Autismo no tatame
Campeão e professor de jiu-jitsu, pesquisador Eduardo Friedrich fala sobre experiência no atendimento de crianças autistas em aulas de luta
Treze vezes campeão gaúcho de jiu-jitsu e bicampeão sul-brasileiro. Esse é currículo competitivo do atleta, professor e educador físico Eduardo Friedrich. Fora das disputas, ele começou a atender em sua escola, no ano passado, pequenos alunos com lutas muito diferentes das que está acostumado a lidar. Em plena pandemia, Eduardo conseguiu montar seu próprio espaço de treino, onde recebeu seu primeiro aluno autista, Matheus, de 7 anos.
“Sempre me senti preparado para o atendimento do Matheus, mas claro, era algo novo, e eu queria muito olhar para ele, e fazer a leitura daquele primeiro dia, e poder pensar com ele, ver o que ele gosta de fazer e de como ele gosta de fazer as atividades. Também estava apreensivo se ele iria fazer as atividades”, conta o educador.
Conseguir fazer a leitura da criança e, a partir daí, montar o atendimento adequado é um dos grandes desafios no atendimento a esse público, diz Eduardo.
Empatia e resiliência são as principais características para treinar crianças com deficiência, diz o professor
Aos 37 anos, Eduardo é pesquisador em autismo, trissomia 21 (Síndrome de Down), TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade) e ataxia de Friedreich. Ele também tem especialização em atendimento para crianças com autismo, T21 e paralisia cerebral.
Sobre a formação, Eduardo conta que existem cursos específicos, mas que cada profissional deve se aprofundar e pesquisar por conta própria. O principal requisito, no entanto, é ter empatia e resiliência, diz o professor. Além disso, conseguir ler cada criança, a cada dia que de atendimento. “Às vezes não é possível treinar jiu-jitsu, então crio outras técnicas e atividades.”
Atualmente, ele atende cinco crianças autistas e outras cinco com outras deficiências. Todas de forma gratuita. Nem todos conseguem participar da aula com a mesma assiduidade por causa de suas particularidades, conta o professor.
Ambiente da primeira aula é preparado especificamente para receber a criança autista
A chegada de Matheus à escola de Eduardo aconteceu depois que o professor anunciou nas redes as aulas gratuitas para crianças com deficiência. Antes de Matheus ter a primeira experiência no tatame, o professor fez uma entrevista com a mãe do aluno, que tem uma ONG de apoio a outras famílias de crianças autistas, a Coração Azul. Além disso, ela respondeu também um questionário sobre o filho. “Assim é feito com toda criança que vem até meu espaço”, conta o treinador.
Depois do primeiro contato, o aluno autista passa por uma aula com um ambiente especialmente preparado para o momento. “Tento trazer para aula algo que ele goste muito. Um personagem, um brinquedo, cores, para que ele se sinta à vontade. Depois que ele se sentir à vontade, e eu ganhar a confiança dele, iniciamos o trabalho voltado ao jiu-jitsu, muito de forma lúdica, em que ele treina jiu-jitsu fazendo atividades que ele gosta”, conta Eduardo.
“Para o autista é uma luta ir para a escola ou para qualquer lugar , sem ter o desejo de ir. Ninguém gosta de ir num lugar onde não se sinta bem, é ou não é? E para o autista isso é muito mais forte.”
Trajetória do treinador, abandonado para adoção ainda bebê, ressignificou seu conceito de vitória
Para os pais interessados em incluir seus filhos em uma atividade de luta, ou qualquer outro esporte, a dica é procurar profissionais qualificados. “Principalmente que tenham amor ao próximo”, orienta Eduardo. “Vale a tentativa de inserir a criança no jiu-jitsu, Sei que muitas vezes a criança não se adapta, por isso a escolha de um bom profissional é importante, veja a história dele e converse com outros pais que já fazem atendimento.”
A história de Eduardo, que acumula o primeiro lugar em uma série de disputas, é marcada justamente pela transformação do significado de vitória.
“Quando nasci, minha mãe me deixou no hospital para ser adotado. Fui adotado no estado do Paraná em 1984. Com quatro dias fui para o Rio Grande do Sul, onde a família que me adotou tinha muito amor, mas também muitos problemas. Resumindo… Eu me sentia um derrotado em tudo que eu fazia, mas nunca desisti. Sempre tive esperança de que tudo iria mudar, e eu iria conseguir chegar onde desejava, mesmo que eu não visse isso… Mas meu coração dizia para não desistir…E foi o que fiz. Nunca desisti”, conta o professor.
“Comecei a lutar pois eu queria sentir o gosto da vitória, ter essa sensação de como é ganhar algo. E o jiu-jitsu me deu essa sensação”, afirma. “E quando venci!!! Eu vi que não era tão importante assim aquela medalha no peito. Realmente vi que as vitórias de verdade foram aquelas que travei durante a vida, até chegar a vencer no jiu-jitsu.”
Eduardo começou a lutar em 2014 e está há três anos entre os melhores do ranking gaúcho da modalidade.
No dia a dia da escola de jiu-jitsu, medalhas dão lugar ao sorriso das crianças
Nas aulas da academia, o grande prêmio é a alegria dos alunos. “O principal impacto é o sorriso no rosto deles, aquele desejo de voltar às aulas de jiu-jitsu, perguntar aos pais quando vão ver o professor novamente.”
E o que se aprende com os pequenos lutadores? “O aprendizado principal é o amor. Nesses atendimentos o sentimento de amor é enorme. Se o profissional não sente isso, tem algo errado”, conta Eduardo, que aponta humildade como característica essencial para este tipo de aula. “Particularmente, eu consigo evoluir muito com as crianças dentro da humildade. É necessário ser humilde para um bom atendimento.”
Eduardo agora atua na formação de monitores para ampliar o atendimento a crianças com deficiência
A escola de Eduardo atende, ao todo, 85 alunos, entre típicos e atípicos. “Posso dizer que não tem muita diferença no aprendizado deles. Minha avaliação é feita dentro das limitações de cada criança. Então afirmo: neurotípica ou não, a evolução vai acontecendo e é visível – estou falando dos meus alunos, sei que não cabe para todas as crianças, tanto as neurotípicas quantos as com TEA.”
Atualmente, Eduardo trabalha também no treinamento de monitores, para que possa atender mais crianças com deficiência. “O principal intuito do atendimento aos pequenos é servir de exemplo para outros atletas, para que também façam o mesmo, e para que o poder público faça com que essas crianças tenham atendimento priorizado e não necessitem esperar em filas. Que as autoridades, ou seja quem for, tenham empatia e facilitem o acesso à saúde e à educação dessas crianças, treinando monitores nas escolas, treinando melhor o povo para lidar com essas crianças.”
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