Um breve olhar sobre a maternidade na história do autismo
De “mães-geladeira” a criadoras de conceitos que revolucionaram o olhar sobre os autistas
Se o autismo é hoje considerado um espectro, é principalmente graças aos esforços de uma mãe. A psiquiatra inglesa Lorna Wing consolidou o conceito ao longo das décadas de 1980 e 1990 com o apoio de uma grande comunidade de pais.
Após uma série de pesquisas, iniciadas em 1972, no porão de um hospital psiquiátrico, ela concluiu que o autismo se apresentava com uma flexibilidade e uma variabilidade até então jamais imaginada. Para Wing, o autismo se manifestava em infinitas intensidades.
Para chegar a essa conclusão, ela investigou todos os registros de pessoas que já haviam passado pelo hospital com qualquer sinal de autismo, independente do grau, e visitou todas as famílias em questão – foram, ao todo, 132. “Sem dúvida, sua percepção era influenciada pela experiência direta de criar uma filha com autismo”, afirma o livro Outra Sintonia: a História do Autismo, dos jornalistas John Dovan e Caren Zucker, publicado no Brasil pela Companhia das Letras.
Ao contrário de outros pesquisadores renomados da época, a experiência como mãe da menina Susie, dizem os autores, deu a Wing “consciência das consequências, nas famílias, de um sistema de rotulação que não levava em conta a sua necessidade de ajuda”.
Pesquisa de Wing revolucionou a forma de encarar o autismo e define o entendimento atual do transtorno
Após o estudo, Wing revisou seu manual, que se chamava Autistic Children (Crianças Autistas). O nome passou a ser The Autistic Espectrum (O Espectro Autista). “Na vasta comunidade ligada ao autismo, o título desse livro, mais que qualquer outra coisa, tornou a expressão conhecida”, contam os jornalistas. A visão dela revolucionou a forma de enxergar e lidar com os autistas.
Se Wing recebeu apoio e contava com a popularidade de uma comunidade sólida, também não foi por acaso. As famílias autistas há anos haviam se unido para se mobilizar contra um rótulo que jogava, justamente nas mães, a culpa pelo autismo de seus filhos: a teoria da “mãe geladeira”.
Desenvolvida pelo psiquiatra Leo Kanner na década de 1940, a teoria da “mãe geladeira” ganhou projeção ao chegar à Time, em 1948. A mais prestigiada revista dos Estados Unidos publicou uma matéria com o título Medicine: Frosted Children (Medicina: Crianças Congeladas, disponível online em inglês).
Teoria da culpa materna chegou ao ápice com Bruno Bettelheim, que não era médico ou psicólogo
O texto, baseado em uma entrevista com Kanner, explicava seu conceito. O psiquiatra acreditava que, tanto mães quanto pais de autistas, eram “perfeccionistas frios” que mantinham uma “mecanização das relações humanas”, e que suas crianças eram “mantidas ordenadamente em uma geladeira que não descongelava”.
Com o passar dos anos, no entanto, a responsabilidade foi se concentrando nas mães e ganhando cada vez mais respaldo dos profissionais de psiquiatria. Um dos assistentes de Kanner, registra “Outra Sintonia”, afirmou que “quando ele cunhou a expressão “mãe geladeira”, sua visão do autismo ficou mais na moda”. Para se ter uma ideia, a própria Lorna Wing foi encaminhada à psicanálise quando a filha dela foi diagnosticada, aos 3 anos, em 1959.
Mas a culpa materna chegou mesmo ao seu ápice com o austríaco Bruno Bettelheim que, apesar da enorme popularidade, não era formado em medicina ou psicologia, mas doutor em história da arte. As palavras de Bettelheim se popularizaram especialmente após uma entrevista dele em 1971. O livro conta que, na ocasião, a fala dele estimulou o entendimento de que “quando as crianças tinham autismo, era porque suas mães as queriam mortas.”
Até Kanner voltou atrás na teoria das “mães geladeira” e as ideias de Bettelheim foram perdendo espaço
Quando a popularidade de Bettelheim chegou ao auge, Leo Kanner já havia mudado de opinião e passou a refutar a hipótese da “mãe geladeira”. Em um evento, chegou a anunciar a absolvição da culpa dos pais.
A ideia foi perdendo força também a partir da mobilização de mães que, em pleno baby boom (a explosão demográfica dos anos 1960 e 1970) formavam com seus maridos famílias numerosas, com apenas um filho autista. As mulheres questionavam como poderia, então, uma mesma mãe supostamente “geladeira” ter outros filhos típicos.
A publicação de estudos, somada à mobilização dos pais, e às novas formas de enxergar o autismo foram descredibilizando a teoria de Bettelheim, que morreu em 1990. No final da mesma década, uma outra mãe de autista desenvolveu um outro conceito que, mais uma vez, revolucionou a forma de pensar o autismo. Em 1998, a socióloga australiana Judy Singer usou pela primeira vez o termo neurodiversidade.
Comportamento da filha levou Singer a pesquisar o autismo e desenvolver o conceito de neurodiversidade
Judy Singer começou suas pesquisas sobre autismo para tentar entender o comportamento da filha. Não só começou a suspeitar que a menina fosse autista, mas também passou a compreender a mãe, que sempre se comportou de uma maneira que a incomodava. “Por que ela não pode agir normalmente uma vez na vida?”, reclamava Singer.
Não levou muito tempo, no entanto, para que a pesquisadora entendesse que ela mesma é, também, autista.
Os estudos de Singer tiveram grande influência do conceito de espectro desenvolvido por Lorna Wing. Se Wing considerava a flexibilidade, a variabilidade e as infinitas intensidades de manifestação do autismo, que impedem que ele seja entendido em uma gradação linear, Singer propõe que toda e cada uma das variações neurológicas humanas possam ser entendidas como únicas e parte de um conjunto neurodiverso.
Singer faz um paralelo com a natureza e o conceito de biodiversidade, que abrange todos os animais, plantas e microorganismos que habitam o planeta. Ninguém diz, por exemplo, que a onça é um mamífero e que o mosquito é biodiverso. Todos fazem parte da biodiversidade, assim como todos os humanos e formações neurológicas humanas compõem a neurodiversidade.
Neurodiversidade enterra a ideia de autismo como doença ou alvo de cura, mas o enxerga como uma condição inerente à existencia da pessoa
O conceito desenvolvido por Singer traz uma compreensão do autismo como uma característica inerente à pessoa, refutando a ideia de que o transtorno seja uma doença passível de cura. Para Singer, o autismo nada mais é que mais uma das infinitas variações neurológicas naturais dos seres humanos. Na visão dela, típicos e atípicos são, todos, neurodiversos.
O conceito de Singer ajuda também a recusar a ideia de autistas como pessoas especiais. São apenas parte da imensa diversidade neurológica humana. Ainda hoje, muitas famílias lutam para que seus filhos possam ser vistos dessa forma. Não só como parte da neurodiversidade, assim como um neurotípico, como também um cidadão de direitos.
Uma das leis que garante os direitos dos autistas no Brasil leva o nome de uma mãe de autista, Berenice Piana. A lei nº 12.764, de 27 de dezembro de 2012 definiu o Transtorno do Espectro Autista (TEA) como uma deficiência e ampliou, oficialmente, para os autistas todos os direitos estabelecidos para as pessoas com deficiência no país.
Mães de autistas lutam pelos direitos dos filhos; mães autistas ainda buscam diagnóstico
É muito comum, no entanto, que as famílias de autistas, precisem brigar na Justiça para terem seus direitos garantidos. E o peso da luta por esses direitos costumam – assim como o peso da teoria da geladeira – recair sobre as mães.
Elas costumam, por exemplo, receber o rótulo de guerreiras, por lidarem com a sobrecarga de atividades e cuidados e a falta de suporte social, emocional e de estrutura de transporte e de saúde, etc. Uma das formas de apoiar as mães atípicas é justamente não fazer esse falso elogio, conta Amabile Marchi, mãe de dois meninos autistas (Leonardo e Vicente) e criadora do Autismo ao Pé da Letra.
A popularização do acesso ao diagnóstico também seria de enorme valor para as mães que são autistas, como conta a personal trainner Priscila Peres. A relação dela com a maternidade mudou depois que a lista de diagnósticos de transtornos mentais que acumulou ao longo de 35 anos convergiu em apenas um: autismo.
“Hoje eu tenho um diagnóstico digno que me permite receber apoio, informações, muito amor e compreensão. Hoje posso dizer que crio meus bebês com a alma leve sendo quem eu realmente sou”, conta.
Redes sociais ampliaram o alcance das mães e as conexões entre elas
Se no século 20 as mães se mobilizaram para lutar contra o rótulo de geladeira, hoje atuam nas redes sociais promovendo a conscientização do autismo e suas interseccionalidades. A ativista antirracista e pedagoga Lu Viegas é autista autodiagnosticada e mãe de um autista não verbal. Para ela, uma grande preocupação é treinar o filho Luiz, negro como ela, a reagir a uma abordagem policial.
Entre os nomes mais conhecidos estão Andrea Werner, mãe de Théo e criadora do Instituto Lagarta Vira Pupa, e Fátima de Kwant, mãe de Edinho, escritora e influenciadora.
Mirza Lopes, mãe da Malu e criadora do perfil Mãepeuta do Acre, formou um grupo de WhatsApp que reúne dezenas de mães de todo o Brasil que trocam experiências cotidianas e mensagens de fortalecimento diariamente. Daiana Camilo divide suas experiências no Mundo da Manu em que conta as peripécias da filha e divide angústias do dia a dia.
Fora do mundo digital, mas personagem histórica na luta pelos direitos dos autistas, Marisa Fúria, mãe de Renato, é uma das fundadoras da primeira instituição dedicada a apoiar famílias autistas no Brasil e na América Latina, a AMA-SP. Sem meias palavras, Marisa é categorica ao dizer que os autistas não estão isolados em um mundo próprio. “Estão coisa nenhuma. Estão no nosso mundo, participam do nosso mundo”, afirma, resumindo a luta das mães de autistas para que os filhos sejam, enfim, incluídos de forma plena no mundo em que habitam.
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