Polyana Sá: autismo e interseccionalidades

30/03/2022TEA no Dia a Dia0 Comentários

Mulher, negra e pansexual, influenciadora põe em debate a quebra de estereótipos e a luta anti-racista na comunidade autista

A multiplicidade do espectro autista vai além das manifestações do transtorno em si, mas abrange diferentes realidades vivenciadas de acordo com a raça, a classe, o gênero e a sexualidade de cada um. Quando se fala de interseccionalidade, são abordadas as diferentes maneiras com que estas questões se cruzam e afetam a vida de alguém.

A vivência de um homem autista, por exemplo, é diferente da de uma mulher – a começar pela obtenção de diagnóstico, menos comum para elas. A vivência de uma pessoa autista cis é diferente da de uma trans, a de uma pessoa autista hétero difere da de uma lésbica, e por aí vai.

A interseccionalidade é o pano de fundo de boa parte das discussões levantadas por Polyana Sá, ativista e influenciadora, criadora do perfil Hey Autista, que desde 15 de julho de 2020 conquistou 17 mil seguidores no Instagram. Polyana tem 21 anos e se define como uma mulher autista negra pansexual periférica.

“Por ser uma pessoa preta eu tenho uma vivência, por ser uma mulher eu tenho uma vivência, por ser uma pessoa com deficiência eu tenho uma vivência, por ser panssexual eu também tenho uma vivência, e o que as pessoas não vêem na maioria das vezes é que eu vivo todas as minhas interseccionalidades em conjunto”, conta.

Romper estereótipos significa também ampliar a visão do autista para além do diagnóstico

O fato de pertencer a um grupo que já enfrenta preconceito, como o dos autistas, não diminui a estigmatizaçao de outras características dentro da própria comunidade, diz Polyana. “As pessoas se atêm ao estereótipo do homem autista branco que possui AH/SD (Altas Habilidades/Superdotação) ou TDI (Transtorno de Deficiência Intelectual). Tudo o que foge desse padrão é esquecido, estigmatizado, é apartado.”

Um outro ponto ao qual chama atenção é que os autistas não se resumem ao diagnóstico. “Além de ser autista e de possuir hiperfoco em autismo, eu também sou uma jovem que ama cantar, tocar ukulele, ler, estudar, jogar com os meus amigos, tenho meu próprio podcast sobre ciência. Viu como uma pessoa só pode ter um infinito inteiro dentro de si? Nunca se esqueça disso quando for conversar com um autista!”, diz uma de suas publicações.

A voz de Polyana hoje chega longe. Após a criação do canal, participou de eventos nacionais e internacionais, passou a atuar como palestrante e conceder entrevista para a imprensa. “Isso serve para dizer aos outros que ser quem eu sou e chegar onde eu cheguei é possível sim, e também para empoderar a pessoas que assim como eu, no início da caminhada, tem medo ou vergonha e não sabem por onde ir.” Confira abaixo, na íntegra, a entrevista para o Autismo e Realidade.

“Minha maior revolução foi a criação do Hey Autista”, diz Polyana

 – Em um post no seu perfil pessoal, o @justpadawan, você comemora seu aniversário de 20 anos dizendo que desde 2001 vem causando “incômodos, estragos e revoluções”. Que incômodos, estragos e revoluções você destacaria em relação ao seu ativismo autista nestes, agora, 21 anos? E quais os planos para os próximos anos?

É difícil relembrar com certeza os estragos e revoluções que causei nos últimos anos, até porque não os considerava como tal. Mas de modo geral, a minha maior revolução foi a criação do Hey Autista e tudo o que se sucedeu a partir daí. Foram participações em eventos internacionais, palestras em diversos lugares, entrevistas para veículos de imprensa, etc. Essas são as revoluções de que me orgulho.

– O que a comunidade autista ainda precisa aprender sobre racismo? As dificuldades de compreensão da comunidade autista sobre racismo são as mesmas da sociedade como um todo?

Tudo. A comunidade autista é um reflexo da comunidade como um todo que nós temos, e assim como a nossa sociedade brasileira, ela é extremamente racista. As pessoas se atêm ao estereótipo do homem autista branco que possui AH/SD ou TDI. Tudo o que foge desse padrão é esquecido, estigmatizado, é apartado. As pessoas não somente não se dão o trabalho de conhecer a respeito da luta anti-racista dentro da comunidade autista, como também sequer sabem que existem autistas pretos. Esse é um debate que precisa ser muito fomentado, muito discutido, porque afeta a vida de muitas pessoas de uma maneira muito negativa.

“O que as pessoas não vêem na maioria das vezes é que eu vivo todas as minhas interseccionalidades em conjunto”

– Em um post em que você se questiona o que você representa, você se coloca como uma mulher autista negra LGBTQIA+ periférica. E você afirma: “Ocupar o lugar que eu ocupo significa muita coisa, muita coisa mesmo!” Pode nos contar um pouco do que isso significa?

Fazer parte de grupos estigmatizados e ter uma interseccionalidade entre eles significa muita coisa. Por ser uma pessoa preta eu tenho uma vivência, por ser uma mulher eu tenho uma vivência, por ser uma pessoa com deficiência eu tenho uma vivência, por ser panssexual eu também tenho uma vivência, e o que as pessoas não vêem na maioria das vezes é que eu vivo todas as minhas interseccionalidades em conjunto. Então tudo que eu senti, interpretei e comentei até hoje a respeito do que eu sou, vai de direto encontro às minhas interseccionalidades.

Por isso é tão importante reconhecer os lugares que eu atingi, as pessoas que eu alcancei, todo o impacto que eu criei. Isso serve para dizer aos outros que ser quem eu sou e chegar onde eu cheguei é possível sim, e também para empoderar a pessoas que assim como eu, no início da caminhada, tem medo ou vergonha e não sabem por onde ir.

– Que grupos ainda costumam ser deixados de lado quando falamos de interseccionalidade no autismo?

A comunidade preta, a comunidade indígena, mulheres, a comunidade LGBTQIA+, pessoas com outras condições concomitantes. São vários grupos.

“Se alguém te apontar como racista, você abaixa sua cabeça e escuta, aprende”, afirma Polyana

– Como você percebe concretamente na sua rotina essa intersecção de capacitismo e racismo? Como essa discriminação acontece na prática? O que ainda é necessário compreender para que pessoas autistas negras possam viver melhor?

Eu vivo a interseccionalidade entre o autismo e o racismo desde o momento em que eu nasci. Então essa experiência vai de não conseguir frequentar determinados lugares, receber olhares estranhos, ser tratada de uma maneira diferente, até mesmo ser agredida.

Na prática, a discriminação é algo muito sutil, que se disfarça de opinião e de “costumes de uma típica família tradicional brasileira”. Eu vejo como se fosse uma espécie de peça teatral, em que os mesmos atores interpretam os mesmos personagens desde 1500. Para acabar com o racismo e com a discriminação, nada é mais imprescindível do que escutar pessoas pretas, não ocupar nosso lugar de fala. Se alguém te apontar como racista, você abaixa sua cabeça e escuta, aprende. Devemos fomentar mais discursos sobre nós, feitos por nós.

– Você percebe que há alguma resistência em enxergar a soceidade autista em sua pluralidade? Se percebe, a que atribui essa resistência? E o que mudaria sem essa resistência?

Sim, essa é uma falha muito perceptível. Eu acredito que essa resistência em reconhecer as pluralidades se deve justamente ao fato das pessoas estarem presas ao estereótipo do que é uma pessoa autista e se restringirem somente a isso. Para tornar a comunidade autista mais plural nós necessitamos da pluralidade, então se fale mais a respeito da diversidade existente dentro do espectro autista e não somente do padrão já conhecido.

– Você faz parte da Abraça, a Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas. O que te levou a se tornar um membro da associação? O que muda quando você se torna parte de um grupo oficialmente constituído na luta por direitos dos autistas?

Eu recebi o convite para participar da abraça a partir da Luciana Viegas, a quem sou muito grata, que estava no projeto de encontrar autistas pretos pelas redes sociais e reunir esse povo num lugar só. Fazer parte de um grupo que luta pelos direitos das pessoas autistas e é reconhecido por isso, me dá muito mais facilidade e abertura para chegar em lugares que sozinha eu provavelmente não chegaria. As possibilidades de instituição de políticas públicas são muito maiores, a nossa voz se torna mais forte, o nosso discurso se torna mais conciso.

– Que dicas de filmes, séries de TV, desenhos animados, livros, perfis no Instagram você daria para quem que entender melhor o autismo e suas interseccionalidades?

Recomendo a série Atypical, que apesar de estar dentro do estereótipo, aborda o autismo de uma forma muito contundente. Recomendo também o documentário Stimmados Autistas, que eu tive a honra de participar, e foi produzido e estrelado por pessoas autista. Para se conhecer mais sobre o autismo aqui no Instagram eu recomendo as páginas @lucas_atipico, @carolsouza_autistando, @a_menina_neurodiversa, @blackautie, @atipicapreta, @filhedaseca, @viagematipica, @umamaepretaautistafalando

 

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