Camuflagem social x diagnóstico de TEA no público feminino

25/02/2022Diagnóstico0 Comentários

Comportamento, mais comum entre mulheres e meninas, leva o autista a atender expectativas em diferentes contextos sociais

Um conceito importante a ser abordado no contexto do espectro autista feminino é a camuflagem social. O termo se refere a um conjunto de estratégias desenvolvidas pelo próprio autista a fim de camuflar/mascarar comportamentos característicos do espectro autista, com o objetivo de se adaptar melhor e atender às expectativas dos mais diversos contextos sociais. 

Alguns exemplos de estratégias comumente utilizadas nesse sentido são: imitar expressões faciais da outra pessoa com quem se está conversando, de forma consciente ou não, forçar-se a fazer contato visual e parar de falar sobre um interesse, entre outras.

Capacidade de adaptação dificulta o diagnóstico de autismo

A camuflagem social merece atenção especialmente na adolescência – fase em que se aumentam as demandas sociais – e entre meninas. Apesar de ser adotada por ambos os sexos, o que se observa na prática clínica e em estudos é um predomínio em meninas e mulheres sem deficiência intelectual (TEA nível 1 de suporte). 

Isso porque o cérebro feminino – mais social, com maior capacidade para empatia e habilidades comunicativas – e os comportamentos socialmente esperados favorecem a camuflagem e, consequentemente, tornam mais difícil o diagnóstico de TEA no público feminino.

A cada quatro diagnóstico de autismo, apenas um é feminino

O conceito de camuflagem social no autismo começou a ser referenciado exatamente na tentativa de tentar entender a diferença no número de diagnósticos entre meninos e meninas, especialmente entre indivíduos sem deficiência intelectual. Atualmente, a cada menina, três garotos recebem o diagnóstico, segundo o CDC.

Em 1981, Lorna Wing levantou a hipótese de que algumas garotas autistas sem nenhuma deficiência podiam passar despercebidas nas avaliações clínicas e que isso poderia estar relacionado a mulheres que demonstravam melhores habilidades sociais e de comunicação em comparação aos homens.

Formas de camuflagem são três: compensação, mascaramento e assimilação 

Tipos de camuflagem social

A camuflagem social pode se apresentar de três maneiras: 

– compensação – copiar comportamentos e falas e criar um roteiro de uma possível interação social etc.);

– mascaramento – monitoramento das próprias expressões corporais e faciais, a fim de não demonstrar que a interação social está exigindo um esforço desgastante) e

– assimilação – atuação em determinado contexto social, por meio de estratégias, comportamentos e até mesmo de outras pessoas, para passar a impressão de que a interação social está sendo feita). 

Camuflagem tem custo para o autista: exaustão emocional e física 

É importante reforçar que a camuflagem social contempla tanto o uso de técnicas conscientes como inconscientes. De toda maneira, no contexto do TEA, exige um esforço cognitivo considerável para mascarar, assimilar ou compensar esses comportamentos do espectro autista.

O comportamento gera constantemente exaustão emocional e física, exigindo muitas vezes que o indivíduo com TEA tenha um tempo sozinho para se recuperar após situações sociais que demandaram a camuflagem. 

Muitas mulheres autistas relatam que, após se esforçarem para camuflar características autistas, apresentam crises emocionais devido à percepção de situações sociais como “perturbadoras”.

Como reflexo da exaustão, diagnóstico de autismo é recebido já com comorbidades

Essa exaustão que se dá repetidas vezes impacta frequentemente em sofrimento psíquico. Na prática clínica, observamos que não são raros os casos de meninas adolescentes que se apresentam com quadros de ansiedade, depressão e/ou estresse, por exemplo. Quando se submetem a uma avaliação especializada, recebem o diagnóstico de TEA já com comorbidades.

É interessante observar que o conceito de camuflagem social parece essencialmente carregar um paradoxo. Ao mesmo tempo em que se configura como uma ferramenta adaptativa, para que uma pessoa com TEA consiga se integrar melhor a grupos sociais não autistas, a camuflagem tende a levar a experiências extremamente negativas de ansiedade, estresse, depressão, baixa autoestima, exaustão emocional, pensamentos suicidas e burnout . 

Com níveis mais baixos de saúde mental, a socialização é prejudicada nas diferentes esferas de interação social, como no ambiente familiar, educacional, laboral e social.

A camuflagem social, sendo um fenômeno aparentemente pouco conhecido por profissionais de saúde, pode relacionar-se a uma menor frequência de diagnósticos de TEA e a um número maior de diagnósticos errôneos, como transtorno de ansiedade, transtornos de alimentação e atrasos na linguagem.

A camuflagem social é utilizada exclusivamente por indivíduos com TEA?

A camuflagem social é também uma estratégia utilizada por neurotípicos em algumas situações, ou seja, não é utilizada exclusivamente por autistas.

Toda e qualquer pessoa se comporta de diferentes maneiras em situações sociais distintas. É natural do ser humano querer ser aceito pelos pares, pertencer a grupos sociais, se relacionar na escola, no trabalho e em outros contextos. Para isso, ele se adapta a regras e convenções sociais e refina seu repertório de habilidades sociais ao longo de toda a vida. 

Para um autista, porém, copiar comportamentos, usar de estratégias como gestos e expressões, alterar e monitorar entonação de voz, modo de se vestir e se apresentar, forçar um contato visual mais prolongado, criar roteiros de interação e assuntos que não são do interesse, entre outras estratégias, exigem grande esforço e podem ser muito desgastantes. Nesse sentido, pode-se dizer que a camuflagem no autismo significa se apresentar diferente de quem é.

É necessário que profissionais de saúde tenham conhecimento da possibilidade de camuflagem 

Sendo a camuflagem social uma parte relativamente comum das experiências cotidianas de indivíduos autistas sem deficiência intelectual, especialmente entre meninas e mulheres, essa passa a ser uma consideração importante em ambientes clínicos e de pesquisa. 

Os médicos e outros profissionais devem estar cientes da possibilidade de camuflagem durante suas avaliações, bem como da forte associação entre TEA e impactos negativos na saúde mental.

Ter conhecimento sobre esse conceito é, portanto, essencial para lançar um olhar ainda mais atento e integral às meninas e mulheres com autismo e, inclusive, àquelas que ainda não receberam seu diagnóstico de TEA, mas apresentam dificuldades expressivas nas situações sociais, além de quadros relacionados a sofrimento psíquico.

O diagnóstico correto de TEA leva a maioria das mulheres com autismo a abandonar a camuflagem, diminuindo o sentimento de não pertencimento, estresse e fadiga social entre elas, contribuindo significativamente para uma melhor qualidade de vida.

Deborah Kerches

Deborah Kerches

Neuropediatra especialista em TEA, autora do best-seller Compreender e Acolher Transtorno do Espectro Autista na Infância e Adolescência, conselheira profissional da Reunida (Rede unificada nacional e internacional em defesa das pessoas com autismo), coordenadora e professora de pós-graduações do CBI of Miami e madrinha do projeto social Capacitar para Cuidar em Angola. Produz conteúdos sobre TEA, neurologia e saúde mental infantojuvenil no perfil @dradeborahkerches

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