Adriana Zink: Encantadora de Autistas

6/05/2022TEA no Dia a Dia0 Comentários

Dentista decidiu ir além dos escassos protocolos odontológicos e pesquisar novas abordagens de atendimento para pacientes autistas

Como posso me comunicar com um paciente autista? A questão moveu a dentista Adriana Zink, que desde 2009 leva o apelido de “encantadora de autistas”. Especializada no atendimento de pessoas com necessidades especiais, ela conta em sua palestra no TEDxJardinsSalon como transformou o seu dia a dia para o acolhimento desse público, que representa uma grande parcela de seus pacientes.

A busca por novas formas de comunicação veio do desconforto em usar uma técnica indicada nos protocolos de odontologia: a contenção física. “A contenção física pode ser desde um abraço dos pais até mesmo artifícios como faixas de velcro. A contenção não é contra indicada no tratamento odontológico, ela tem indicação sim”, explica a dentista.

Nos poucos artigos que encontrou sobre tratamento odontológico de autistas, a contenção era o procedimento mais recomendado para pacientes com maior necessidade de suporte, conhecido também como autista de grau 3 ou de baixo funcionamento. “A maioria dos pacientes que eu atendia, tinha que usar a contenção física. Não era isso que eu queria”, conta.

Cultivar hábitos de higiene bucal pode ser um enorme desafio para autistas

Se os momentos diários de escovação dos dentes podem ser muito difíceis para autistas e seus familiares, a visita ao dentista também. Os estímulos sensoriais se dirigem a uma parte já bastante sensível do corpo.

Há maneiras de adaptar as crianças à rotina de higiene bucal usando o método ABA e materiais de apoio como a cartilha lançada neste ano pelo projeto Autismo e Realidade.

Se a recusa é constante no ambiente doméstico, no dentista, onde os barulhos de motores costumam causar arrepios em pessoas típicas, a situação fica ainda mais delicada. Adriana decidiu ir a fundo atrás de técnicas que fizessem seus pacientes autistas se sentirem mais confortáveis.

“Fui pesquisar em outras áreas que não da odontologia. Falei ‘não’, não é assim que eu quero. Quero tentar melhorar isso”, diz Adriana. A partir das pesquisas, ela começou a utilizar técnicas de abordagem lúdica.

Após pesquisar outras áreas da saúde, Adriana passou a usar o PECS para se comunicar com os pacientes

Um dos primeiros aprendizados de Adriana foi a necessidade de individualização do tratamento. “O dentista, naquela correria do dia, percebe que não tem muito tempo para se dedicar àquele paciente, e eu percebi que eu tinha que individualizar cada atendimento, que cada um era único”, conta. A dentista então passou a solicitar informações específicas de cada paciente e preparar a sessão especialmente para cada um deles.

Outro elemento essencial era investir tempo, conquistando o contato visual, algo deixado de lado no dia a dia dos consultórios. “A gente põe na cadeira, e é o próximo, é o próximo, é o próximo, e a gente não individualiza.”

Ao pesquisar as técnicas da fonoaudiologia e da psicologia, Adriana começou a adotar o PECS (Sistema de Comunicação por Troca de Imagens). “Tenho que buscar uma comunicação com esse paciente, adaptei para que ele entendesse o que vai ter para hoje, o que vai ser feito nele naquele consultório. A gente vai tentar se comunicar e apresentar o tratamento.”

Focar nos interesses restritos dos autistas ajuda a conquistar a atenção e manter a comunicação

Adriana exemplifica sua rotina com o caso de um paciente autista chamado Idris, que atendeu em uma clínica escola onde dava aula. Na época, ele ainda era uma criança bem agitada. Dois alunos foram buscá-lo para atendimento e voltaram sem o paciente. “Professora não, esse não. Não quero esse, não. Porque ele está grudando nas paredes, ele não quer entrar, está batendo em tudo, está quebrando tudo”, disseram os alunos.

Ela foi à recepção conhecer a mãe do garoto e conhecer mais sobre ele. A mãe contou que ele gostava muito de trens e Adriana mostrou a ele todas as figuras que ilustravam as fases da consulta. Ela também antecipou ao garoto tudo que aconteceria na sessão. Na consulta seguinte, Adriana levou de casa um trem que era do filho dela. “Fiquei andando na recepção da clínica puxando esse trem de um lado para o outro, e o Idris seguiu. Ele entrou espontaneamente na clínica.”

Vencida a primeira barreira, veio um novo desafio: lidar com “dentistas fantasiados de dentistas”, conta Adriana. “É aquela coisa que ninguém gosta de encontrar. Estava todo mundo de luva, máscara, óculos e vestido de branco. Naquele momento, ele já se jogou no chão e começou a balançar o tronco. Novamente, a comunicação estava muito difícil. Então, tive que sentar no chão, conversar com ele e tentar voltar a manter um foco de comunicação”, detalha.

Idris foi apresentado à cadeira do dentista brincando de sentar e escorregar

“Aos poucos, ele foi aceitando a manipulação da boca, o toque, foi conhecendo a luva, a máscara, os óculos e nós fomos montando um dentista para ele. Hoje ele consegue ser atendido”, conta Adriana, exibindo uma foto sua tratando o pequeno paciente. Não à toa, ela é a única a dentista que já recebeu o prêmio Orgulho Autista Brasil. “Tenho muito orgulho desse prêmio.”

Para fazer com que Idris se adaptasse à cadeira do dentista, a solução encontrada foi brincar de sentar e escorregar. “Ele conheceu a cadeira, embora o atendimento dele ainda seja no chão, ao lado da cadeira, que é onde ele sente mais conforto. Mas para mim, não importa atender no chão, no sofá, na cama, onde for. O que importa é proporcionar saúde bucal para essa pessoa.”

Atendimento lúdico também pode ser adaptado a pacientes adultos com deficiência

A parte lúdica do atendimento é explorada na odontopediatria, mas Adriana afirma que é possível aplicá-la no atendimento de adultos com necessidades especiais. “É assim que tenho feito todos esses anos.”

Em sua pesquisa de mestrado, Adriana adaptou o PECS para a odontologia. ”Tenho toda uma parafernália no consultório de adaptação de material estruturado para isso”. A questão é que Adriana se deparou com outros profissionais que consideram dispendioso o tempo investido nessa preparação. “Só que quando eu vou tentar convencer o meu colega dentista a atender um paciente no espectro do autismo ele fala ‘mas eu vou perder tempo em fazer tudo isso?’”.

Adriana então, dedicou seu doutorado a adaptar o material para um programa de computador voltado não só a profissionais mas também a familiares e cuidadores de autistas. O trabalhou deu origem ao aplicativo Vamos ao dentista?, disponível na AppsStore. O objetivo é, em casa, antecipar o processo, facilitando o atendimento, e, no consultório, melhorar a comunicação do dentista com o paciente autista.

Adriana alerta para a necessidade de contato precoce com o ambiente do consultório odontológico

Também está entre as metas de Adriana a possibilidade de que os autistas sejam levados mais precocemente aos consultórios. “Sou uma militante na causa do autismo, embora não tenha ninguém no espectro do autismo na minha família.”

Ela afirma que costuma enfrentar dois grandes problemas em suas palestras. “Tenho que convencer as mães de que nós dentistas não somos nenhum monstro”, diz a dentista apontando o primeiro problema.

O segundo é que “a prevenção tem que começar cedo”. Um dos riscos de não levar as crianças autistas a fazerem prevenção é acabar tendo que submetê-las ao protocolo da contenção física – que Adriana lutou tanto para tentar evitar. “Nós vamos ter que chegar à contenção ou ter que enviar para anestesia geral”.

Adriana relata caso grave em que a contenção foi necessária, mas descartada assim que possível

Para ilustrar a importância do tratamento precoce, evitando a contenção, ela dá um exemplo que viveu em seu consultório, com um paciente autista de 16 anos.

“Ele estava com muita dor, quebrando tudo, batendo a cabeça na parede. Veio com um hematoma no rosto, de tanto que ele se batia. Tentamos uma internação no serviço público, mas não conseguimos. A mãe não conseguia pagar nada particular. Ele ficou três meses com dor porque ela não aceitava usar essa contenção física e eu não tinha condições de fazer o procedimento sem conter.”

Após três meses, ela pediu que a mãe permitisse o uso da contenção. “Só que para colocar a contenção física também têm formas lúdicas. Por mais que seja estranho falar isso, há formas de colocar. Vamos conversando, e anestesiamos”. Neste caso, Adriana contou com a ajuda do marido, o cirurgião bucomaxilofacial Marcelo Pinho. O dente do paciente foi extraído.

Assim que terminou, soltaram o garoto. “Ele pulou da cadeira. Ele não fala, mas ele gritou, abraçou e beijou o Marcelo. O Marcelo chorou, todo mundo chorou. Ele estava anestesiado e a dor de tantos meses havia passado.”

Ida frequente e precoce ao dentista previne danos à saúde bucal e uso de contenção física

Na semana seguinte ele tinha mais um dente para tirar. Novamente, a contenção seria usada. O procedimento foi o mesmo para a nova extração. “Porque ele já sabia que não tinha sofrido”, diz Adriana. Nas consultas seguintes, não houve contenção. “Ele fica super tranquilo e aceita. Aprendeu que o tratamento odontológico era necessário, que ele precisava naquele momento e que ficou livre da dor.”

No entanto, se ele tivesse ido antes ao dentista, talvez a prevenção com abordagem lúdica na infância, entre 2 e 4 anos de idade, não teria uma cárie tão extensa, levando à perda do dente (e também não passaria pela contenção). Porém, a dentista não descarta o uso do protocolo e reconhece sua importância nos casos em que se mostra necessária. “A contenção não tem um ar tão ruim para gente, ela serve de condicionamento no caso que precisa também.”

Pequenos detalhes do consultório podem romper o vínculo com o paciente

O tratamento de pacientes autistas, conta Adriana, é sempre uma tentativa, nunca uma certeza. “Para nenhuma mãe (…) nunca falei ‘eu vou tratar’, ‘eu vou conseguir’. Eu sempre falo ‘eu vou tentar’. Porque, primeiro, eu preciso ver se ele vai gostar daquele consultório, se ele vai me aceitar como dentista e se ele vai aceitar o tratamento lá.”

Detalhes do consultório podem fazer com o que o paciente não se sinta bem. “Às vezes, um cheiro, uma cor, alguma coisa acaba com o vínculo. E, às vezes, o dentista que tem na esquina da casa dele, que não é especialista, que não têm curso, não tem nada, cria algum vínculo e é lá que o negócio vai acontecer”, conta. Para os colegas da odontologia, recomenda: “é brincando que se atende”.

Adriana, inclusive, critica o apelido de encantadora de autista. “É mentira. Realmente, eles é que me encantam”, afirma. “Eu não trocaria a vida que eu levo atendendo pacientes autistas todos os dias para me dedicar a crianças típicas birrentas que tem por aí.”

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