Sophie Lavander: o autismo me salvou
Fotógrafa e humorista conta como as características do autismo a fizeram sobreviver a traumas de uma série de abusos
A força emocional, a resiliência e o pensamento independente são características que a fotógrafa e humorista Sophie Lavender passou a reconhecer em si mesma após o contato com outras pessoas autistas e a levaram a seguir em frente após sobreviver a uma série de abusos que quase provocaram sua morte. Sophie contou sua história no TEDxYouth@BrayfordPool, na Inglaterra, em 2019.
“Quando me tornei adulta, realmente descobri a força que vem de estar no espectro autista. Podemos ser indivíduos verdadeiramente destemidos, resilientes, que amamos tudo às claras e podemos ser pensadores independentes e ouvintes sem julgamentos”, afirma Sophie, que também é diagnosticada com TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade).
Mitos em torno do autismo criam a ideia de alguém possa parecer autista, algo impossível
Mas a força emocional, a resiliência e a independência de pensamento citadas por Sophie não são as primeiras que vêm à mente de pessoas típicas quando elas pensam em como é uma pessoa autista. “Quando eu falo sobre autismo e TDAH, há muitos estereótipos negativos sobre pessoas como eu. Quando eu digo a alguém que sou autista, eles geralmente dizem: ‘Mas você nem parece autista’. Bem, nem todos nós parecemos o Sheldon Cooper, alguns de nós somos ruivos”, ironiza Sophie.
Entre a série de estereótipos ligadas ao autismo está a característica de genialidade, característica do personagem Raymond, de Rain Man. O comportamento de Raymond dominou por muitos anos o imaginário em torno do que é ser autista. Pessoas como o personagem existem, mas não resumem o que é ser autista. Raymond tem uma comorbidade chamada Síndrome de Savant, que é justamente o que lhe confere a genialidade. Mas nem todos os autistas possuem essa síndrome. Há uma gama imensa de outras comorbidades que aparecem no autismo.
“Há muita conversa negativa sobre autismo como um estereótipo problemático, e a mídia gosta de colocar todos nós na mesma caixa, onde você é um autista branco, heterossexual, masculino e gênio da matemática, mas esse não é o caso”, explica Sophie.
Um outro ponto é que os autistas não possuem características físicas identificáveis como acontece, por exemplo, com pessoas com Síndrome de Down. Quando se diz que o autismo é um espectro, é justamente porque ele aparece com intensidades e variações infinitas. O professor Stephen Shore, que está no espectro, costuma dizer que se você conhece um autista, você conhece um autista. O transtorno se manifesta de forma única em cada pessoa, por isso não é possível esperar que alguém possa parecer autista.
Um dos mitos mais absurdos em torno do autismo é a hipótese de cura com uso de alvejante
Além disso, há outros mitos em torno do autismo, conta Sophie. Um deles é que o transtorno pode ser causado por vacinas. A hipótese foi defendida ao longo de muitos anos por um médico britânico que se provou um charlatão e teve o registro cassado.
Também há a lenda de que o autismo pode ser curado com alvejante, o que é ainda mais problemático. Primeiro, porque o autismo não é uma doença – portanto, não tem cura. O autismo é uma condição inerente às pessoas e que as torna parte da neurodiversidade humana. A hipótese de que curar algo que não tem cura com um produto como alvejante torna a ideia ainda mais absurda. “Se você quiser dar alvejante ao seu filho, por que você não tenta um pouco? Quero dizer, se é bom para eles, é bom para você, certo?”, diz Sophie, em tom de chacota.
Há ainda uma séries de outras lendas, como a de que os autistas não sabem fazer amigos ou ter um um relacionamento ou que não sabem ser engraçados, o que a própria Sophie, com sua profissão e seu sarcasmo, desmente.
Na palestra, ela conta que faz parte de três grupos minoritários. Ela é autista, como 1 em cada 44 pessoas do planeta, ruiva como apenas 2% da humanidade e LGBTQIA+, como apenas 2% da população do Reino Unido, onde vive. “Mas não vou deixar a infeliz circunstância de ser ruiva me impedir de alcançar meu sonhos”, brinca a humorista.
Humor fez com que Sophie aprendesse a se conectar melhor com outras pessoas
Foi justamente na direção contrária a um destes mitos que Sophie conseguiu se desenvolver. Em junho de 2010, o Journal of Child Neurology descobriu que o humor é uma ótima ferramenta para ajudar pessoas autistas a se conectarem com outras e, portanto, ajudar com qualquer problema de comunicação.
“Na verdade, foi só quando comecei a fazer comédia stand-up que aprendi de fato como ter conversas conectadas corretamente, as pessoas se misturam e socializam”, conta.
Entre suas descobertas está também a de que as características do autismo a salvaram de uma situação abusiva que sofreu por muitos anos e chegou a colocá-la sob risco de morrer. “Foram minhas próprias características positivas combinadas que interromperam o ciclo de abuso”, afirma. “Foi meu escudo contra o lixo tóxico que enfrentei do meu agressor e de outras pessoas”.
Um estudo na Suécia aponta que meninas autistas são três vezes mais propensas a serem abusadas sexualmente do que meninas típicas. Um estudo da Universidade Britânica de Columbia mostra que 70% dos autistas desenvolvem comorbidades como ansiedade e depressão por causa dos traumas enfrentados ao longo da vida. “Mas toda vez que enfrentamos esses traumas”, diz Sophie, “parecemos encontrar forças para nos levantar, limpar a poeira e continuar”.
Conviver com outros autistas, diz Sophie, fez com ela conseguisse acessar sua força emocional
Sophie conta que durante o período que foi abusada, ela não absorvia o que seu abusador falava sobre outras pessoas justamente por seus traços autistas ligados à independência de pensamento. “A razão pela qual eu acredito que eu não absorvi seus traços tóxicos foi a força emocional”, diz.
“Foi uma experiência bastante estranha. Meu agressor era racista, homofóbico, praticamente não gostava de ninguém que não fosse ele, mas não importa o que ele dissesse sobre as minorias, eu simplesmente não conseguia acreditar nele.(…) Não importa o quanto eu achasse que amava meu agressor, suas palavras não fizeram um lar em meu coração”
Sophie diz, no entanto, que absorveu tudo o que ele falou sobre ela. “Não acreditei no que ele disse sobre as pessoas, mas ainda acreditei em tudo que ele disse sobre mim. Que eu era preguiçosa, estúpida, inútil”. Conhecer outros autistas na faculdade, foi o que a salvou.
“Eu consegui desbloquear minha força emocional. Eles me ajudaram a me tornar a pessoa que sou hoje, junto com minha mãe incrível”. Em cada pessoa autista que conhece, ela disse que encontrou a força para lidar com intimidações feitas por crianças e adultos, além da resiliência para lidar com estereótipos problemáticos ou ideias equivocadas como as antivacina.
“Nós somos indivíduos realmente resilientes e passamos por muita coisa como comunidade”, afirma. Sophie diz que a lealdade, a pontualidade e a estranheza ocasional dos autistas podem torná-los os melhores amigos de qualquer pessoa, desde que haja uma chance.
Foi com outros autistas que ela afirmou ter aprendido a ter amor próprio. “O amor próprio em pessoas autistas pode nos ensinar todas as coisas que precisamos aprender. A nossa força emocional e a nossa forte empatia emocional significa que realmente nos importamos e realmente nos esforçamos para o bem, mesmo em um mundo que não nos quer até que precisem da nossa ajuda para consertarem computadores”, diz Sophie, de forma irônica.
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