Autismo na TV: Kayla Cromer, Matilda e representatividade

25/08/2022Histórias0 Comentários

Ao estrelar Everything is Gonna Be Ok, a jovem americana foi a primeira pessoa com autismo a interpretar uma protagonista autista em séries

A primeira pessoa autista a interpretar um protagonista autista em uma série de TV é a atriz, modelo e ativista americana Kayla Cromer. Ela é uma das estrelas da série “Everything ‘s Gonna Be Okay”, lançada em janeiro de 2020 pelo canal americano Freeform.

A série fala da relação de três irmãos após a morte do pai. Kayla interpreta Matilda, de 17 anos, que tem uma irmã, Genevieve, de 14, vivida pela neurotípica Maeve Press. As duas já são órfãs de mãe e o pai, com câncer terminal, morre durante uma visita de Nicholas, o meio-irmão das meninas, que mora na Austrália. Nicholas, que tem pouco mais de 20 anos, decide assumir a guarda das garotas.

A convivência entre os três, as descobertas de Nicholas sobre paternidade e a construção de uma relação que equilibre autoridade e amizade estão entre os temas abordados pela série, recheada de personagens LGBTQIA+.

Além disso, os episódios retratam os desafios do amadurecimento de Matilda, que entre outras aventuras, se prepara para ir a universidade, se muda para Nova York e tem sua primeira relação sexual. Exibidos em duas temporadas, nos anos de 2020 e 2021, os episódios retratam também a rotina dos irmãos protagonistas em meio à pandemia de covid-19.

Para Kayla, a indústria de entretenimento precisa aceitar que há outras histórias interessantes

Kayla foi diagnosticada na pré-adolescência. Hoje com 24 anos, conta que decidiu se tornar atriz após assistir a Piratas do Caribe: A Maldição do Pérola Negra e descobrir que no elenco havia dois atores que, assim como ela, têm dislexia: Orlando Bloom e Keyra Knightley. “Só de vê-los fazer performances épicas alucinantes naquele filme realmente me inspirou”, contou em entrevista para a Health Magazine (confira aqui a íntegra, em inglês).

A atriz reforça a ideia de enxergar o autismo “como um espectro, não como um estereótipo”. Por ter ouvido várias vezes que “nem parece autista”, ela diz que as pessoas têm um modelo pré-concebido de como é um autista “baseado no que viram ou no que eles pensam que viram”.

“Muitos de nós têm diferenças invisíveis. (…) Todos no espectro do autismo são diferentes, assim como nossos cérebros”, diz. Kayla acredita que um dia as pessoas não precisarão receber rótulos, e serão vistas apenas como são.

Ela também considera que a indústria do entretenimento precisa acompanhar as transformações do mundo, evitando personagens ligados a estereótipos já vistos há décadas e investindo em elencos que representem a diversidade real da população.

“Há tantas mudanças acontecendo agora e a inclusão está finalmente começando a acontecer em várias comunidades dentro do nosso público. Precisamos acompanhar essas transformações e aceitar que há outras pessoas neste mundo que precisam ter suas histórias contadas, porque são parte das pessoas que assistem essas produções de TV e filmes”, afirma a atriz.

The Good Doctor, Atypical e Malhação contrataram autores neurotípicos para representar autistas

Everything is Gonna Be Ok foi lançada após duas séries de grande sucesso com protagonistas autistas, mas interpretados por atores típicos: The Good Doctor, disponível na GloboPlay e Atypical, no catálogo da Netflix.

The Good Doctor retrata a vida do jovem cirurgião Shaun Murphy. O médico, que é autista e tem Síndrome de Savant, enfrenta o desafio de trabalhar na ala pediátrica de um grande hospital e se relacionar com colegas, pacientes e seus familiares em momentos delicados, em que a interação socioemocional – prejudicada pelo autismo – se torna bastante necessária. O personagem é interpretado pelo ator inglês neurotípico Freddie Highmore.

Já em Atypical, o jovem estudante Sam Gardner lida com a superproteção da mãe e conta com o apoio da irmã e do melhor amigo para ganhar autonomia. Sam também é representado por um ator neurotípico, o canadense Keir Gilchrist. Por outro lado, há um núcleo de atores autistas na série, que interpretam alunos da faculdade que se tornam amigos de Sam.

No Brasil, a série Malhação-Viva a Diferença também teve uma personagem autista, a Benê, vivida pela neurotípica Daphne Bozaski. Benê, que tem dificuldade de compreender metáforas e alguns hiperfocos, recebe seu diagnóstico ao longo da temporada. Ela é uma das “Five”, as cinco protagonistas da série, exibida em 2017 e 2018.

Presença de Kayla como personagem principal é um avanço na representatividade dos autistas

A escolha pela escalação de neurotípicos para representar o papel de pessoas com TEA é chamada de cripface e combatida pela comunidade de autistas ativistas. A presença de Kayla no elenco é, portanto, um passo à frente na inclusão de autistas nas produções audiovisuais. Uma outra atriz autista, Lillian Carrier, faz o papel de Drea, namorada de Matilda.

A escalação de autistas para se representarem fortalece a luta contra o estigma ao naturalizar sua existência, ou seja, torná-la tão comum quanto realmente é – estima-se hoje que 1 a cada 44 pessoas seja autista. Com a contratação, também cresce a inserção de autistas no mercado de trabalho – em todo o planeta, cerca de 85% dos autistas com diploma universitário estão desempregados. Além disso, a decisão fortalece o combate à desigualdade no próprio mercado audiovisual: atores típicos conseguem interpretar autistas, mas o contrário é uma possibilidade mais difícil – papéis de autistas ainda são raros.

A presença de Kayla traz ainda novos elementos ao cenário da representatividade autista. As mulheres autistas não só são menos representadas em produções audiovisuais como são menos enxergadas enquanto autistas. Segundo relatório mais recente do CDC (Centers for Disease Control and Prevention, dos EUA), para cada 4 garotos, 1 menina é diagnosticada. Existe ainda hoje um viés de gênero nos critérios de diagnóstico, reflexo de décadas dedicadas a estudos e testes focados em meninos.

Estigma afeta a logística de produção; “Como vai funcionar?”, perguntaram ao diretor da série

Séries que abordam autismo contribuem com a luta contra o estigma que recai sobre autistas e seus familiares. Uma pesquisa mostra que a exposição a 28 minutos de uma série com um protagonista autista gera mais empatia e interesse sobre o tema que o mesmo tempo dedicado a uma palestra.

Josh Thomas, que vive o irmão mais velho da personagem de Kayla, é também criador, roteirista e diretor da série. Ele conta que o estigma recai até mesmo sobre o impacto da presença de um autista na logística de produção. “Quando decidimos lançar esse programa com elenco autêntico de autistas, muitas pessoas ficaram tipo, ‘Como isso vai funcionar?'”, disse o autor em um evento da Autism Society. “A forma como abordamos foi não apenas presumir que vai ser difícil, sabe?”

A primeira série escrita, dirigida e protagonizada por Josh o alçou à fama em 2013. “Please Like Me”, indicada ao Emmy em 2014, mostrou ao longo de quatro temporadas a vida de um rapaz que se considerava heterossexual mas se descobriu gay após o fim de um namoro de longa data com uma mulher – em uma das primeiras cenas, ela, ao terminar o relacionamento, afirma categoricamente que ele é gay.

O personagem, além de tentar entender e explorar sua sexualidade, também lida com os problemas da mãe, que tem depressão e tenta o suicídio, e os obstáculos da chegada à vida adulta. Uma das figurantes da série é a atriz e humorista Hannah Gadsby, que participou antes de ter sido diagnosticada com autismo, em 2017.

Autor e também protagonista, Josh Thomas foi diagnosticado após escrever o roteiro da nova série

Josh também se descobriu autista, mas só recentemente: depois de escrever Everything’s Gonna Be Okay. Ele revelou o diagnóstico (veja aqui o post em inglês) no intervalo entre a primeira e a segunda temporada de seu novo sucesso. Seu personagem, Nicholas, também se descobre autista, como a irmã.

O autor conta que a ideia de chamar Kayla para a série veio já no primeiro dia de audições. Atrizes neurotípicas participaram do teste, mas todas acabavam fazendo “uma espécie de voz de robô”, disse Josh à New Yorker (clique aqui para ler a entrevista na íntegra, em inglês). Segundo a revista, ao ver a performance animada e expressiva de Kayla, Josh soube que ela seria a atriz certa para o papel.

A animação de Kayla na audição não veio à toa. “Ver um papel como esse foi um momento muito surreal para mim”, disse a atriz em entrevista à Entertainment Weekly (veja aqui a íntegra em inglês). “Eu continuei relendo e relendo. Depois de ler o roteiro do piloto eu só queria muito esse papel, porque eu nunca li um roteiro como aquele, muito menos uma personagem como a Matilda.”

“Por acaso eu não entendi alguma pista social de novo?”, diz Matilda em uma das cenas

Matilda é uma jovem determinada a conquistar o que deseja e deixa explícito o que pretende, de forma bastante objetiva. Kayla diz que gosta da maneira obstinada como a personagem vive em um mundo neurotípico. Além disso, diz a atriz, a personagem tem uma perspectiva única sobre o amor, os amigos e a família e considera a forma como ela aceita seu autismo “muito real e autêntica”.

Na primeira temporada, a personagem se candidata à faculdade e aprende a lidar com consentimento em relações sexuais, e isso, diz Kayla, “é contado de uma forma que não tinha sido feita antes na TV”.

Um momento divertido da série revela a consciência de Matilda sobre o próprio transtorno. Acontece em um dia em que ela se irrita ao chegar em casa. “Por acaso eu não entendi alguma pista social de novo ou isto é apenas completamente esquisito?”, diz a personagem em meio a uma situação embaraçosa.

O episódio de estreia apresenta a personalidade de Matilda. Um dos exemplos é a cena em que no velório do pai, o meio-irmão, mais velho, lhe pede um abraço. “Na verdade, não gosto de abraços”, diz Matilda. “Papai me dizia para abraçá-lo quando eu era menor e isso o deixava feliz, então eu fazia isso por ele. Mas agora que ele morreu, eu esperava não ter que abraçar mais ninguém.”

Mas a afetividade não está perdida. Matilda se propõe a dançar para o irmão em vez de dar o abraço. Ela dança, pega um girassol oferecido ao pai e joga as pétalas sobre Nicholas. A cena cresce: Nicholas também começa a dançar, os dois pegam mais flores e criam uma chuva dançante de pétalas de rosas, girassóis, lírios e margaridas pela casa (assista aqui).

Sexualidade e relacionamentos afetivos de pessoas com deficiência ainda são tratados como um tabu

A vivência de Matilda rompe uma série de tabus sobre sexualidade que já vinham sendo explorados por outras séries, mas vai ainda mais longe. Como na cena em que ela e sua namorada, Drea, que é assexual, resolvem chamar um jovem para passar uma noite com elas.

A bissexualidade de autistas já havia sido apresentada com naturalidade em uma outra produção, o reality Amor no Espectro. O programa acompanha vários autistas em suas jornadas em busca de companhia amorosa e mostra também o cotidiano de alguns casais autistas.

No entanto, as relações afetivas e sexuais ainda são um tabu em relação às pessoas com deficiência.Uma expressão comum usada para se referir a autistas, por exemplo, é anjo azul. Autistas ativistas rejeitam essa expressão por várias razões.

Uma delas é por relacionar a ideia do autismo ao masculino que, de certa forma, invisibiliza a existência de meninas e mulheres autistas. Além disso, pensar o autista como um anjo não é pensá-lo como um ser humano que vai crescer e ter opinião e vontade próprias.

Matilda se posiciona para defender a autonomia sobre sua afetividade e sexualidade

A expressão também associa os autistas à imagem infantilizada e assexuada de um anjo. Mas autistas se tornam adultos, e se relacionam sexual e afetivamente. Eles inclusive tendem a sair do padrão cis heteronormativo, e precisam estar fortalecidos para lidar não só com o capacitismo, mas com a LGBTfobia.

Em uma pesquisa sobre sexualidade no autismo, a expressão foi apontada por problemática pelos autistas entrevistados. “Eu não sou um anjo azul. Não nasci para anjo”, diz uma das autistas consultadas. “Eu odeio essa história de que autista é inocente”, diz outra.

Matilda pensa de forma muito parecida. “Você acha que só porque eu sou autista eu não sei se estou apaixonada ou não?”, diz ao irmão. Para Kayla, a série é uma ótima oportunidade para a abertura de conversas sobre diversos aspectos da vida dos adolescentes, sejam eles pessoas com deficiência ou não.

Inclusão não deve se limitar aos personagens, mas chegar aos bastidores, diz Kayla

Interpretar Matilda mudou a vida de Kayla, como disse a atriz para a Entertainment Weekly. “Os fãs amam a Matilda. Tantos adolescentes estão procurando aceitação e inclusão neste mundo e eu me sinto tão honrada por ter sido escalada para interpretá-la e mudar a vida dos atores ao perseguir esse papel, além de inspirar garotas com deficiência de todas as idades. É incrível.”

Ela, no entanto, diz que a inclusão não deve estar limitada aos personagens. “A indústria do entretenimento gira em torno da criatividade. Eu gostaria de encontrar times diversos atrás das câmeras”, afirma. Kayla também gostaria de ver atores com deficiência em papéis que não foram escritos para PcDs (Pessoas com Deficiência) e em “papéis em que a deficiência não é o principal foco do personagem”.

Kayla conta que houve abertura para que ela contribuísse com os textos nas mesas de leitura do roteiro da série. Uma das cenas, por exemplo, tinha uma palavra que ela tinha dificuldade de pronunciar: boudoir. A cena foi alterada para mostrar que ela não conseguia acertar a pronúncia e que o irmão reagia com naturalidade ao corrigi-la.

O figurino também precisa de cuidados quando se fala de atores autistas. A hipersensibilidade – comum entre autistas – pode inviabilizar a escolha de algumas roupas. Lillian, que interpreta Drea, conta que os atores foram consultados sobre suas necessidades de figurino, em entrevista ao site Nerds and Beyond (leia aqui a íntegra, em inglês). Muitos dos traços autistas das personagens foram escritos com base nas características das atrizes.

Representatividade feminina mobiliza não só as mulheres com deficiência, mas também mães e pais

Kayla percebe o resultado do trabalho nas mensagens que recebe dos fãs. “As cartas me trazem tantas emoções. As famílias das mulheres estão finalmente vendo o retrato feminino do autismo e da deficiência que eles desejavam. Estou tão emocionada de ver as meninas me enviando DMs (mensagens privadas no Instagram ou Twitter) ou comentários em que elas revelam suas diferenças para mim, sejam invisíveis ou não. (…) Tem sido uma experiência inesquecível e vai continuar indo mais longe. Mal posso esperar.”

Para quem é ator e está no espectro, ela deixa uma mensagem. “O melhor conselho que posso dar é ser fiel a quem você é. Ame a si mesmo, mantenha seus objetivos à vista. Explore todas as opções em frente às câmeras e nos bastidores. (…) Encontre suas paixões e vá fundo. (…) Você pode fazer qualquer coisa que quiser. Sempre haverá pessoas que vão te colocar para baixo, é assim que a vida é, mas você tem que superar isso e fazer disso uma força para provar que eles estão errados. Isso sempre me faz continuar.”

Escrito por Clarice Sá, Teia.Work

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