, jogar futebol, filmes de terror. “É preciso focar na semelhança.”
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