Sally Deitch: A beleza de criar um filho autista

29/08/2022Histórias0 Comentários

Mãe de cinco filhos, um deles autista fala sobre diagnóstico, luto, surpresas e desafios do dia a dia

Mãe de cinco filhos, a enfermeira e executiva de gestão hospitalar Sally Deitch entendia que havia algo mais com Liam. Seu segundo filho foi diagnosticado com Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), mas alguma coisa parecia não estar certa.

Ele tinha sete anos e meio quando passou por uma consulta com um psiquiatra infantil. Não levou muito para que o médico chegasse à razão das suspeitas da mãe. Após uma hora conversando e fazendo muitas perguntas ao garoto, Sally ouviu: “você percebe que Liam é autista certo?”.

“Eu acho que, naquele momento, meu mundo meio que se despedaçou e meio que caiu”, contou a enfermeira em sua palestra no TEDxElPaso.

Descoberta do autismo provoca período de luto pela perda de um filho típico imaginado

É comum que pais de crianças autistas passem por um momento de choque e um período de luto quando descobrem o diagnóstico dos filhos. O processo está ligado a idealizações em torno do desenvolvimento da criança. O filho típico idealizado deixa de existir e é preciso aprender a lidar com a realidade de uma pessoa atípica, que precisará de atenção e apoio para sobreviver em uma sociedade capacitista.

Após mencionar o diagnóstico, o médico explicou a Sally do que se trata o autismo, tecnicamente chamado de Transtorno do Espectro Autista (TEA).

O autismo é um distúrbio do neurodesenvolvimento, ainda de causas indefinidas. O termo espectro se refere à imensa variedade de manifestações do transtorno. Cada autista o manifesta de maneira específica. Mas há dois fatores em comum entre todos os autistas: dificuldade de interação socioemocional e interesses restritos e repetitivos.

Há também uma classificação da gravidade dos casos de autismo, em uma escala do nível 1 (com menor necessidade de suporte) ao 3 (com maior necessidade de suporte).

Sally se sentiu uma péssima mãe por não ter entendido como autismo muitos sinais do comportamento de seu filho

Na época em que Liam, filho de Sally, foi diagnosticado autista, o médico afirmou que ele tinha Síndrome de Asperger. Esse diagnóstico, no entanto, já não é mais utilizado. Depois que a CID-11 entrou em vigor, em janeiro deste ano, as pessoas anteriormente diagnosticadas com a síndrome passaram a ser consideradas autistas de nível 1 de suporte – popularmente conhecido como autismo leve.

Ao receber o diagnóstico de Liam, um dos sentimentos de Sally era o de ser uma péssima mãe. Afinal, o garoto manifestava muitos sinais de autismo. Um deles é muito comum entre autistas: Liam nunca dormiu a noite inteira.

“Liam não dormiu a noite toda até os 18 meses de idade. Mesmo depois disso, quando finalmente o conseguimos fazer dormir, ele acordava duas ou três vezes por noite”, conta Sally. “O momento da mãe ruim bate quando você pensa em todas as coisas que seu filho fez e você pensa: “por que eu não vi?”.

Liam tem stim, QI acima da média, dificuldade de olhar para fotos e não gosta de ser tocado

Além de ser uma criança com QI acima da média e ser hiperativo, como indicava seu primeiro diagnóstico, Liam tinha stims, também chamados de estereotipias, outro comportamento muito comum em autistas. São movimentos repetitivos usados para descarregar a sobrecarga sensorial ou emocional, como se balançar para a frente e para trás, mexer os dedos ou as mãos – há uma imensa variedade de stims.

Liam não gosta de ser tocado. A única pessoa que pode abraçá-lo é a mãe.

Ele também tem dificuldade de olhar para a câmera ao tirar foto. Encarar com o olhar também é uma característica comum entre os autistas – mas é sempre bom ressaltar que, ainda que um comportamento seja comum, nem todos os autistas se comportam da mesma forma.

Liam tem hiperfoco; aos três anos conhecia os nomes dos planetas e das luas de Júpiter

Apesar de ser muito inteligente, nunca soube amarrar os sapatos ou abotoar as calças – autistas podem ter problemas na coordenação motora fina. Ele também tem hiperfocos, que vão mudando ao longo do tempo. Sally listou alguns, como um vídeo de cantoras celtas, que assistia repetidamente, por horas, quando tinha nove meses.

Aos três anos, Liam ficou fascinado com o espaço após assistir a um vídeo da National Geographic. “Liam assistiu em um looping a fita VHS até quebrar. Ele era meu filho que sabia tudo e qualquer coisa sobre espaço”, diz a mãe. Naquela idade, ele sabia os nomes de todos os planetas e das 31 luas de Júpiter – que Sally, típica, não soube listar. Ele também sabia tudo sobre ebola e hienas.

Liam chegou a acumular mais 80 detenções na escola, e a família decidiu buscar um diagnóstico

Os interesses de Liam sempre foram peculiares em relação a crianças da mesma idade. Na primeira série, conta Sally, “ele era a única criança que eu conheço que entrou no ‘Dia da Carreira’ e disse: eu quero ser um herpetologista (especialista em cobras).” Sim, além de planetas, Liam também é fascinado por cobras – a ponto de perguntar o peso das pessoas só para calcular a quantidade de veneno que faria elas morrerem. Mas as outras crianças nem sabiam do que a tal profissão de Liam se tratava.

Na escola, Liam não só causava surpresa, mas também problemas. Ao longo da segunda série, ele acumulou 86 dias de detenção na hora do almoço. Uma delas, por xingar uma colega de “puta”. A mãe se disse chocada: “onde ele ouviu essa palavra e como saberia contextualmente como usar?”.

A família decidiu, então, fazer a avaliação que resultou no diagnóstico de TDAH. A alimentação de Liam mudou e ele passou a ser medicado. “Passamos de 86 dias para seis dias de detenção. Bingo!”

No entanto, ao descobrir que, na verdade, o que o filho tinha era autismo, Sally se envergonhou. “Eu me lembro de sentar naquela noite e chorar. Chorar muito”, disse. “Muitos de nós, como pais, adoramos colocar a culpa em nossos próprios ombros e ter nossos próprios momentos de mártir.”

Equilibrar a atenção dada a Liam com as necessidades dos irmãos era preocupação dos pais

Naquele momento, ela e o marido, Greg, já vinham tendo conversas frequentes sobre a preocupação de equilibrar as atenções entre as necessidades de cada um dos cinco filhos. Mas quando o casal começou a chorar após a visita ao médico com Liam, foi justamente um de seus filhos, o mais velho, que alargou a perspectiva deles e os consolou.

“Zachary chegou em casa e eu estava um desastre. Eu estava chorando e todos os meninos foram para a cama”, conta a mãe. Ele perguntou porque os pais choravam. “Greg tentou explicar a ele que Liam foi diagnosticado, que ele é autista, que estamos tentando consumir o máximo de informações possíveis.”

Zach insistiu na pergunta: qual seria a razão do choro? “Porque estou de luto. Estou como uma mãe, pensando em todas as coisas que meu filho não vai fazer. Até hoje ele não tem amigos, ele não é convidado para festas de aniversário, ele não vai fazer as coisas normais.”

A resposta de Zachary surpreendeu. “Mas é por isso que Deus deu a ele quatro irmãos que vão amá-lo, não importa o que aconteça”, disse. “Essa criança, com tanta sabedoria, aos 11 anos, me trouxe um conforto que ninguém nunca vai entender”, contou Sally.

“Nem sempre o que é justo pode ser igual e o que às vezes é igual, nem sempre é justo”, diz Sally, sobre como lida com os cinco filhos

Sally e Greg entenderam que teriam de atender a cada um na medida de suas necessidades – e isso poderia significar tomar atitudes desiguais. Além disso, aprenderam a contar com a ajuda dos próprios filhos entre si.

“Tem uma coisa que a gente fala muito na nossa família: nem sempre o que é justo pode ser igual e o que às vezes é igual, nem sempre é justo. Portanto, as necessidades das crianças, quatro ou cinco, são muito diferentes e, como pais, temos que mudar o que fazemos, como fazemos e como monitoramos e movemos seus mundos para garantir que atendemos às necessidades de todos, seja justo ou não.”

Na companhia dos irmãos, Liam frequenta o acampamento de verão, apesar de ainda não se misturar muito com os outros colegas. Em casa, ele gosta muito de interagir com um dos irmãos que tem Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) – a hiperatividade de Liam e a organização do irmão se complementam, diz Sally.

“Nossos outros quatro filhos têm suas peculiaridades e necessidades especiais e só porque eles não são definidos por um único diagnóstico ou qualquer outra coisa, não deixam de ser todos especiais em seus próprios direitos e diferentes em suas próprias maneiras”, afirma.

Para além das preocupações, Sally narra momentos divertidos ao lado de Liam

Criar uma criança com autismo exige incorporar à rotina maneiras de lidar com suas especificidades. Há momentos difíceis, e outros muito divertidos.

A memória de Liam é ótima e rende momentos engraçados. Um deles foi o dia em que a família foi em uma loja de games e Sally se surpreendeu porque o filho sabia de cor um ranking de jogos violentos. Ao escolher o que levaria para casa, Liam decidiu pelo ‘Grand Theft Aut’o (GTA). A mãe disse que não compraria, e ele respondeu: “Isso mesmo, mãe, porque na lista dos cem jogos mais violentos, é o número dois”.

O garoto então escolheu ‘Call of Duty’. Quando a mãe negou, ele disse: “Não é tão ruim, é o número 47”. A terceira opção foi liberada. Era o jogo ‘Auréola’ que, segundo Liam, ocupava a posição 89 da lista. “Vivemos com uma criança que consegue listar tudo e qualquer coisa”, diz Sally.

Sally conta que sentia raiva por pensar que o filho não prestava atenção no que ela dizia

Outros episódios narrados por Sally se referem ao processamento atípico das informações pelo cérebro de Liam, o que exige atenção dos pais típicos.

Foi o que Sally aprendeu com uma amiga fonoaudióloga especializada em autismo e professora universitária. “Ela passou muito tempo conosco e contou que a fala humana normal é muito rápida, de cerca de três a cinco palavras por segundo. Mas o cérebro autista processa cerca de uma a duas palavras por segundo”. Ou seja, é importante desacelerar ao conversar com Liam.

Porém, os pais nem sempre conseguem seguir a recomendação. Um dia o menino precisava ir ao médico rapidamente. “Meu marido disse: ‘Liam, calce seus sapatos e vá até o carro’. Liam fez exatamente o que o pai disse e parou de pé, em frente ao carro. Greg achou engraçado, mas percebeu o próprio erro: não colocou “entrar no carro” na lista de tarefas. Liam, portanto, fez tudo o que precisava ser feito. “O que ele ouviu foi pegar os sapatos e ir para o carro. Os próximos passos ele não ouviu”, diz Sally

Ela conta que, nestes momentos, costumava sentir raiva, até entender a forma como o cérebro do filho processa informações. “Pensamos ‘você não está me ouvindo’, quando na verdade ele não processou tão rápido.”

“Tentar se colocar no mundo de uma criança ou de qualquer pessoa autista às vezes é muito difícil”

Outro episódio ocorreu quando Liam chegou correndo e começou a falar muito rapidamente com o pai na sala. Greg disse ao filho: “pare e comece do início”. Então Liam saiu correndo da sala, voltou e repetiu a mesma coisa. “Greg disse: ‘Como eu sou burro, acabei de dizer a ele para começar do início e foi o que ele fez’”, conta Sally. “Tudo é muito finito, é o que você pediu, não é interpretativo e é assim que o cérebro dele processa. [Para nós] é uma aprendizagem.”

Liam consegue perceber que seu comportamento não é típico e isso lhe causa uma profunda tristeza. Ele já passou por crises em que batia a cabeça contra as coisas ou batia em si mesmo e dizia à mãe “eu me odeio”. “É horrível ouvir seu filho fazer isso. Apenas rasga tudo no seu coração.”

O garoto é muito inteligente e faz suas próprias pesquisas sobre autismo. “Ele pode te dizer tudo o que há para saber sobre isso e também reagirá negativamente a si mesmo. Ele dirá ‘eu gostaria de nunca ter nascido, eu gostaria de não ser autista. (…) Para quem é neurotípico, tentar se colocar no mundo de uma criança ou de qualquer pessoa autista às vezes é muito difícil.”

Terapia baseada em ABA ajuda Liam a desenvolver habilidades de comunicação

A partir do diagnóstico, é possível oferecer o acompanhamento adequado para estimular o desenvolvimento dos autistas. Foi o que aconteceu com Liam, que consegue perceber como, ao longo do tempo, desenvolve habilidades.

O garoto passa por terapia baseada em ABA (Análise Comportamental Aplicada), que trabalha bastante suas habilidades de comunicação. Assim como muitos autistas, Liam tende a ter conversas unilaterais, muito focada nos interesses dele, o que segundo Sally, gera constrangimento social.

Liam, portanto, vem aprendendo a estabelecer interações bidimensionais. “Ontem à noite, ele sentou-se entre duas garotas e ele estava muito orgulhoso quando saiu. Ele disse que teve uma conversa excepcional”.

Os dias de crises autodestrutivas de Liam ficaram para trás. “O amor de uma família não é definido por um rótulo, mas por olhar além disso e amar todos os seus filhos por quem eles são, olhar para uma criança autista e tornar seu mundo atípico parte do mundo típico e fazer com que o mundo típico possa aceitá-la. (…) Amamos nossos filhos, amamos nossa família e as experiências que eles nos trazem todos os dias.”

Escrito por Clarice Sá, Teia.Work

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