Sophia Mendonça: autismo plural

24/02/2022Histórias0 Comentários

Jornalista, escritora e pesquisadora autista rompe estereótipos e debate identidade de gênero, orientação sexual, idade, afetividade e relações amorosas no espectro

Jornalista, pesquisadora, mestre em comunicação, escritora e influenciadora digital. A mineira Sophia Mendonça atua na conscientização do autismo em sua pluralidade. Ao lado da mãe, Selma Sueli, conduz o canal Mundo Autista, com 13 mil seguidores no Instagram. No YouTube, são cerca de 60 mil.

Em pauta, a diversidade no espectro. Sophia traz para a discussão recortes como os de classe, idade, identidade de gênero e orientação sexual. Afetividade e relações amorosas também entram no debate.

Os temas fogem do comum em uma comunidade “ainda muito centrada em um estereótipo infantil, masculino, branco, cisheteronormativo”, como afirma a própria jornalista. Há, segundo ela, uma “resistência de reconhecer a maior diversidade sexual e de gênero no autismo”.

Desafio de mulheres na busca por diagnóstico é tema do próximo livro de Sophia

A resistência e os esterótipos refletem o foco das pesquisas na área e o acesso aos serviços de saúde e diagnóstico do transtorno. Atualmente, considera-se que 1 a cada 44 crianças é autista. Apenas 1 a cada 4 é menina (http://autismoerealidade.org.br/2020/07/30/ha-diferencas-entre-homens-e-mulheres-com-autismo/). Os padrões de diagnóstico ainda são masculinos. Não à toa, Sophia prepara o lançamento de seu oitavo livro, o e-book Autismo no Feminino, que acontece no dia 8 de março. Em 13 capítulos, mulheres autistas relatam suas lutas para conseguir o diagnóstico. O livro está disponível para pré-venda na Amazon.

Sophia é uma mulher trans. Recebeu diagnóstico de autista como se fosse homem o que, segundo ela, talvez tenha facilitado para que não fosse diagnosticada ainda mais tarde. Dois anos depois, Sophia se descobriu trans. Teve de lidar com a incapacidade de profissionais da saúde em reconhecerem sua transgeneridade e com as consequências dessas limitações à sua saúde mental.

“O psiquiatra chegou a literalmente rir na cara da minha mãe. Disse que era tudo coisa da minha cabeça. Eu sabia que não, mas isso me travou por muito tempo, porque eu sempre era invalidada pelos profissionais de saúde, até o início da fase adulta”, relata a escritora.

“Até que finalmente encontrei uma psicóloga especializada em autismo que tinha conhecimento sobre transgeneridade e um psiquiatra com o trabalho voltado à transição. Comecei um tratamento multidisciplinar, também com endocrinologista.” A partir de então, deixou de ter crises de agressividade e desregulação de humor.

“Uma vez, um psiquiatra perguntou porque eu não aceitava ser contrariada no dia a dia. Eu respondi que, como eu posso aceitar um não, se o que é mais elementar (a minha identidade de mulher) foi negado a mim. Ele não respondeu mais nada. Até essa minha rigidez melhorou substancialmente após a transição”, conta Sophia.

Em entrevista ao Autismo e Realidade, ela conta em detalhes o processo, fala sobre acessibilidade amorosa, da descoberta do diagnóstico da mãe -na sequência do seu diagnóstico-, e aponta referências para pensar no autismo como o próprio conceito de espectro nos ensina: plural.

– Sophia, você percebe alguma resistência na discussão sobre sexualidade na comunidade autista? Se percebe, qual você entende como a base dessa resistência, como ela se manifesta e de que forma você vem lidando com ela?

Vejo com bons olhos os esforços de alguns pais e profissionais para tentar compreender a sexualidade no espectro autista. Mesmo assim, percebo que em muitos casos os estigmas e preconceitos prevalecem até nessas tentativas de auxiliar a pessoa a se entender, principalmente quando a orientação sexual ou a identidade de gênero foge ao padrão normativo cisgênero e heterossexual.

Sophia aponta que há mitos ligados à afetividade do autistas e podem limitar suas experiências

Muitos fatores influenciam nesses conselhos equivocados e na resistência de reconhecer a maior diversidade sexual e de gênero no autismo, dado embasado por estudos quantitativos e qualitativos robustos.

Primeiro, há o receio de que autistas possam ser mais ingênuos em relacionamentos amorosos. Essa característica é real, mas não invalida o desejo afetivo nem a capacidade de aprendizado da pessoa. O acompanhamento psicológico é muito importante. Contudo, também existem vários mitos que colaboram para percepções errôneas sobre a sexualidade no autismo.

Falta de habilidade não tem a ver com incapacidade de manter relacionamentos afetivos, diz Sophia

A dificuldade de autonomia em situações sociais e de vida diária que os autistas evidenciam é recorrentemente utilizada como um argumento para invalidar a possibilidade de autistas se relacionarem amorosamente ou se perceberem com orientações sexuais e identidade de gênero fora da norma. É aquela coisa, “Se a menina não sabe nem fritar um ovo, como ela pode se perceber lésbica e ter uma vida afetiva ativa?”. Só que uma habilidade não tem absolutamente nada a ver com a outra.

As pessoas estão acostumadas a ver a deficiência como algo aquém, mas no autismo muitas vezes temos consciência de questões complexas e importantes da nossa identidade, ao mesmo tempo em que podemos manifestar desafios em aspectos básicos no dia a dia.

Há uma discrepância considerável entre aptidões e dificuldades e ela não segue o mesmo padrão de desenvolvimento dos neurotípicos. Vários autistas, mesmo em casos bastante sutis, são proibidos pelos pais de se relacionarem afetivamente.

Ignorar questões de sexualidade deixa os autistas ainda mais vulneráveis

Como youtuber, vejo que a ligação entre sexualidade e autismo interessa a muita gente, mas sempre levanta polêmicas sobre o que uma coisa tem a ver com a outra, especialmente quando o assunto é LGBTQIAP+. Essa visão ignora toda a pluralidade que compõe o ser humano autista. Ignorar essas questões só nos deixa mais vulneráveis, até dispostos a experimentar situações perigosas para saciar o desejo por sexo e/ou companhia.

Com relação à minha produção de conteúdo, procuro ter sempre bastante cuidado na abordagem da sexualidade e da identidade de gênero. Não é um tema que me sinto à vontade para divulgar tanto em minhas mídias sociais, embora trabalhe com isso academicamente, porque sei que há muito preconceito.

Eu tive a boa sorte de ter minha transição social bem recebida pelos seguidores, mas creio que meu jeito discreto favoreceu isso. Essa discrição foi aprendida ao longo do período da transição. Acredito que gênero e sexualidade são temas pertinentes ao TEA e que devem ser debatidos, mas gosto de fazer isso com moderação, porque o meu foco como comunicadora é o autismo.

Acessibilidade amorosa e acessibilidade afetiva: entenda os conceitos

– Em um dos seus posts você cita um capítulo sobre TEA e acessibilidade amorosa que você escreveu para um livro. Do que se trata a acessibilidade amorosa? Como isso afeta a vida dos autistas? Há diferenças nessa acessibilidade quando falamos de uma pessoa autista trans?

A acessibilidade amorosa é um conceito proposto pelas pesquisadoras Sônia Caldas Pessoa e Mariana Cecilia da Silva, ambas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ele deriva de um outro raciocínio proposto pela Sônia, o da acessibilidade afetiva.

A acessibilidade afetiva diz respeito à possibilidade de interações cotidianas que envolvem pessoas com deficiência, nas quais não há limitações comunicacionais a não ser as restrições desejadas pelos próprios participantes.

Já a acessibilidade amorosa segue essa mesma lógica, mas se refere a afetos específicos relacionados ao amor romântico entre os indivíduos.

Ser companheiro de um autista é diferente de ser cuidador, diz a escritora

A vivência com autistas mostra que nós exibimos, muitas vezes, a necessidade de escolher pessoas ao longo da vida para exercerem um papel de suporte. Para alguns, pode ser o marido ou a esposa. No entanto, o cônjuge não é um cuidador nem uma ‘extensão’ do autista.

É necessária a psicoeducação do indivíduo para a conscientização das próprias sensações e sentimentos, para que ele seja apto a lidar com as consequências do relacionamento amoroso. Essas intervenções acerca da autoconscientização e do manejo social são importantes em qualquer momento da vida afetiva do sujeito.

Quando falamos de uma pessoa transgênero, essa questão se complica um pouco. O corpo trans ainda é bastante objetificado. Há muito fetiche e poucas pessoas dispostas a assumir um relacionamento com alguém trans.

Contudo, o número de relacionamentos duradouros e sérios que alguém tem na vida não costuma ser alto. Então, encontrando a pessoa certa, você pode construir uma história linda. É o que eu estou vivendo com meu companheiro. Ele me instiga a ser melhor e me respeita e me valoriza como a mulher que eu sou.

“Sempre soube que era uma menina e isso chamava a atenção das pessoas”

– Na seção Quem Somos do Mundo Autista, está o registro de que você foi diagnosticada em 2008. Nessa época, você já se entendia como uma pessoa trans? Existe alguma relação entre o seu processo de se descobrir autista e se descobrir como pessoa trans? Pode nos contar um pouco dessa trajetória?

Desde que eu tenho registro de memória na infância, eu sempre soube que era uma menina. Colocava uma toalha na cabeça para simular um cabelo grande, gostava de vestir roupas e sapatos da minha mãe e tinha os interesses culturalmente constituídos como femininos, a exemplo de bonecas Barbie e filmes de princesa.

Meu comportamento era todo feminino e isso chamava a atenção das pessoas, tanto que uma psicóloga ligou preocupada para minha mãe quando eu tinha cinco anos para discutir sobre a minha “homossexualidade”.

Logo na primeira infância, falei com minha mãe que eu me sentia uma mulher em corpo de homem. Tinha disforias muito fortes com relação ao meu corpo que se acentuaram na adolescência. Fazia depilação, deixava o cabelo grande e andrógino e não usava sungas nem tirava a camisa.

Crises de agressividade acabaram após encontrar profissionais capazes de lidar com a transgeneridade

O diagnóstico veio aos 11 e, dois anos depois, quando eu finalmente descobri o que era trans, compartilhei com os profissionais que me atendiam. Não senti segurança neles e vi uma confusão entre gênero e sexualidade.

O psiquiatra chegou a literalmente rir na cara da minha mãe. Disse que era tudo coisa da minha cabeça. Eu sabia que não, mas isso me travou por muito tempo, porque eu sempre era invalidada pelos profissionais de saúde, até o início da fase adulta. Até que finalmente encontrei uma psicóloga especializada em autismo que tinha conhecimento sobre transgeneridade e um psiquiatra com o trabalho voltado a à transição. Comecei um tratamento multidisciplinar, também com endocrinologista. Desde então não tive mais crises de agressividade e minha desregulação de humor praticamente sumiu. Estar plena com quem sou e como me expresso socialmente me possibilitou ficar menos irritadiça, depressiva e ansiosa.

Ser adulta e ter sido casada tiraram por muitos anos de foco a possibilidade da mãe de Sophia ser autista

– A sua mãe foi diagnosticada autista oito anos após o seu diagnóstico. Como foi o processo de cogitar que ela pudesse ser autista? Como a descoberta do diagnóstico dela influenciou a relação de vocês? O que se transformou?

Quando eu fui diagnosticada, já havia a suspeita de que minha mãe poderia ser autista. Mas, por ser adulta, ter sido casada e trabalhar, a gente não se aprofundou nessa possibilidade.

Tínhamos muitas frentes em relação a mim. Até que um psicólogo que eu tive aos 19 anos viu vários traços nela e indicou uma clínica multidisciplinar para o diagnóstico.

Quando saiu o laudo, após vários testes e entrevistas, ela estava com 53 anos. Nossa relação sempre foi muito amorosa, mas carregada de crises e atritos. Com o diagnóstico, a gente passou a perceber melhor os limites uma da outra e se respeita mais.

O autismo é um hiperfoco da minha mãe. Então, a gente está sempre refletindo juntas como podemos nos aprimorar com os desafios que surgem no dia a dia. Ela está longe de ser uma pessoa tão autônoma como pode parecer.

Sophia e a mãe sofreram ataques nas redes por tocar em assuntos sensíveis à comunidade

– Você e sua mãe têm juntas canais nas principais redes sociais. Quais são as principais dúvidas que vocês atendem? Quais são os principais desafios de se expor nas redes sociais e como você lida com eles?

As principais dúvidas que recebemos estão ligadas a questões do dia a dia dos autistas, características do TEA, além de direitos e diagnóstico em adultos.

Eu gosto do encontro com os internautas. Isso para mim é vida. Mas, às vezes, preciso dosar o que falar, para não deixar escapar nada pessoal que possa ser descontextualizado.

Eu e minha mãe já sofremos perseguição pela Internet (e até fora dela). Foi horrível e deixou sequelas. Hoje estou mais discreta, mas sem medo de me aprofundar em assuntos polêmicos, se for necessário. Não alimento mais comentários ofensivos e foco nos diversos retornos positivos que recebo diariamente.

Autoras trans brasileiras e veículo especializado em autismo são apontados como referência

– Que referências de leitura e influenciadores você recomendaria para quem está começando a se perceber trans?

As pesquisadoras Viviane Vergueiro e Letícia Nascimento me ajudaram bastante a refletir sobre conceitos que parecem elementares, mas são muito mais complexos do que se imagina. As duas são trans e brasileiras. E tem a Judith Butler, fundadora da Teoria Queer.

Que referências de leitura e influenciadores você recomendaria para quem está começando a entender o que é autismo?

Acredito que o Canal Autismo/Revista Autismo faz um excelente trabalho jornalístico sobre o autismo. Recomendo também, claro, o meu canal “Mundo Autista” no YouTube, que traz várias reflexões, vivências e estudos sobre o assunto.

Pesquisadora, Sophia discute autismo e transgeneridade em sua tese de mestrado na UFMG

– Você citaria referências específicas para autistas que estão começando a se entender como pessoas trans? Qual é a especificidade de quem vive essa convergência?

O Wenn B. Lawson é um pesquisador da psicologia e homem trans, com a transição iniciada na terceira idade. Ele tem uma bagagem muito rica. Também indico as pesquisadoras Eva Mendes e Meredith Maroney, que estão sempre fazendo pesquisas sobre sexualidade, identidade de gênero e autismo. Elas têm um interesse real em conhecer a narrativa e experiência das pessoas no espectro que são LGBTQIAP+.

Ainda esse ano, vou defender a minha dissertação de mestrado “A Interseccionalidade entre Autismo e Transgeneridade: Diálogos Afetivos no Twitter”, que será lançada em livro pelo Selo PPGCOM/UFMG. Acredito que possa dar uma visão maior do contexto brasileiro, além de compilar vários dados e reflexões que sirvam de referência sobre autismo, transgeneridade e a ligação entre ambos.

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