Acolhimento na universidade

23/12/2021Histórias0 Comentários

Estudante autista cria coletivo na USP para dar suporte aos atípicos e movimento se espalha por universidades de todo o país

Um coletivo capaz de acolher e dar suporte a universitários autistas foi criado neste ano na USP (Universidade de São Paulo). A iniciativa partiu do estudante Gian Martinovic – cujo nome de registro é Giulia Jardim Martinovic -, e inspirou outros alunos, de todo o país, a criarem núcleos de apoio em suas universidades.

Pessoas com deficiência correspondem a 0,5% dos alunos matriculados nas universidades brasileiras, de acordo com dados do Censo da Educação Superior de 2018.

“Comecei a conhecer autistas na USP no segundo semestre de 2019, mas eram poucos. Vi que passavam por dificuldades e que não havia apoio para eles. Os professores pareciam desconhecer que alunos autistas frequentavam a USP”, disse Gian (ou Gia) em entrevista ao Autismo e Realidade.

No Reino Unido, apenas 20% das pessoas com autismo estavam empregadas (confira aqui o relatório original, em inglês) em 2020, de acordo com dados do governo. É a taxa mais baixa de empregabilidade entre todas as pessoas com deficiência.

Grupo oferece ferramentas para que alunos autistas consigam permanecer no ambiente universitário

Gian conta que atua como ativista pela conscientização e pelos direitos dos autistas desde 2019. A criação do Coletivo Autista da USP, no entanto, aconteceu durante a pandemia. O foco do coletivo é atuar na permanência dos estudantes no ambiente universitário, oferecendo apoio para lidar com os obstáculos do dia a dia.

“Existe uma grande dificuldade para organizar os estudos, sobretudo com autistas que também são TDAH” conta. “Também é uma grande ansiedade sobre o futuro, para pensar no que fazer durante e após a graduação para garantir a entrada no meio acadêmico ou mercado de trabalho.”

O coletivo oferece mentorias de planos de estudo e de carreira que podem ser agendadas pelo e-mail coletivoautista@gmail.com. Para tirar dúvidas sobre o serviço, a orientação é procurar os perfis do coletivo no Facebook e no Instagram.

Além disso, grupos de apoio psicológico serão formados a partir de 2022. “Enviamos formulários para entender melhor as dificuldades dos alunos e qual estilo de grupo seria mais confortável para eles.” As reuniões do Grupo de Apoio Psicológico reúnem cerca de 7 pessoas por vez.

Com um mês de existência, coletivo ganhou prêmio de diversidade

O coletivo foi reconhecido logo após a criação, com o Prêmio Diversidade, na categoria Acesso, inclusão e permanência de grupos minoritários da USP. A premiação é concedida a iniciativas de incentivo à diversidade, e é realizada em junho, para marcar o mês do Orgulho LGBTQIA+.

Após a conquista do prêmio, a fama do coletivo se espalhou. “Ganhamos visibilidade, fomos entrevistados, de modo que estudantes autistas de outros lugares do Brasil entraram em contato comigo, interessados em criar coletivos autistas em suas instituições. Primeiro foi a UFRJ, depois a UFSC, a UFRGS, e assim por diante. Temos atualmente mais de 15 unidades em vários estados”, diz o estudante.

Coletivos inspirados pelo CAUSP têm canal de comunicação para troca de apoio

Gian ajuda alunos interessados a fundar coletivos autistas, dá dicas de divulgação, orienta sobre o trabalho nas redes sociais e, quando necessário, não só Gian mas outros participantes, oferecem apoio na produção de arte. O perfil do Coletivo Autista da USP (@coletivoautista) acumula hoje cerca de 3 mil seguidores.

Os fundadores de outros grupos se articulam também por meio de um grupo de WhatsApp. “Compartilhamos muitos ideais e diferimos em outros. Cada um tem o seu estilo e objetivos, dependendo da personalidade e quantidade de membros”, diz Gian.

Como professores e colegas neurotípios podem contribuir com os estudantes autistas?

O coletivo também oferece apoio em casos de abusos por parte de professores. Um grupo formado por pessoas da área do Direito – graduandos e formados – dão apoio com questões legais.

Há professores, no entanto, alinhados ao coletivo, que se ofereceram para apoiar o grupo não só com divulgação, mas também de forma participativa. Gian dá algumas dicas simples para que não só os professores, mas também colegas neurotípicos, possam ajudar no processo de adaptaçao e permanência dos autistas nas universidades.

“Os professores podem oferecer métodos alternativos de avaliação. Afinal, a pandemia nos mostrou que isso é definitivamente possível. Perguntem no primeiro dia de aula: algum aluno aqui é pessoa com deficiência/neurodivergente? Se sim, por favor, falem comigo após a aula ou mandem um email”, orienta. Os colegas neurotípicos podem nos ajudar com a divulgação do coletivo e podem entrar no coletivo como voluntários, em tutorias, mentorias, apoio psicológico, arte e marketing.”

Carta redigida com outros coletivos orienta instituições sobre adaptações necessárias a alunos autistas

Entre as iniciativas do Coletivo Autista da USP está um documento redigido em parceria com outros coletivos e com apoio de professores típicos e atípicos.

A “Carta de Solicitação de Adaptação para autistas nas Universidades” foi enviada às instituições dos alunos participantes. O texto é recomendado a toda universidade interessada em ampliar a inclusão de autistas e a conscientização de professores e da comunidade acadêmica.

“Muito embora as universidades federais atendam a lei de cotas para deficientes, as universidades estaduais massivamente ignoram esses sujeitos, mesmo tendo
autonomia para promover a inclusão”, diz o documento. “Em razão disso, é fundamental a participação de movimentos sociais que busquem não apenas garantir o acesso à universidade pública e particular, mas também a permanência dos estudantes que conseguem chegar a este nível de escolaridade.”

Estudante fala dos desafios na chegada à universidade e na criação do movimento

Gian revela que seu processo de adaptação após entrar na USP “foi muito difícil e solitário no começo”. Segundo ele, universidades particulares costumam prestar mais apoio aos alunos autista, pois esses alunos são ‘clientes’”. A situação é bem diferente das escolas e universidades públicas, afirma o estudante. “Quando eu entrei na USP, em 2019, encontrei zero apoio para alunos autistas e neurodivergentes”

O processo de criação do coletivo também foi desafiador. “É difícil ter criado o primeiro Coletivo Autista da USP, de São Paulo, do Brasil. Seria muito mais fácil se já existisse um quando ingressei. Quem me dera! Existe muita cobrança, muita crítica, antagonismo, muita gente querendo te derrubar quando você é o fundador de um coletivo.“

Além de lidar com as demandas do coletivo, é preciso ainda gerenciar suas próprias limitações, conta Gian. “Eu criei esse coletivo para ajudar os estudantes autistas da USP, mas eu também sou um estudante autista da USP e tenho as minhas dificuldades. Muitas vezes é pesado e eu me cobro bastante e dedico bastante tempo para o CAUSP, o ativismo em geral, e para as disciplinas da universidade.”

Gian criou corrente feminista autista, por perceber que as pautas ainda são focadas em mulheres neurotípicas

Gian também atua na criação e no fortalecimento de uma vertente feminista autista. “Não vi as mulheres autistas sendo mencionadas por outras vertentes do feminismo e coletivos feministas da USP. Inclusive eu pressionei um deles para que incluíssem mulheres PCDs em sua pauta”.

Para ele, as pautas feministas ainda são focadas em mulheres neurotípicas. “As neurodivergentes são apenas um pequeno anexo cujo propósito é mostrar que se importam, mas não é o caso. Nunca senti que se importavam.”

Gian se assumiu neste ano como uma trans pessoa não-binária de gênero fluido, e não se identifica com o gênero feminino, mas com masculino e xenogênero – uma identificação de gênero não convencional que pode ser ligada a animais, plantas, sentimentos, sensaçoes ou criaturas – como fadas, por exemplo). “Eu tenho uma conexão mais antiga com o feminismo. Eu fui designado mulher ao nascer e vivenciei como é ser mulher nesse mundo. Então eu tenho lugar de fala apesar de não me identificar com o feminino”, explica.

A falta de conhecimento sobre o transtorno e o número baixo – ou inexistente – de mulheres autistas nos movimentos dificulta a possibilidade de uma mulher autista receber ajuda, mesmo entre feministas. Ele aponta que mulheres autistas são mais suscetíveis ao abuso sexual e psicológico, por exemplo. “Pessoas autistas podem ter dificuldades com comunicação verbal e não-verbal, dificuldades para identificar um abuso, se abrir com mulheres neurotípicas desconhecidas e realizar uma denúncia.”

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